Porém sempre que alguém escreve é contra o pai e de certo modo contra si, e contra a infância, enorme, e a memória dela, diminuta. As palavras que juntamos restam longe da inquietação mais funda. Nos vingamos então numa terceira pessoa, reflexiva, correndo sempre para o lado oposto a nós mesmos, como corriam os antigos carrinhos das máquinas de escrever: se, si, só muito mais tarde, quando desistimos de nos perseguir, é que cavoucamos, quase sem perceber, as palavras enterradas na terra preta do fundo do quintal, revelando as manchas de sangue deixadas debaixo da árvore mais alta.
O pai trabalhava à noite. Então fazíamos sempre, durante o dia, um silêncio mortal, para não lhe cortar o sono. A que horas vivia, não sabíamos. Acostumamo-nos a ouvir psiu. Tantos psiu que nem sabíamos mais de onde vinham. Fazíamos psiu um ao outro, a mãe aos filhos, os filhos à mãe, a mãe às visitas... A irmã mais velha até hoje intercala, sem perceber, o diálogo com uns psiu. E ninguém bate portas, ninguém anda descalço, ninguém arrasta chinelos, nem xinga ou abre as torneiras, psiu, ninguém se serve sem pensar nos demais, ninguém ousa apanhar o último pedaço.
Anotei isso no verso do receituário que o ortopedista deixara na mesa de cabeceira.
To adorando...
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