quarta-feira, 31 de outubro de 2012

POISON, O RESTAURADOR (parte 5)

Boughereau: O fauno e a bacante.

Quando o escândalo assomou, as mais doces figuras, de quadros solenes, ou mesmo de menor expressividade, já tinham ganhado espessas camadas por sob os olhos, formando bolsas que pareciam resultar de muitas noites mal dormidas, e as quais – notou-se depois – em tudo semelhavam aquelas que o próprio restaurador trazia no rosto maltratado.

De todos os seus pecados, o que mais íntima e dolorosamente lamentei foi o traçado cruel com que deformou a cabeça perfeita do Adônis que eu contemplava diariamente, à porta da minha sala, e que tinha sido trazido à galeria por minhas próprias mãos. Os lábios finos da dileta personagem tinham sido engrossados de modo infame por aquela habilidosíssima mão desumanizadora. Os músculos, antes bem demarcados, esmaeciam agora sob a tinta esquálida, e pareciam-se, estranhamente, com o que se podia imaginar que fossem os músculos raquíticos de Poison.

Mas o nosso esteta não tinha culpa, entendemos tempos depois, mesmo porque não tinha consciência. Aquelas caretas incômodas, a dureza dos gestos, o artifício dos olhares – tudo lhe assomava diretamente das entranhas. E o se o pobre coitado nunca antes verdadeiramente pintara, cabendo-lhe somente os retoques, como é que poderia expressar, ao vivo e em cores, os dramas que lhe iam na alma, se não por meio das suas rudes restaurações?

A infância sob o jugo de um pai tirano, cuja força desmedida das palavras lhe encolheram para sempre a própria estatura, as humilhações sofridas na escola, antes ainda de optar pelo conservatório, e agora a esposa, a quem submetia toda e qualquer decisão que pretendesse tomar, novíssima tirania para a qual se encaminhara involuntariamente e sem a qual não saberia mais viver... A mínima estabilidade emocional de Poison dependia, pois, da sua meia-arte, e a qualidade desta, por sua vez, estava ligada àquela.

No início considerou-se que a técnica não era de todo ruim, mas os resultados finais – aqueles dedos se buscando sem resultado, e principalmente em contraste com a tensão dos músculos dos braços, que em geral se mantinha – não convenciam. Acrescia-se ao saldo das suas escabrosidades o uso da tinta grega e, nesse ponto, foram todos unânimes em reprová-lo. Alguns, mais indignados, exigiam que fosse preso. O diretor da galeria, mesmo sob o influxo do prejuízo financeiro, moral e cultural, manteve a fleuma que sempre o caracterizou e tomou a atitude que, a mim, pareceu a mais acertada.

Em pouco tempo Poison foi desmascarado, encaminhado ao psiquiatra, destituído de suas funções e promovido a pintor de paredes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário