Paula Rego.
Os que compram o desejo
pagando amor a varejo
vão falando sem saber
que ela é forçada a enganar,
não vivendo pra dançar,
mas dançando pra viver!
(Chocolate/Américo Seixas: "Vida de
bailarina")
Três da tarde. Maria chora.
As lágrimas vão molhando o porcelanato e ela,
enfim, lhes acha uma utilidade. Com o pé, empurra o balde de plástico. À noite, calcula quantos quilômetros caminhou
por entre aqueles seis cômodos, conduzida pelo desinfetante.
Maria já deu duas voltas ao mundo sob o odor
artificial da lavanda. Maria prende os cabelos no alto da cabeça. Semelham um
espanador. Maria pinta os cabelos da mesma cor do espanador. Escreve na nota de
compras, dependurada na geladeira: alho, bucha, batata, espanador. Maria
penteia os cabelos como quem penteia o espanador. E se confunde com o lustre, a
mesa de canto, o abajur, o aspirador de pó.
Marido saiu cedo, muito cedo, para o trabalho.
O abajur não acende mais, deu defeito. Marido
chega tarde, não percebe que a luz se apagou. Maria brilha mais que o abajur
com defeito. Maria desinfeta, Maria limpa, Maria arruma, mas a casa nunca está
a contento. Maria está insatisfeita e a insatisfação é o seu último nicho de
humanidade.
Maria elege responsáveis pela sua infelicidade.
Maria não sabe mais a quem culpar. Marido sorri pelos cantos.
Ao meio dia Marido chega, irrepreensível, para o
almoço. Marido
esconde as mãos. Tem as costas caídas, os olhos baços, o fígado em frangalhos.
Piedade Maria não tem. Maria vive para os demais, como o milho
vive para o frango, portanto a culpa da existência de Maria é deles. Ela quer
juros e correções monetárias pela sua dor.
Marido não gosta de números. Marido gosta de
nomes.
Maria quer governar o mundo, mas o mundo é um
catre. Tranca, catraca, cárcere, calabouço. Maria se confunde. Maria
teve um filho, porque um filho tinha de ser tido, tinha de ter sido. Maria tem
um carro, porque um carro tem de ser tido.
Maria vai às compras, Maria confraterniza, Maria
antipatiza. Maria afia as garras. Não pode mais usar biquínis. Maria luta
contra a celulite. Maria tem o pé pequeno como o das gueixas. Nunca lhe foi
permitido andar descalça. A filha também não anda descalça.
Marido não percebe,
Marido não se importa.
Maria cozinha, Maria arruma, Maria passa. Maria
organiza as gavetas, ordena as cuecas do Marido. A ordem vem de fora,
alienígena, um meteoro. O amor é outra palavra. Maria já não ouve muito bem.
Maria compra lingeries, acende velas. Marido
chega com hálito de cerveja, mas Maria não conhece o cheiro da cerveja. Não,
Marido não bebe cerveja!
Marido desorganiza as gavetas, espalha copos pela
casa. Marido vende, doa a televisão. A televisão não
faz falta. Maria faz falta, como faz falta o sofá.
A criança rasgou o sofá.
Maria castiga. Maria espancou um pouco a sua criança. Maria pensa como criança:
mulher faz papel de mulher, Marido faz papel de Marido, criança faz papel de
criança.
Marido rasga papéis. Marido escreve, escondido,
lindas obscenidades. Maria empalidece diante de cenas de sexo. Maria é uma
criança.
Às seis da tarde, Maria chora.
Marido se atrasa.
E Maria sabe, no fundo sabe, que a vida finda. Um
dia, finda. Quando menos se espera, termina. Maria de repente se descobre
mortal. Num átimo se vê entre os demais – todos mortais.
Maria morrerá.
Na geladeira perecerão os caquis. As gavetas, em
breve, desordenadas. Só Marido, pleno de culpa, jamais restabelecerá a ordem
interior. Jamais uma nova ordem, sem Maria, a faxineira, Maria, a arrumadeira,
Maria, a babá, Maria, serviço bancário.
Marido dá dinheiro, Maria paga as contas.
Maria é uma santa. Marido geme na cama da
vizinha. Marido tem vida dupla, de malabarista. Maria tem meia vida, de
bailarina.
Maria deprime, Marido traz um presente. Maria
fica contente. Por dias, fica contente.
Marido parece triste. Maria traceja tramas, Maria
tem o dom das aranhas. Maria planeja a mortalha, mas o avesso do bordado traz um
borrão.
Marido adoece, Marido se esforça, bate ponto às
doze e às dezoito. Marido quer ser fiel. Marido definha. Cada culpa do Marido é
uma vitória de Maria. Pena, Maria não tem.
Marido também morrerá.
Maria se procura, se acha, se sente vitoriosa. De
repente entende que ninguém tem culpa. Aos poucos, Maria intui. A intuição é o
seu forte, junto com o instinto materno, a fé em Deus, o amor eterno e os
arranjos de Natal.
Maria intui que Marido é Marido e Maria é Maria. Não há nada que verdadeiramente a impeça de dar a
volta ao mundo. Ela por vezes sente o influxo dos desejos, mas tem um protocolo
a cumprir, até que a morte os separe. Maria é. Maria sabe que é, mas o que é
mesmo que Maria é?
Marido bem sabe o que não é.
Maria tem medo. Ao erguer o tapete – o marido
detesta tapetes –, Maria treme e lembra o muxoxo da mãe, fundo no quintal, numa
terra distante, num tempo distante...
Maria não enxerga. Recorda apenas as lágrimas da
mãe caindo na terra, suas fundas olheiras, a frágil imagem, fundida à do pai...
O pai desarrumava as gavetas...
E até a morte os separou.