terça-feira, 30 de outubro de 2012

POISON, O RESTAURADOR (parte 3)

Albrecht Dürer: Autorretrato.
  
Num dia em que cheguei mais cedo, pude vê-lo novamente trabalhando, e qual não foi o meu susto! Poison estava exausto. Terminava um retoque que ao certo durara toda a noite. Parecia enlevado pela própria capacidade de transformar figuras tão díspares como o rinoceronte medieval e a romântica dama ruiva, ambas habitando a galeria há mais de duas décadas. Mútuos esgares de desprezo e  expressões de rancor haviam sido decalcadas sem sutileza por sobre rostos antes delicados e alegres, como os do grupo de crianças brincando no parque. O séquito de faunos andróginos, considerado raridade temática entre as maravilhas da técnica, teve a força da sua vitalidade apagada e substituída por fracos arremedos de sensualidade. Tudo graças ao pincel indômito do pigmeu de conservatório.

Como a sua contratação tinha sido amplamente recomendada, demorou para que eu mesmo passasse do susto à ação. E é bom que fique claro: o desfecho só se deu porque Poison desconsiderara, obtusamente, que era da natureza da trama ser traçada com lentidão, e que isso o tecido perfeito exigia. Ou seja, as personagens de um dos lados do corredor não poderiam ter notado tão imediatamente a também súbita transformação daquelas outras, que lhes ficavam em frente, separadas apenas, as duas fileiras de telas, pelo jardim.

E mesmo o jardim teria sofrido as consequências de suas investidas insanas, não fosse a intervenção providencial do diretor, porque o restaurador já tinha ganas que ultrapassavam os limites da sua competência, e afirmava que as cores das flores não estavam bem assim, e que era necessário podar as pétalas – sim, as pétalas! –, que a última moda do famigerado espírito de jardinagem era manter inclusive as orquídeas no caule.

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