sábado, 21 de maio de 2011

Eu quero ser homem! ou O primeiro manifesto feminista a gente nunca esquece



Os dois já saíram do carro discutindo:
- Eu sou homem! Eu sou homem, sim!, dizia a Flora, na sua sainha de babados.
- Não é, não!, replicava o Francisco.

À nossa passagem, o vendedor de cocos arregalou a boca e seguiu-nos com os olhos.
E o Francisco continuou:
- Você é menina; eu é que sou homem!

Eu conduzia os dois pelas mãos e observava o fluir da discussão, tentando entender-lhe as origens um pouco mais remotas do que a arenga detonadora, sobre quem seria retirado primeiro da cadeirinha.

Atravessamos a rua em direção à padaria e eu nunca tinha visto os dois discutindo com tanta veemência. Sentamo-nos no café. Ela, já exasperada com a resistência do irmão e dona de um olhar cortante, pediu auxílio:
- Mãe, eu quero ser homem! Fala pro Francisco deixar eu ser homem!
- Está certo. Francisco, ela quer ser homem. Agora, então, ela é homem; está bem!? (Caramba - pensei - até pra entrar pro time temos que pedir autorização a eles!)

- Ela é homem, mãe!? Então eu sou o quê!?
- Homem! Você quer ser homem? Então você continua sendo homem! Tudo bem?
- Sim.

Mais ou menos um ano atrás a Flora tinha chegado da escolinha com a novidade: "- Mamãe, eu sou menino!". E eu já vinha observando de longe o modo como, nas brincadeiras de quadra, as meninas se unem de um lado e os meninos, invariavelmente, de outro. Enquanto algumas delas fazem gestos de princesa e contam às outras, cheias de caras e bocas, os seus segredinhos, eles, do lado de lá, se empurram e correm e riem alto, ignorando-as completamente. Isso quando não dividem a caixa de lápis de cor, os meninos ficando com a parte que vai do verde ao preto e as meninas com aquela que vai do branco ao rosa. Quem me lê pode suspeitar de que estou criando uma alegoria para reforçar os argumentos. Pois saibam que não: observo as crianças (as minhas e as outras) diuturnamente, e noto inclusive a sua dificuldade em distribuir o lápis lilás. E a cena se repete, igual todos os dias, criando raízes comportamentais fortes como as de um jatobá e demandando, sem dúvida, algum tipo de intervenção pedagógica. Afinal, se for para sairmos deixando o mundo extamente como estava quando chegamos - penso eu -, não precisávamos ter vindo.

Desde aquela época entendi que as meninas, ainda nas fraldas, percebem (nessa fase os meninos ainda não desenvolveram qualquer domínio do disfarce, nem descobriram o uso skinneriano de compensações como dar-lhes passagem, abrir para elas a porta do carro, mandar flores ou pagar as contas) que o mundo em volta está todinho preparado para o uso e o abuso deles.

Deu-se ao mesmo tempo em que, por óbvia pobreza semântica e sintática, ao tentar apagar o fator desagradável de uma situação, nas suas sentenças simples, a Flora (e especialmente ela) negava a própria situação, a existência dela. Ouvi-lhe coisas como - com a roupa toda molhada: "Eu não fiz xixi na roupa!" ou então, enquanto eu me arrumava para sair: "A mamãe não vai trabalhar!".

Assustadoramente, em princípio, as frases sexistas começam a avultar junto mesmo com a aquisição da linguagem, na disputa pelos brinquedos e na categorização mais geral: "- O carrinho é meu; você não é homem!"... "- Eu vou tomar banho primeiro, porque você é mulher!"...

E também, vindas do outro lado: "- Você é homem, não pode usar xuxinha no cabelo!"... "- Mãe, o Francisco vai colocar camisa rosa? Ele não é menina!"...

"Ser homem" significa portanto, sob a égide de uma educação sexista que se perpetua, ter acesso aos bens, ao movimento, à livre expressão, à prioridade e, por consequência, à possibilidade de concessão de pequenos benefícios àquelas pedintes. O poder os torna livres e fortes e belos - e generosos!

A elas cabe diferençar e designar o uso das cores, o delicado, o adorno, o mimo... e a espera...

Na sua linguagem em desenvolvimento e quando ainda não conquistaram, a duras penas, outros meios de consegui-lo, as meninas solicitam então, aos meninos e a nós adultos, que lhes concedamos o direito de serem - homens! Logicamente quem detém poder (Foucault acrescenta: poder não é algo que se detém, é algo com que se joga!) não quer dividi-lo. Nesse caso, então - e nesse jogo - é necessário às mulheres (e meninas) requisitar as suas peças.

A opressão por que passa uma mulher desde o início da sua socialização é inenarrável. Basta olhar para a carinha das meninas em geral, ainda muito pequenas, nas salas de aula. Para vê-las melhor no entanto é preciso retirar-lhes o invisível véu de naturalidade com que as encobrimos no ocidente, denominando-as "mais obedientes e doces e castas"...

Nós, mulheres, enquanto continuarmos a reproduzir os mesmos modos e meios, prosseguiremos reclamando, sempre tardiamente, de que os homens não dividem conosco as tarefas, de que não conseguimos desenvolver com facilidade as habilidades em que eles são mestres. Etc.



2 comentários:

  1. Professora estamos em um mundo machista, esse texto me fez lembrar de um colega de trabalho que colocava os filhos de 04/05 anos pra assistir filmes pornográficos para crescerem homens de verdades e não se tornarem homo...

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    1. Pois é, Eduardo. Veja que exemplo você nos traz. Como se ver filmes pornô resolvesse o problema. Como se o homossexualismo fosse um problema. Como se fosse mesmo possível, independente das cristalizações histórico-psico-sócio-linguístico-culturais, distinguir algo a que se possa chamar, inequivocamente, "o homossexualismo" ou "o heterossexualismo". Como se isso - "o homossexualismo" - fosse um "problema" de que ele (o pai) precisa livrar os filhos. Como se isso não fosse, no fundo, pelo que demonstra a atitude que você narrou, o grande problema dele, porque é "o" grande problema para ele, o pai.

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