quinta-feira, 31 de maio de 2012

A mentira, parte 1

Michelangelo: Capela Sistina (detalhe).

A mentira,
coitada,
é como um anjo
caído de quatro.
Enquanto lhe cospem na nuca,
vão enrabando a pobrezinha.
Creiam-me, porém: é ela quem fornece
o mais farto manjar
a nossas vidas comezinhas.
Afinal de contas,
com essa fraca dentição,
é muito difícil mastigar
a verdade - nua e crua.

Alquimia II

Filha doente:
o que era bosta,
vira merda!

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Tédio

Como é que, numa quarta, podem caber quatro domingos?

A árvore da felicidade


Aquele homem segurava a criança como se fosse um trunfo, um troféu, meio erguida reta ao lado de seu próprio ombro farto. Juro que nunca vi uma criança ser carregada assim por ninguém. Ela nem lhe aderia ao corpo, portanto não parecia dele, nem perdia completamente o equilíbrio, que, logicamente, vinha do fato de a mão do pai a sustentar a partir das nádegas.


Era estranho. E olhe que já vi bebês dependurados nesses panos coloridos, tipo saris, que os jovens pais alternativos acham o máximo, e principalmente nessas cadeiras de pano que deixam as perninhas completamente abertas e às vezes esmagadas... Já vi aqueles que carregam o bebê de costas para si e, nesses casos, especialmente quando ainda muito novinhos, eles ficam completamente perdidos do eixo que é o pai (ou a mãe), e saem sendo levados por aí, os olhos não conseguindo ainda se fixar em nada, numa vertigem quase palpável; e o pai andando, apressado, pela calçada lotada, pela rua, pelo supermercado. É incrível como a última coisa para que olham é para aquele ser que lhes saiu das entranhas e que deveria, agora, lhes interessar como é que se sente no novo mundo. 

Mas aquele pai era diferente. Achei que pudesse constrangê-lo com meu olhar, então mantive os óculos de sol. Aliás, me pareceu mesmo que se comportava assim  por estar sendo observado, já que, junto com o esquisitíssimo modo como segurava a menina, que devia ter uns três anos - se muito -, mantinha também na cara um sorriso falso que beirava a imbecilidade perigosa. Notei que não era somente eu que o olhava. Tive vontade de socorrer aquela menininha linda, de roupinha lilás e um cabelinho tão mal arrumado que só podia mesmo denotar a mais completa ausência de uma mãe. Quando será que me livrarei desse especial apego às crianças? Talvez quando tiverem crescido todas, no mundo, e tiverem se transformado já naquele pai postiço, naquela mãe inexistente ou nessa observadora inútil que vos fala.

O fato é que a criança caiu. Já me alertaram para que tenha cuidado com as minhas palavras, e eu tinha acabado de dizer ao Miguel, ao meu lado: "Aquela menina vai cair!". "Cai nada, ele disse!". Caiu. O pai não era alto - pensei nisso na hora, torcendo para que a pancada tivesse menos impacto, mas a verdade é que a garota, inacreditavelmente, caiu com os olhos justo sobre um arbusto que enfeitava a entrada do restaurante, e a planta tinha sido recém-podada. Desgraçadamente, chama-se árvore da felicidade. Ninguém no entorno via meio de remover-lhe dali a cabecinha morena, fincada justo pelos dois olhos.

Não digo mais. Mais não digo. Tenho medo das minhas palavras.

terça-feira, 29 de maio de 2012

A moça enfiou a cara pela janela do meu carro:
- Oi, nós estamos fazendo uma pesquisa!
- Sobre o que é?
- Sobre a fé!
- Fé em quê?
- É... Em trinta segundos a senhora responde! Aceita?
- Aceito, mas pra quem é a pesquisa? (Não soube dizer).
- São duas perguntas iniciais. As outras trinta são apenas para aqueles que responderem positivamente à primeira. Posso começar?
- Pode!
- A senhora tem fé?
- Não!
(Não entendi a contrariedade no olhar dela: deve receber por produtividade!)

segunda-feira, 28 de maio de 2012

A paixão

Almeida Júnior: Saudade (detalhe).
 

Todo início anuncia seu final.
Por isso a paixão, ao começar,
causa vertigens e ânsias de vômito.

sábado, 26 de maio de 2012

Barriendo la basura

Trecho do Diário de Frida Kahlo.

A senhora maltrapilha (de hoje em diante direi mais exatamente andrajosa) se aproxima sempre da minha janela, no semáforo de Jardim Limoeiro.
- Me dá uma ajuda, minha filha!
- Sim, senhora. Tem aqui um anel de prata com quatro pedrinhas de quartzo, artesanalmente fabricado no Peru, e essa aliança, de ouro e prata, também trazida de lá. Ao lado de dentro tem um nome de homem, mas a senhora ignore.
Constrangida ao me ver retirar os anéis dos dedos, a mulher arregalou os olhos:
- Eu não estou roubando não, minha filha!
- Nem eu, senhora. E nem acredito na bondade humana. Se a senhora não quiser ficar com eles, pode dar para aquele rapaz ali, que ele troca por uma pedra de crack.
- Obrigada, minha filha! - recolheu tudo e enfiou num bornal mais que surrado.
- Não precisa agradecer, senhora, eu só estou fazendo uma limpeza no meu carro.
- Que Deus leve o seu carro por esses caminhos, minha filha!
- Acho melhor não, senhora. Da última vez em que deixei que ele guiasse, furou o sinal e quase que me tomaram a carteira. Parece que tinha bebido! Ah, já ia me esquecendo: tem também esse vidro de perfume masculino fabricado no Peru. É delicioso! Eu ia pocá-lo no asfalto ali adiante, mas sempre se corre o risco de ferir uma criança, não é mesmo? Entregue-o a qualquer um, por favor.
- Está bem, minha filha...
- E mais essa muda de roupa. É simples, foi comprada para se usar em casa, mas está em bom estado e foi escolhida com muito carinho. Veja como combinam os tons de azul! (A mulher agora já me parecia triste e confusa).
- O meu marido vai querer sim, senhora.
- E, se a senhora não me leva a mal, tem também essa meia dúzia de rosas. Já estão um pouco murchas, é verdade, mas a senhora sabe, não é, flores nunca se jogam no lixo.
- Obrigada, minha filha!
- Não precisa agradecer. Não é pela senhora; é por mim. No mais, tem aqui uma série de cartas e bilhetes de amor, um sentimento inventado por um poeta italiano chamado Petrarca, no século catorze, mas foram escritos em espanhol e acho que não lhe serviriam. Eu mesma os lanço fora. Desculpa, senhora, não tenho nada de valor para lhe dar. Até logo. Boa sorte!
- Deus te guie, minha filha!

Os olhos do capitão

De repente trepidou a nau e somente eu fiquei à deriva, náufraga. Com grande dificuldade para me manter segura à borda e com receio de que ocorresse o mesmo aos demais, consegui apoiar a mão gélida no que sobrava daquela parte da embarcação. Sem saber ao certo por quê, tive receio de que os tripulantes, especialmente o capitão, me pisasse os nós dos dedos, fazendo com que eu me desgarrasse de vez mar a fora, na forte correnteza daquele vento sul de lua grande.

Lutando por respirar, com a cabeça já praticamente mergulhada, eu nem mesmo podia gritar por salvação. Somente meus olhos imploraram e imploraram um gesto de misericórdia, mas encontraram os olhos insanos, indiferentes, do capitão. Estranhamente, já não tinham órbita nem ponto fixo. Jamais me esquecerei dessa imagem sem comparação.

Ao me ver no auge da agonia silenciosa, ele se aproximou rápido e estendeu a perna na minha direção. Estava pronta para agarrar-me ao seu pé quando, em meio à tormenta, senti no topo da cabeça a força da sola dura da sua bota, empurrando-me para o fundo.

Foi o primeiro - e último - gesto firme que o vi cometer em sua longa vida de marinheiro.

Do além, não mais preciso consultar dicionários: misericórdia significa miséria no coração.

Não tentem fazer em casa


Salvador Dalí: Portrait of a passionate woman hands.

