sábado, 26 de maio de 2012

Barriendo la basura

Trecho do Diário de Frida Kahlo.

A senhora maltrapilha (de hoje em diante direi mais exatamente andrajosa) se aproxima sempre da minha janela, no semáforo de Jardim Limoeiro.
- Me dá uma ajuda, minha filha!
- Sim, senhora. Tem aqui um anel de prata com quatro pedrinhas de quartzo, artesanalmente fabricado no Peru, e essa aliança, de ouro e prata, também trazida de lá. Ao lado de dentro tem um nome de homem, mas a senhora ignore.
Constrangida ao me ver retirar os anéis dos dedos, a mulher arregalou os olhos:
- Eu não estou roubando não, minha filha!
- Nem eu, senhora. E nem acredito na bondade humana. Se a senhora não quiser ficar com eles, pode dar para aquele rapaz ali, que ele troca por uma pedra de crack.
- Obrigada, minha filha! - recolheu tudo e enfiou num bornal mais que surrado.
- Não precisa agradecer, senhora, eu só estou fazendo uma limpeza no meu carro.
- Que Deus leve o seu carro por esses caminhos, minha filha!
- Acho melhor não, senhora. Da última vez em que deixei que ele guiasse, furou o sinal e quase que me tomaram a carteira. Parece que tinha bebido! Ah, já ia me esquecendo: tem também esse vidro de perfume masculino fabricado no Peru. É delicioso! Eu ia pocá-lo no asfalto ali adiante, mas sempre se corre o risco de ferir uma criança, não é mesmo? Entregue-o a qualquer um, por favor.
- Está bem, minha filha...
- E mais essa muda de roupa. É simples, foi comprada para se usar em casa, mas está em bom estado e foi escolhida com muito carinho. Veja como combinam os tons de azul! (A mulher agora já me parecia triste e confusa).
- O meu marido vai querer sim, senhora.
- E, se a senhora não me leva a mal, tem também essa meia dúzia de rosas. Já estão um pouco murchas, é verdade, mas a senhora sabe, não é, flores nunca se jogam no lixo.
- Obrigada, minha filha!
- Não precisa agradecer. Não é pela senhora; é por mim. No mais, tem aqui uma série de cartas e bilhetes de amor, um sentimento inventado por um poeta italiano chamado Petrarca, no século catorze, mas foram escritos em espanhol e acho que não lhe serviriam. Eu mesma os lanço fora. Desculpa, senhora, não tenho nada de valor para lhe dar. Até logo. Boa sorte!
- Deus te guie, minha filha!

3 comentários:

  1. Pungente, bem escrito... Seus escritos emanam uma carga vital tão grande e tão forte que eu, sem conhecê-la, posso ouvir a sua voz, quase sinto o seu respiro. A este você chama crônica ou conto? Um abraço.

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  2. Olá, obrigada pela visita, pelo comentário. Acho que é uma crônica, e a escrita dela, na ocasião, me foi muito útil, necessária. Talvez isso me impeça de me isentar para tentar lê-la mais criticamente, essas coisas... Em geral, quanto mais bonito o sentimento, pior o poema - ou não? Meu abraço.

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  3. Faz sentido, mas não é o teu caso. O. A. S.

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