quinta-feira, 1 de outubro de 2009

De beija-flores

Foto: Flávio Crunivel Brandão.

Em brasília eles vinham aos bandos e quando se achegavam aos hibiscos que cercavam o quintal, era sempre em dupla. Mas lá se mostravam pequenos, apenas cinzentos ou levemente amarronzados; vez ou outra penso ter visto um maiorzinho, azul-marinho, rabo de tesoura, mas pode ter sido apenas uma memória que carreguei dos daqui, ora muito verdes, ora muito azuis, e acho que às vezes ambas as cores se misturam num só, espalhando reflexos prateados. Desde quando morava sozinha num apartamento pequeno já gostava de os atrair com o melzinho na janela, pingando de flores de plástico. Agora, com as crianças, eles frequentam a casa sem medo. A primeira coisa que notei foi isso: os beija-flores não temem as crianças. Talvez seu instinto nos perceba, adultos, muito cheios de dedos (ótimo duplo sentido!) e daí fiquem desconfiados: por que devotamos tanto zelo, afinal, ao nos aproximarmos deles? Confesso que o cuidado que tinha, quando acontecia de um deles ficar preso e não conseguir mais achar a saída, era resultado de medo: medo de machucar aquela fragilidade ambulante, de ser mal interpretada nos meus propósitos e mesmo um outro sentimento que existia antes de ter tido filhos: um receio de tocar o vivo, de não saber cuidar, ainda que por um instante. Quando criança, nas visitas à vovó, corria horrores das galinhas, que corriam horrores de mim... Mas as minhas crianças nunca se apavoraram com pássaros ou peixes, ou sapos, ou formigas, ou aranhas, ou galinhas, ou bois... E de manhã, quando acontece de entrarem na área de serviço três ou quatro colibris de uma só vez, é uma festa: eles voando lá em cima, em círculos, e as crianças correndo aqui em baixo, simplesmente espantando-os com uma fralda na mão e um "vai bóia" que eu mesma ensinei, numa manhã em que percebi um filhote já cansado de bicar o vidro. Depois de tanta comemoração que fiz no início, assim que eles descobriram o nosso jardim, florido mês após mês, não poderia simplesmente pegar de um pano na frente dos gêmeos e tocar o coitadinho mundo afora. Então me aproximei de modo discreto, abri a janela inteira à sua frente e disse: "Vai embora, querido. Sua mãe deve estar te procurando". Ontem, em meio ao burburinho sonífero do nebulizador, percebemos que algo acontecia no escritório e lá fomos nós, corajosas desbravadoras do desconhecido - flora e eu. Um filhote de pescoço super-verde e rabo ainda curto batia com o longo bico, brilhante feito grafite, num canto da escrivaninha, entre um calendário que parou em agosto e uma pilha de provas por corrigir. Apanhei-o cuidadosamente, porém sem temores, num gesto rápido o suficiente para que não fugisse, e seguro, para que não temesse, ele. Agachei-me para que a flora o visse de perto e sua expressão era - perdoem-me pela palavra - epifânica. Fez sinal de que queria tocá-lo. Aproximei-me com o filhote na mão. Pesava menos que um lápis. Ela fez levitar o indicador pela testinha brilhante, até à fina ponta do bico, e, como se ouvisse o eco do meu pensamento sobre a leveza do pássaro, notando certamente a sua semelhança com os lápis de cor, olhou-o muito fixamente e soltou um "ápice", que é como chama a lápis e canetas; "ápice", eu repeti. E abrimos a janela para o ápice - sua mãe já devia estar preocupada!

6 comentários:

  1. Andreia,
    Nao sou muito de postar comentários aqui, acho que sou simplória demais, talvez brega, mas a metáfora de Flora me instigou. Será que ela herdou a veia literária da mãe? Adorei!! O beija-flor é mesmo um lápis de cor a colorir manhãs e jardins. Senti vontade encher ela de beijos por essa fala. Beije-a por mim.
    tia Sandra

    ResponderExcluir
  2. Você é ótima, Sandra! Obrigada pela visita. Nunca me esquecerei de quanta dor de barriga você já acalentou sob este teto, nas tardes de quinta-feira! (Espero que nos libertemos todos para ser brega). Beijos.

    ResponderExcluir
  3. Lindo! Também já estive nessa situação do bichinho estar preso e a gente fazer de tudo para mostrar a janela... uns são mais assustados e outros mais espertos... Adoro bichos! Mas sou sensível demais para a fragilidade deles... perdemos um hamster recentemente e disse para mim mesma que bichinhos agora só para observar mesmo...os beija-flores são ideais para isso.
    Um abraço!

    ResponderExcluir
  4. Quando tivemos de deixar a Alma em Brasília, há um ano e meio, eu estava já no fim da gravidez. No dia de a levarmos de volta à casa de onde veio a nós, para a adoção temporária que acabou durando um ano, ela começou a chorar bem baixo e muito cedo - parece que adivinhava. Nunca tinha visto um cachorro chorar, a não ser nas canções do Roberto Carlos e do Vital Lima.

    ResponderExcluir
  5. Belíssimo! Doce, delicado, floril, pequeno, cotidiano, sensível... beijinhos de beija-flor na flora... se me perdoa a intromissão, trocaria só o título... não usaria o termo "sobre" - é hierárquico demais para algo tão irmanável...

    ResponderExcluir
  6. Claro que perdôo a intromissão! Claro que não mudo o título, rs. Estou brincando: "De beija-flores" ficaria melhor? É que não devo fugir muito a esse "modelo", porque o texto faz parte de um projeto maior, como verá em breve. Beijos. Aguardo sua sugestão.

    ResponderExcluir