Senti uma leve cócega na garganta. Surpreendeu-me que tivesse parado, logo ali, um fio dental. Consegui pinçá-lo firmemente, entre o indicador e o polegar, e fui puxando, puxando... Quanto mais se revelava a suspeita de que não tinha fim, mais se ampliava a minha agonia. Ao mesmo tempo, não podia parar de puxar.

A partir de certa medida foram despontando, agarradas no fio, agora já bem engrossado de baba e restos de comida, pequenas letras garranchais, como as que meus filhos escrevem nos cadernos. Formavam palavras cujo sentido eu não conseguia distinguir.

Ao fim de um metro a náusea já era insuportável e as letras que vinham eram maiores, de plástico colorido, tipo lego. Palavras completas saíam em profusão, cortando-me a garganta já em sangue, sem que eu pudesse falar e nem mesmo ordená-las ao meu modo.

Despertei! O pesadelo de fora parece contudo menos verossímil.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Eca

- Mamãe, o Francisco vomitou!
- E você, fez o quê?
- Eu disse eca, do "vomito".

Alquimia I

Filho doente:
o que era merda,
vira bosta!

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Terceira história do livro de Jô

Criança morta. Cândido Portinari.

Algum tempo depois daquela década vivida na miséria, a família parecia ter alcançado uma relativa e quase que natural estabilidade, porque as situações muito difíceis, por si sós e quase que naturalmente, tiram o seu frágil equilíbrio de pequenos picos de menor dificuldade. E há mesmo males que vêm para o bem: o marido, tendo então o corpo corroído pelo álcool, já não se opunha a que Jô trabalhasse fora, como empregada doméstica, nas casas de fazenda próximas dali. O menino mais velho - e único filho homem -, tendo sido sempre menosprezado pelo pai por ser negro e adotivo, achava algum refúgio da ira paterna fazendo pequenos bicos no armazém local.

E era nesse ritmo que todos seguiam, sem reclamar da rotina. As crianças cresciam muito irmanadas entre si e também especialmente vinculadas à mãe. A experiência comum do sofrimento espalha raízes perenes, inarredáveis. Todos frequentavam a escola, o mais velho com especial dedicação e, até onde os conhecimentos da mãe premitiam avaliar, com um domínio muito grande da oralidade e um especial apego à Bíblia (provavelmente o único livro que tinha, na época, à mão).

Por essa época converteram-se todos, à exceção do pai, a uma pequena seita de origem local, em cujo templo, armado no início num casebre alugado no fim da rua poeirenta, por entre os hinos e a coleta do dízimo, escutavam a pregação lenitiva do pastor, cujo tema passava sempre por uma mensagem de otimismo, além, é claro, de admoestações acerca do pecado, da ação do Inimigo e da necessidade crucial de "devolução" do dízimo, que dízimo não se doa à igreja, se "devolve".

Foi então que, numa terça-feira de muita chuva, Jô resolveu que era impossível se deslocar com as oito crianças até o templo, mesmo porque a menina de seis anos começava apenas a se recuperar de uma pneumonia, assim diagnosticada pelo prático do local, que, depois do evento dos antibióticos, havia se convertido numa espécie de estranho familiar, alguém que sabe do drama familiar, do qual participa sem participar, através de bulas, receituários, indicações de doses e dietas.

E, além do mais, era dia de sopa, com carne e macarrão, um luxo que Jô concedia quase que semanalmente à prole, e que todos aguardavam ansiosos desde o dia anterior, alguns chegando mesmo a sonhar, à noite, com o calor fumegante, os pedaços macios da mandioca (sempre ela) e o farelo da carne moída que, no fundo dos pratos, se transformava em algo comparável a pedrinhas de ouro rolando numa bateia.

Naquele dia Jô chegara mais cedo do trabalho, trazendo consigo a cebola e a salsa que a patroa mesma lhe dissera que colhesse no quintal. Passou pela quitanda e comprou ainda um naco de moranga, tomate e vagens.

