Domingo. Passou. Segunda. Passou. Terça. Quando eu era criança, no fundo do quintal, escavava a terra com as unhas até sangrar. Mentira. Quando eu era criança, trocava chicletes com o irmão mais velho, pelo pegar no fio despelado pendurado na parede. Mentira. Eu era ainda criança quando o irmão mais velho comprava já sua primeira motocicleta. E era eu quando, no fundo do quintal, notei que ele sacrificava pequenos animais. Mentira. O irmão, tendo me percebido criança no fundo do quintal, as unhas sangrando minhocas, nenhum chiclete no bolso e os olhos arregalados perante o grito morto dos animais sacrificados, ofereceu-me um saco de doces coloridos em troca de que segurasse com força os fios despelados que corriam frouxos pelas paredes úmidas. No fundo do quintal, eu criança não via que os doces eram comprados com o dinheiro furtado do meu cofre. O cofre vazio, o choque dos olhos mortos, os cães riscados em cruz na parede do barraco, o choque elétrico, o raio nas tardes de chuva, a terra, os torrões, as paredes terríveis, terrivelmente frias. Mentira. Ameaçando com a garrafa verde de água sanitária incendiada na ponta da vara, ele perseguia formigas vermelhas, formigas-de-ferrão, formigas cabeçudas, pingando lava plástica incandescente sobre suas vidinhas indefesas. De algumas bastava se aproximar. Ninguém jamais não via nunca nada naquele mundo de criança sozinha em fundo de quintal. Mas volta e meia passavam libélulas, anunciando do alto a dor de viver, pesadas com o fardo da linha colorida atada a seus troncos pelo irmão mais velho. Eram livres mas não podiam voar muito alto. Domingo. Linha amarela. Segunda. Linha vermelha. Terça. Amanheci enlutado. Um luto branco e duro dos pulsos aos tornozelos. Na boca um ranço de sangue e os chumaços de algodão saindo cada vez mais sujos, antes do vômito cinzento que continha nacos de uma gordura densa, de origem desconhecida. Sem descanso a mulher recolhia tudo na sua cestinha; depois do almoço eu espalhava pelo chão aquilo que não podia reter nos ímpetos de náusea. Tudo o que fora levado a comer retornava agora e às vezes a mulher se abaixava para recolher aqueles restos espalhados pelo assoalho.
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