Boughereau: O fauno e a bacante.
Quando o escândalo assomou, as
mais doces figuras, de quadros solenes, ou mesmo de menor expressividade, já
tinham ganhado espessas camadas por sob os olhos, formando bolsas que pareciam
resultar de muitas noites mal dormidas, e as quais – notou-se depois – em tudo
semelhavam aquelas que o próprio restaurador trazia no rosto maltratado.
De todos os seus pecados, o que
mais íntima e dolorosamente lamentei foi o traçado cruel com que deformou a
cabeça perfeita do Adônis que eu contemplava diariamente, à porta da minha
sala, e que tinha sido trazido à galeria por minhas próprias mãos. Os lábios finos
da dileta personagem tinham sido engrossados de modo infame por aquela
habilidosíssima mão desumanizadora. Os músculos, antes bem demarcados, esmaeciam
agora sob a tinta esquálida, e pareciam-se, estranhamente, com o que se podia
imaginar que fossem os músculos raquíticos de Poison.
Mas o nosso esteta não tinha
culpa, entendemos tempos depois, mesmo porque não tinha consciência. Aquelas caretas
incômodas, a dureza dos gestos, o artifício dos olhares – tudo lhe assomava
diretamente das entranhas. E o se o pobre coitado nunca antes verdadeiramente
pintara, cabendo-lhe somente os retoques, como é que poderia expressar, ao vivo
e em cores, os dramas que lhe iam na alma, se não por meio das suas rudes
restaurações?
A infância sob o jugo de um pai
tirano, cuja força desmedida das palavras lhe encolheram para sempre a própria
estatura, as humilhações sofridas na escola, antes ainda de optar pelo
conservatório, e agora a esposa, a quem submetia toda e qualquer decisão que
pretendesse tomar, novíssima tirania para a qual se encaminhara involuntariamente
e sem a qual não saberia mais viver... A mínima estabilidade emocional de
Poison dependia, pois, da sua meia-arte, e a qualidade desta, por sua vez,
estava ligada àquela.
No início considerou-se que a
técnica não era de todo ruim, mas os resultados finais – aqueles dedos se
buscando sem resultado, e principalmente em contraste com a tensão dos músculos
dos braços, que em geral se mantinha – não convenciam. Acrescia-se ao saldo das
suas escabrosidades o uso da tinta grega e, nesse ponto, foram todos unânimes
em reprová-lo. Alguns, mais indignados, exigiam que fosse preso. O diretor da
galeria, mesmo sob o influxo do prejuízo financeiro, moral e cultural, manteve
a fleuma que sempre o caracterizou e tomou a atitude que, a mim, pareceu a
mais acertada.
Em pouco tempo Poison foi desmascarado,
encaminhado ao psiquiatra, destituído de suas funções e promovido a pintor de
paredes.