Quando entrou em casa, a menina mais velha já terminava de picar a mandioca. Todos tinham no rosto um ar de júbilo, prenúncio inequívoco de felicidade. O irmão mais velho estava na rede, emborcado, como sempre, sobre o Antigo Testamento. Sentando-se ao lado da filha, Jô iniciou imediatamente o descasque dos legumes e foram todos, quase que simultaneamente, entoando o cântico que concordavam em ser o mais bonito dos que eram entoados diariamente no pequeno templo.

Súbito, o rapazinho, da rede, deu um grito de espanto: - Mainha, Dassanta caiu! O nome era herança dos tempos de catolicismo.

Dassanta era, de todos, aquela que tinha a saúde mais frágil: não passava um mês sem que fosse acometida de enxaqueca, sinusite ou resfriado. Espirrava e tossia quase todo o tempo. Andava sempre com um lencinho à mão, o que já semelhava um fetiche. Embora nunca tenha sido diagnosticada, tudo indica que sofria de um quadro bastante complexo de alergia. Era dona porém de uma beleza esplendorosa. Seus cabelos e olhos claros como que iluminavam os ambientes a que chegava, e não havia quem não fosse demovido pela força daquela presença.

Beirava então os nove anos e, do nada, enquanto limpava com a vassoura o teto da casa, dobrou-se sobre si mesma, tombando perto de uma caixa de madeira em torno da qual brincavam as irmãs menores.

Acorreram todos. Jô tentava reanimá-la com álcool e pequenos tapas na face pálida, enquanto a irmã mais velha saiu em disparada, a ver se encontrava o farmacêutico, na verdade um prático. Não havia pulso nem respiro. Jô apelava, aos gritos, para todos os santos que lhe restaram na lembrança de quando era católica.

Rapidamente vieram o prático e todos os adultos mais esclarecidos da redondeza, a ver se se podia fazer algo pela saúde da bela menina. Ao primeiro exame do prático, porém, a expresão geral que se disseminou, antes mesmo que precisasse fazer qualquer comentário, era de estarrecimento e completa desesperança. Não havia em Dassanta um fio sequer de vida.

As crianças todas, incontinenti, se agarraram à mãe, que, ao invés de gritar ou desmaiar, paralizou todos os movimentos, feito estátua. Alguns temiam que parasse inclusive de respirar. E assim permaneceu enquanto as vizinhas acorriam, chorando e rezando, algumas mais íntimas já limpando os pezinhos empoeirados da menina, penteando-a, buscando nos velhos caixotes o seu vestidinho de festa com o intuito de deixá-la à altura da sua beleza no último evento de que, sobre a terra, participaria.

Passadas algumas horas e com o velório já bastante adiantado, Jô, como num estalar de dedos, saiu de sua letargia, e alguns julgaram então que tivesse enlouquecido, porque tinha o porte altivo como nunca e trazia no rosto um grande sorriso, firme e desafiador, absurdo para a situação.

Aproximou-se da câmara improvisada no canto da sala, onde jazia a menina, entre velas e flores, pôs a mão por sob a nuca da garota, como se a quisesse acordar de um sono muito profundo, desses que se dormem nas noites frias, depois de muito cansaço, e apenas falou alto e carinhosamente, olhando a criança nos olhos cerrados como se a visse pela primeira vez: - Acorda, minha filha. É mainha que está pedindo. Levanta!

No mesmo instante, como se nada tivesse se passado, a menina abriu os olhos, ergueu a mão direita, apoiando-se no pescoço da mãe e sentou-se sobre a alta mesa, visivelmente assustada com as flores e as velas que lhe tinham posto ao redor.

As crianças menores pulavam de alegria. As pessoas em torno se benziam todas, esconjurando. A Jô que conheci em Brasília, muitos anos depois, era essa mesma que um dia ressuscitou uma filha.










quarta-feira, 23 de maio de 2012

Segunda história do livro de Jô


Milena, uma das meninas mais novas, sofria, entre outras, com constantes crises de constipação e com todos os tipos de sofrimento que daí advinham. Devido à distância do hospital e mesmo da casa do único médico residente no vasto município, era sempre difícil diagnosticar com certeza as patologias da garota, que em alguns desses achaques gritava dia e noite de dor abdominal, mas, incrivelmente, levou alguns meses até que se descobrisse que o ventre inchado era o mais óbvio sintoma de uma verminose já crônica.

