quarta-feira, 23 de maio de 2012

Segunda história do livro de Jô


Milena, uma das meninas mais novas, sofria, entre outras, com constantes crises de constipação e com todos os tipos de sofrimento que daí advinham. Devido à distância do hospital e mesmo da casa do único médico residente no vasto município, era sempre difícil diagnosticar com certeza as patologias da garota, que em alguns desses achaques gritava dia e noite de dor abdominal, mas, incrivelmente, levou alguns meses até que se descobrisse que o ventre inchado era o mais óbvio sintoma de uma verminose já crônica.

Quando enfim o prático local, homem muito curioso e estudioso da sua matéria, concluiu, enfim, que o vasto ventre de Melina era habitado por grandes colônias de lombrigas, receitou de imediato o melhor dentre os antihelmínticos de que dispunha na farmácia.

Sofrendo já profundamente com os acessos de dor da filha, por vezes secundadas de vômitos e, invariavelmente, de insônia, Jô abriu enfim um longo sorriso.

A criança estava deitada num banco, ao canto da farmácia, com as pernas encolhidas e as mãos sobre o ventre. Os ataques já eram, para ela, praticamente um costume, e a dor era uma norma.

Jô pediu então ao rapaz o medicamento, e ele pôs sobre a bancada duas caixas oblongas, brancas e tarjadas de vermelho. Aos seus olhos esperançosos, semelhavam o maná caído dos céus.

Perguntou então se já podia dar à menina um primeiro comprimido, ansiosa por lhe adiantar a cura.
- São quarenta reais, disse o rapaz ainda com a mão repousando sobre as caixas, e tendo no rosto um meio sorriso estranho, por indecifrável.
- Quarenta reais?, perguntou Jô, como se o rapaz estivesse de broma. Eu nunca, na minha vida, sequer ouvi falar em tamanha quantia.
- É o valor do medicamento, senhora.
- Mas é muito caro para nós.
- É um ótimo remédio para vermes. Em pouco tempo a menina estará curada.
- Olhe, moço, assim sendo, a única coisa que eu posso fazer é comprar o remédio a prestação.
- Nós aqui não trabalhamos desse modo.
- Mas eu juro que pago, pode confiar, assim que juntar o dinheiro, lhe trago tudo. Eu não posso deixar a menina sofrendo desse jeito. O senhor mesmo está vendo, olha ali no banco. Olha a cor da minha filha, moço. Tenha piedade, pelo amor de Deus!

O rapaz simplesmente fechou a mão sobre as caixas e devolveu-as, maquinalmente, ao seu exato lugar na estante. Nessa hora, Jô sentiu o sangue pulsando em cada um dos seus membros. Se o rapaz tivesse se virado para olhá-la, teria visto no seu rosto um par de olhos injetados, que não piscavam, como os de um animal que vai para o ataque.

Incontinenti, antes que o rapaz se voltasse para a bancada, Jô, com suas pernas magras, inacreditavelmente pulou o que, para o seu metro e meio seria um grande obstáculo e apanhou na estante de vidro as duas caixas de vermífugos.

O rapaz, imóvel, empalideceu, boquiaberto.

Bufando feito um animal feroz, na passagem de volta Jô tomou sob o braço esquerdo a menina, que com o solavanco gemia agora mais alto, e seguiu com ela, como quem leva um embrulho, precioso porém urgente, pela rua poeirenta.

De longe, no lusco-fusco daquele dia, pareciam formar um só corpo.


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