Os dois já saíram do carro discutindo:
- Eu sou homem! Eu sou homem, sim!, dizia a Flora, na sua sainha de babados.
- Não é, não!, replicava o Francisco.
- Não é, não!, replicava o Francisco.
À nossa passagem, o vendedor de cocos arregalou a boca e seguiu-nos com os olhos.
E o Francisco continuou:
- Você é menina; eu é que sou homem!
Eu conduzia os dois pelas mãos e observava o fluir da discussão, tentando entender-lhe as origens um pouco mais remotas do que a arenga detonadora, sobre quem seria retirado primeiro da cadeirinha.
Atravessamos a rua em direção à padaria e eu nunca tinha visto os dois discutindo com tanta veemência. Sentamo-nos no café. Ela, já exasperada com a resistência do irmão e dona de um olhar cortante, pediu auxílio:
Atravessamos a rua em direção à padaria e eu nunca tinha visto os dois discutindo com tanta veemência. Sentamo-nos no café. Ela, já exasperada com a resistência do irmão e dona de um olhar cortante, pediu auxílio:
- Mãe, eu quero ser homem! Fala pro Francisco deixar eu ser homem!
- Está certo. Francisco, ela quer ser homem. Agora, então, ela é homem; está bem!? (Caramba - pensei - até pra entrar pro time temos que pedir autorização a eles!)
- Ela é homem, mãe!? Então eu sou o quê!?
- Homem! Você quer ser homem? Então você continua sendo homem! Tudo bem?
- Sim.
Mais ou menos um ano atrás a Flora tinha chegado da escolinha com a novidade: "- Mamãe, eu sou menino!". E eu já vinha observando de longe o modo como, nas brincadeiras de quadra, as meninas se unem de um lado e os meninos, invariavelmente, de outro. Enquanto algumas delas fazem gestos de princesa e contam às outras, cheias de caras e bocas, os seus segredinhos, eles, do lado de lá, se empurram e correm e riem alto, ignorando-as completamente. Isso quando não dividem a caixa de lápis de cor, os meninos ficando com a parte que vai do verde ao preto e as meninas com aquela que vai do branco ao rosa. Quem me lê pode suspeitar de que estou criando uma alegoria para reforçar os argumentos. Pois saibam que não: observo as crianças (as minhas e as outras) diuturnamente, e noto inclusive a sua dificuldade em distribuir o lápis lilás. E a cena se repete, igual todos os dias, criando raízes comportamentais fortes como as de um jatobá e demandando, sem dúvida, algum tipo de intervenção pedagógica. Afinal, se for para sairmos deixando o mundo extamente como estava quando chegamos - penso eu -, não precisávamos ter vindo.
Desde aquela época entendi que as meninas, ainda nas fraldas, percebem (nessa fase os meninos ainda não desenvolveram qualquer domínio do disfarce, nem descobriram o uso skinneriano de compensações como dar-lhes passagem, abrir para elas a porta do carro, mandar flores ou pagar as contas) que o mundo em volta está todinho preparado para o uso e o abuso deles.
Deu-se ao mesmo tempo em que, por óbvia pobreza semântica e sintática, ao tentar apagar o fator desagradável de uma situação, nas suas sentenças simples, a Flora (e especialmente ela) negava a própria situação, a existência dela. Ouvi-lhe coisas como - com a roupa toda molhada: "Eu não fiz xixi na roupa!" ou então, enquanto eu me arrumava para sair: "A mamãe não vai trabalhar!".
Assustadoramente, em princípio, as frases sexistas começam a avultar junto mesmo com a aquisição da linguagem, na disputa pelos brinquedos e na categorização mais geral: "- O carrinho é meu; você não é homem!"... "- Eu vou tomar banho primeiro, porque você é mulher!"...
E também, vindas do outro lado: "- Você é homem, não pode usar xuxinha no cabelo!"... "- Mãe, o Francisco vai colocar camisa rosa? Ele não é menina!"...
E também, vindas do outro lado: "- Você é homem, não pode usar xuxinha no cabelo!"... "- Mãe, o Francisco vai colocar camisa rosa? Ele não é menina!"...
"Ser homem" significa portanto, sob a égide de uma educação sexista que se perpetua, ter acesso aos bens, ao movimento, à livre expressão, à prioridade e, por consequência, à possibilidade de concessão de pequenos benefícios àquelas pedintes. O poder os torna livres e fortes e belos - e generosos!
A elas cabe diferençar e designar o uso das cores, o delicado, o adorno, o mimo... e a espera...
A elas cabe diferençar e designar o uso das cores, o delicado, o adorno, o mimo... e a espera...
Na sua linguagem em desenvolvimento e quando ainda não conquistaram, a duras penas, outros meios de consegui-lo, as meninas solicitam então, aos meninos e a nós adultos, que lhes concedamos o direito de serem - homens! Logicamente quem detém poder (Foucault acrescenta: poder não é algo que se detém, é algo com que se joga!) não quer dividi-lo. Nesse caso, então - e nesse jogo - é necessário às mulheres (e meninas) requisitar as suas peças.
A opressão por que passa uma mulher desde o início da sua socialização é inenarrável. Basta olhar para a carinha das meninas em geral, ainda muito pequenas, nas salas de aula. Para vê-las melhor no entanto é preciso retirar-lhes o invisível véu de naturalidade com que as encobrimos no ocidente, denominando-as "mais obedientes e doces e castas"...
Nós, mulheres, enquanto continuarmos a reproduzir os mesmos modos e meios, prosseguiremos reclamando, sempre tardiamente, de que os homens não dividem conosco as tarefas, de que não conseguimos desenvolver com facilidade as habilidades em que eles são mestres. Etc.
Professora estamos em um mundo machista, esse texto me fez lembrar de um colega de trabalho que colocava os filhos de 04/05 anos pra assistir filmes pornográficos para crescerem homens de verdades e não se tornarem homo...
ResponderExcluirPois é, Eduardo. Veja que exemplo você nos traz. Como se ver filmes pornô resolvesse o problema. Como se o homossexualismo fosse um problema. Como se fosse mesmo possível, independente das cristalizações histórico-psico-sócio-linguístico-culturais, distinguir algo a que se possa chamar, inequivocamente, "o homossexualismo" ou "o heterossexualismo". Como se isso - "o homossexualismo" - fosse um "problema" de que ele (o pai) precisa livrar os filhos. Como se isso não fosse, no fundo, pelo que demonstra a atitude que você narrou, o grande problema dele, porque é "o" grande problema para ele, o pai.
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