Quando enfim o prático local, homem muito curioso e estudioso da sua matéria, concluiu, enfim, que o vasto ventre de Melina era habitado por grandes colônias de lombrigas, receitou de imediato o melhor dentre os antihelmínticos de que dispunha na farmácia.

Sofrendo já profundamente com os acessos de dor da filha, por vezes secundadas de vômitos e, invariavelmente, de insônia, Jô abriu enfim um longo sorriso.

A criança estava deitada num banco, ao canto da farmácia, com as pernas encolhidas e as mãos sobre o ventre. Os ataques já eram, para ela, praticamente um costume, e a dor era uma norma.

Jô pediu então ao rapaz o medicamento, e ele pôs sobre a bancada duas caixas oblongas, brancas e tarjadas de vermelho. Aos seus olhos esperançosos, semelhavam o maná caído dos céus.

Perguntou então se já podia dar à menina um primeiro comprimido, ansiosa por lhe adiantar a cura.
- São quarenta reais, disse o rapaz ainda com a mão repousando sobre as caixas, e tendo no rosto um meio sorriso estranho, por indecifrável.
- Quarenta reais?, perguntou Jô, como se o rapaz estivesse de broma. Eu nunca, na minha vida, sequer ouvi falar em tamanha quantia.
- É o valor do medicamento, senhora.
- Mas é muito caro para nós.
- É um ótimo remédio para vermes. Em pouco tempo a menina estará curada.
- Olhe, moço, assim sendo, a única coisa que eu posso fazer é comprar o remédio a prestação.
- Nós aqui não trabalhamos desse modo.
- Mas eu juro que pago, pode confiar, assim que juntar o dinheiro, lhe trago tudo. Eu não posso deixar a menina sofrendo desse jeito. O senhor mesmo está vendo, olha ali no banco. Olha a cor da minha filha, moço. Tenha piedade, pelo amor de Deus!

O rapaz simplesmente fechou a mão sobre as caixas e devolveu-as, maquinalmente, ao seu exato lugar na estante. Nessa hora, Jô sentiu o sangue pulsando em cada um dos seus membros. Se o rapaz tivesse se virado para olhá-la, teria visto no seu rosto um par de olhos injetados, que não piscavam, como os de um animal que vai para o ataque.

Incontinenti, antes que o rapaz se voltasse para a bancada, Jô, com suas pernas magras, inacreditavelmente pulou o que, para o seu metro e meio seria um grande obstáculo e apanhou na estante de vidro as duas caixas de vermífugos.

O rapaz, imóvel, empalideceu, boquiaberto.

Bufando feito um animal feroz, na passagem de volta Jô tomou sob o braço esquerdo a menina, que com o solavanco gemia agora mais alto, e seguiu com ela, como quem leva um embrulho, precioso porém urgente, pela rua poeirenta.

De longe, no lusco-fusco daquele dia, pareciam formar um só corpo.


quinta-feira, 17 de maio de 2012

Primeira história do livro de Jô



Ninguém escapa à narrativa. Se escapa à sua própria, às dos demais não escapará.

E foi assim, depois de alguns meses me servindo um pontual e simples almoço, com feijão e arroz forçosamente incluídos por nutricionista, que Jô me contou um primeiro evento da sua vida.

Ocorreu quando ela ainda vivia com seu primeiro marido, homem muito ruim e com o qual teve seis de suas filhas. Havia fases de extrema penúria, em que a parca renda familiar era toda consumida em cachaça nos botecos da redondeza, dos quais ele retornava invariavelmente violento.

A mulher, ainda jovem e seguidamente grávida, muitas vezes passara fome ao lado de sua escadinha de meninos, num sofrimento que nem era possível expressar, dado o absurdo do contexto e a extrema reação do parceiro. Afora que os constantes cuidados com um bebê e mais meia dúzia de crianças impediam-na de tentar conseguir sustento por conta própria. Sempre que esboçou o desejo de realizar trabalhos fora de casa o marido proibiu-a, muitas das vezes se valendo da força física.

