quinta-feira, 17 de maio de 2012

Primeira história do livro de Jô



Ninguém escapa à narrativa. Se escapa à sua própria, às dos demais não escapará.

E foi assim, depois de alguns meses me servindo um pontual e simples almoço, com feijão e arroz forçosamente incluídos por nutricionista, que Jô me contou um primeiro evento da sua vida.

Ocorreu quando ela ainda vivia com seu primeiro marido, homem muito ruim e com o qual teve seis de suas filhas. Havia fases de extrema penúria, em que a parca renda familiar era toda consumida em cachaça nos botecos da redondeza, dos quais ele retornava invariavelmente violento.

A mulher, ainda jovem e seguidamente grávida, muitas vezes passara fome ao lado de sua escadinha de meninos, num sofrimento que nem era possível expressar, dado o absurdo do contexto e a extrema reação do parceiro. Afora que os constantes cuidados com um bebê e mais meia dúzia de crianças impediam-na de tentar conseguir sustento por conta própria. Sempre que esboçou o desejo de realizar trabalhos fora de casa o marido proibiu-a, muitas das vezes se valendo da força física.

Durante quase uma década a base de sua alimentação e dos filhos era a farinha (de mandioca) que ela cozinhava com água e sal, fazendo um tutu insosso que oferecia tanto ao de dez quanto à de um ano, à qual nem sempre podia dar leite, já que o de vaca era caríssimo e o seu muitas vezes secava antes da hora, devido à fome, aos maus-tratos, à depressão...

O povoado em que vivia era cercado de fazendas produtoras de milho e café, e Jô algumas vezes chegara a conseguir trabalho em algumas delas, mas o esposo alcoólatra, ferido no seu brio de macho interiorano, chegou a trazê-la de volta a casa, certa feita, puxando-a pelos enormes cabelos, alegando que mulher sua jamais poria os pés fora de casa para trabalhar para outro homem.

Numa tarde de maior angústia, faltara àquela família torturada inclusive a farinha de mandioca. As crianças choravam de fome, depois de um dia inteiro à base de água morna com sal. Jô, a essa altura, sentia a fel na boca e resolveu que era preciso fazer algo. Deixou as crianças menores (eram três entre quatro e zero ano) sob a responsabilidade do mais velho, aquele que ela havia adotado quando ainda era mocinha, e disse a si e a eles que só voltaria para casa quando conseguisse alguma coisa para lhes dar a comer.

A primeira ideia que lhe ocorreu foi pedir ajuda à casa de um dos vizinhos, mas a todos eles já tinha recorrido em inumeráveis ocasiões, e a própria repetição da humilhação a mortificava mais que a fome. A cada vez que se dirigiu a um daqueles portões ou porteiras, tinha ouvido, como se fosse o pagamento que tinha que dar àqueles que a socorriam, admoestações acerca do tipo de marido que escolhera etc, mas na sua cabeça o que ecoava eram os gritos do bebê faminto. Não estando no seu lugar, ninguém entenderia como e por que se submetia àquele homem, a sua violência e mesmo aos seus noturnos assaltos.

Olhos na terra, Jô apanhava a sacola de víveres e corria de volta a casa, para cozinhar e salvar as crianças da fome de mais aquele dia.

Acontece ainda que Jô era cristã, ciosa de seus direitos e deveres enquanto súdita de Deus, mas naquela tarde uma ideia fixa lhe perseguia: caminharia um pouco mais que de costume e hoje não entraria pela porteira, sob o alarme dos cachorros bravos da casa de fazenda.

Foi o que fez: rodeou toda a cerca de madeira da propriedade e chegou aos fundos, onde sabia haver uma pequena mostra do que era a enorme plantação de milho daquele senhor, ficando esta um pouco mais distante do povoado. Ergueu o arame farpado que protegia o pedaço de terra vermelha, entrou e colheu seis espigas de milho, nessa época já quase maduras e não muito apropriadas para o cozimento direto. Meteu-as sob os braços e retornou, maquinal, a sua casa, onde as crianças, a essa hora, já tinham quase todas adormecido, de fracas.

Quando entrou, antes mesmo de se encaminhar ao fogão de lenha para acendê-lo, foi impossível conter as lágrimas: a menina menor dormira com a mão da outra, de dois anos, justo sobre o seu pequeno estômago, e, como que buscando algo que o aquecesse, segurava ainda a mãzinha da outra, apertando-a fortemente contra si.

Antes que despertassem, Jô já tinha cozido e salgado as duras espigas, que foram devoradas antes com angústia que com alegria, porque a fome, além de um certo limite, não se sacia mais com felicidade. Nesse estágio ela aplaca o paladar e come-se direto com a goela, feito os animais.

Somente naquele momento, enquanto lambia com os olhos a cara saciada de cada uma das seis crianças, amassando o milho para a menor delas é que Jô notou que deveria ter apanhado uma espiga também para si. Passado o desespero, sentia a fome gritar-lhe nas entranhas.

Naquela noite todos dormiram tranquilos, enquanto a mãe, contente e faminta, ainda velava.
Eu escutava, em silêncio, esse capítulo da dor, enquanto, com a minha lógica tão diversa da sua, pensava em como eu provavelmente teria tentado repetir o furto cotidianamente, para livrar as crianças da fome e, de outro modo, em como aquele fazendeiro tinha por obrigação aplacar-lhes a fome, já que produzia tanto e ali tão perto de gente tão miserável...

Jô concluiu então: Naquela noite eu não dormi, mas foi mais por causa da consciência pesada, por ter roubado. Eu nunca na minha vida pensei que fosse roubar alguma coisa de alguém. É uma coisa que até hoje não me sai da cabeça. No dia seguinte, bem cedo, eu peguei as crianças e fui com todas elas até a porta do fazendeiro, seu Zé Messias. Dia, eu disse! Eu vim aqui lhe pedir desculpas porque ontem eu entrei na sua terra e roubei seis espigas de milho, que as minhas crianças tinham fome e o pai não voltou da cidade com a farinha. E eu queria lhe pedir na frente delas, para que soubessem que isso não se faz, e que eu só fiz isso porque se não elas iam morrer de fome.

Apos isso, durante um ano o fazendeiro enviou, mensalmente, uma cesta básica à casa de Jô.

Nenhum comentário:

Postar um comentário