Durante quase uma década a base de sua alimentação e dos filhos era a farinha (de mandioca) que ela cozinhava com água e sal, fazendo um tutu insosso que oferecia tanto ao de dez quanto à de um ano, à qual nem sempre podia dar leite, já que o de vaca era caríssimo e o seu muitas vezes secava antes da hora, devido à fome, aos maus-tratos, à depressão...

O povoado em que vivia era cercado de fazendas produtoras de milho e café, e Jô algumas vezes chegara a conseguir trabalho em algumas delas, mas o esposo alcoólatra, ferido no seu brio de macho interiorano, chegou a trazê-la de volta a casa, certa feita, puxando-a pelos enormes cabelos, alegando que mulher sua jamais poria os pés fora de casa para trabalhar para outro homem.

Numa tarde de maior angústia, faltara àquela família torturada inclusive a farinha de mandioca. As crianças choravam de fome, depois de um dia inteiro à base de água morna com sal. Jô, a essa altura, sentia a fel na boca e resolveu que era preciso fazer algo. Deixou as crianças menores (eram três entre quatro e zero ano) sob a responsabilidade do mais velho, aquele que ela havia adotado quando ainda era mocinha, e disse a si e a eles que só voltaria para casa quando conseguisse alguma coisa para lhes dar a comer.

A primeira ideia que lhe ocorreu foi pedir ajuda à casa de um dos vizinhos, mas a todos eles já tinha recorrido em inumeráveis ocasiões, e a própria repetição da humilhação a mortificava mais que a fome. A cada vez que se dirigiu a um daqueles portões ou porteiras, tinha ouvido, como se fosse o pagamento que tinha que dar àqueles que a socorriam, admoestações acerca do tipo de marido que escolhera etc, mas na sua cabeça o que ecoava eram os gritos do bebê faminto. Não estando no seu lugar, ninguém entenderia como e por que se submetia àquele homem, a sua violência e mesmo aos seus noturnos assaltos.

Olhos na terra, Jô apanhava a sacola de víveres e corria de volta a casa, para cozinhar e salvar as crianças da fome de mais aquele dia.

Acontece ainda que Jô era cristã, ciosa de seus direitos e deveres enquanto súdita de Deus, mas naquela tarde uma ideia fixa lhe perseguia: caminharia um pouco mais que de costume e hoje não entraria pela porteira, sob o alarme dos cachorros bravos da casa de fazenda.

Foi o que fez: rodeou toda a cerca de madeira da propriedade e chegou aos fundos, onde sabia haver uma pequena mostra do que era a enorme plantação de milho daquele senhor, ficando esta um pouco mais distante do povoado. Ergueu o arame farpado que protegia o pedaço de terra vermelha, entrou e colheu seis espigas de milho, nessa época já quase maduras e não muito apropriadas para o cozimento direto. Meteu-as sob os braços e retornou, maquinal, a sua casa, onde as crianças, a essa hora, já tinham quase todas adormecido, de fracas.

Quando entrou, antes mesmo de se encaminhar ao fogão de lenha para acendê-lo, foi impossível conter as lágrimas: a menina menor dormira com a mão da outra, de dois anos, justo sobre o seu pequeno estômago, e, como que buscando algo que o aquecesse, segurava ainda a mãzinha da outra, apertando-a fortemente contra si.

Antes que despertassem, Jô já tinha cozido e salgado as duras espigas, que foram devoradas antes com angústia que com alegria, porque a fome, além de um certo limite, não se sacia mais com felicidade. Nesse estágio ela aplaca o paladar e come-se direto com a goela, feito os animais.

Somente naquele momento, enquanto lambia com os olhos a cara saciada de cada uma das seis crianças, amassando o milho para a menor delas é que Jô notou que deveria ter apanhado uma espiga também para si. Passado o desespero, sentia a fome gritar-lhe nas entranhas.

Naquela noite todos dormiram tranquilos, enquanto a mãe, contente e faminta, ainda velava.
Eu escutava, em silêncio, esse capítulo da dor, enquanto, com a minha lógica tão diversa da sua, pensava em como eu provavelmente teria tentado repetir o furto cotidianamente, para livrar as crianças da fome e, de outro modo, em como aquele fazendeiro tinha por obrigação aplacar-lhes a fome, já que produzia tanto e ali tão perto de gente tão miserável...

Jô concluiu então: Naquela noite eu não dormi, mas foi mais por causa da consciência pesada, por ter roubado. Eu nunca na minha vida pensei que fosse roubar alguma coisa de alguém. É uma coisa que até hoje não me sai da cabeça. No dia seguinte, bem cedo, eu peguei as crianças e fui com todas elas até a porta do fazendeiro, seu Zé Messias. Dia, eu disse! Eu vim aqui lhe pedir desculpas porque ontem eu entrei na sua terra e roubei seis espigas de milho, que as minhas crianças tinham fome e o pai não voltou da cidade com a farinha. E eu queria lhe pedir na frente delas, para que soubessem que isso não se faz, e que eu só fiz isso porque se não elas iam morrer de fome.

Apos isso, durante um ano o fazendeiro enviou, mensalmente, uma cesta básica à casa de Jô.

terça-feira, 15 de maio de 2012

O livro de Jô (introdução)


Nuvens sobre Brasília. Foto: Andréia Delmaschio.

Quando Jô nos foi apresentada em Brasília, vinda do interior de Minas em busca de trabalho, o que primeiro me chamou à atenção foi o quão explícitas eram, no seu olhar e na expressão geral, as marcas que o sofrimento deixou. O fato de ela não tentar qualquer tipo de disfarce para isso me fez pensar que do futuro também aquela mulher, praticamente da minha idade, não esperava nada - ou quase nada. Ao longo da vida aprendi a duvidar das minhas próprias interpretações de faces e gestos, mas pude confirmar, no convívio com Jô, que, infelizmente, neste caso não estava errada.

Na verdade o que a motivava a estar em Brasília era a necessidade extrema e urgente de uma cirurgia na perna de sua filha Ellen, então com cinco anos e a menor de oito irmãos, sendo, o mais velho de todos, adotivo. A menina era filha de um segundo casamento de Jô, na época em que nos conhecemos ainda vigente. O filho mais velho, que hoje é pastor evangélico, foi adotado por ela quando ainda era solteira, uma mocinha com apenas sete anos mais que o garoto abandonado pelos pais.

A princípio não foi fácil travar um diálogo com ela, porque Jô acudia sempre como quem espera uma ordem, uma reprimenda, uma reclamação ou coisa que o valha. Contudo meu estado de gestante de gêmeos parecia abrir canal para uma comunicação mais efetiva entre o que seriam, à primeira vista, apenas patroa e empregada. Uma grávida não ameaça ninguém.

A casa em que vivíamos em Brasília - como todas as da vizinhança - tinha o quarto de empregada ao lado de fora, com saída pela garagem, ao modo das senzalas. Mas como toda prisão inteligente permite delírios de liberdade, foi lá mesmo que Jô preferiu ficar, alegando autonomia e tranquilidade para fumar, além de, é claro, televisão e banheiro.

Nessa época dormíamos todos muito cedo, especialmente durante a semana. Erlon chegava do Minc às dezoito, Carol retornava do INEI por volta das dezenove e eu passava os dias em casa, trabalhando oito horas diárias na tese de doutorado sobre os romances do Chico Buarque. Jô, terminada sua tarefa, se recolhia, sempre silente, não sem antes fazer o seu passeio fumegante por entre as mangueiras da chácara, seguida de perto por Alma, a vira-latas que adotamos por iniciativa da Carol.

Assim que anoitecia, Alma sumia para dentro de sua casinha, dando sinal de vida apenas pela manhã, já com o sol alto aquecendo o planalto central.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Ostra

- Meu filho, quando você nasceu parecia uma ostra.
- É? E eu abria?

terça-feira, 1 de maio de 2012

Mea culpa

Van Gogh.


Eu juro,
eu confesso:
helminto.