Flora, pensativa:
- Mãe, por que na casa do JG tem papai e mamãe e aqui em casa só tem mamãe?
- Porque o pai e a mãe dele ainda namoram e gostam de morar juntos. A sua mãe e o seu pai já não namoram e vivem cada um na sua própria casa.
Dias depois:
- Mãe, quem é aquele moço? É o irmão da Célia?
- Não, é o marido dela, pai do Felipe.
- E por que a Célia não mora aqui?
- Porque ela mora com o filho dela e o marido. Ela só trabalha aqui.
- E por que o marido da Célia não compra uma casa só pra ele?
O Aboio está de volta. É o mesmo, porém diferente. Como espaço de escrita que é, volta a servir de desaguadouro a tudo o que me encanta, ou, pelo contrário, me apavora. Depois de tantos anos de afastamento, eu mesma me desreconheço nas postagens mais antigas. Os amores são outros, as causas são outras, é outro o país.
quinta-feira, 29 de dezembro de 2011
Diálogo pela janela
O terapeuta. Escultura de René Magritte, 1967.
Francisco:
- Moço, moço! Qual o seu nome?
- Antônio.
- Hum... O senhor tem mãe?
- Tenho. Quer dizer... Tinha!
- E qual o nome da sua mãe?
- Maria.
- O senhor tem cachorro?
- Tenho!
- Mostra o seu cachorro pra mim.
- Olha aqui. (O homem ergue dois cãezinhos peludos).
- Que bonitos!
- Rs.
- O senhor tem guarda-chuva?
- Ahahahahah!
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segunda-feira, 19 de dezembro de 2011
Enigmático Noel
O Papai Noel que vimos este fim de semana foi o mais convincente de toda a minha vida. Provavelmente uma exigência do controle de qualidade. Não entendi de primeira porque parei de frequentar o ambiente natalino juntamente com o circo. A Flora mesma, de longe, notou: "- Mamãe, não é máscara, não. A barba dele é de verdade." Deve ter sido por isso que ela não quis se aproximar. Já o Francisco foi lá, trocou palavras e ganhou balas para ele e para ela. Ela ficou olhando de longe, desconfiada. O outro voltou eufórico: "- Fóla, ele perguntou se eu quero ganhar presente no Natal." "- E você, disse o quê?" "- Eu disse que não." Diante da negativa inédita, Noel nem sorriu. Mudou de script e fez perguntas de outra ordem; várias; parecia ter fumado um baseado. Francisco ficou à vontade, respondia a tudo com um respeito leve, comum entre iguais.
Enquanto isso a fila dos pagantes de fotos a quinze reais (nós éstávamos do lado dos apenas curiosos) crescia. Um garotinho chorava de medo, tendo de ser consolado pela mãe. A mim, Noel nada perguntou. Ou então eu me inclinaria e sussurraria ao pé do seu ouvido: "- Papai Noel, me dá o filme novo do Almodóvar, me dá férias de mim mesma, um orgasmo múltiplo, a paz de espírito; me dá pelo menos o espírito...
Noel podia ter de trinta a cinquenta anos. Era impossível saber ao certo, sob a roupa pesada, mas tinha uma cara de muitos divórcios - e não tirava os olhos de mim. Também parecia triste. Melhor: entediado. O dia todo sentado num sofá, recebendo crianças para a foto de quinze reais... Achei-lhe a expressão encantadora, apesar do cansaço aparente - ou por isso mesmo. Não havia caras, nem bocas, nem cena alguma. Ele não aguentava mais, seus olhos ansiavam por outra paisagem... Ele (talvez por ser um papai-noel-modelo, subespécie tropicapitalista) não sorria nem acenava (obviamente não era pago para isso), mas sustinha a pose de foto, antes mesmo que as crianças se aproximassem. E não tirava os olhos de mim.
No nosso retorno, que tivemos de retornar ainda duas vezes, por insistência do Francisco, Noel me entregou um cartão com celular e e-mail, sendo repreendido veementemente pelo fotógrafo, que, embora coberto de razão, não devia tê-lo feito diante de nós. E, afinal, isso acontece. Eu mesma, coordenando mesa de comunicações, deixei que o Henrique Lee falasse por meia hora, sendo que teria de tê-lo feito parar aos quinze minutos!
Tive curiosidade pela inscrição do cartão. Imaginei que ele se anunciasse Papai Noel... Mas não. Ali estava somente o nome terreno do curioso barbado. Que serviços ofereceria? Aceitaria me entrar em casa à noite, pela chaminé, fazendo how how how para as crianças em meio à ceia? Olhando aqueles botões de chifre, impossível afastar um leve fetiche... E ele não tirava os olhos de mim.
Vendo-o depois pelas costas, afastando-se em direção à praça de alimentação e escoltado pelas duas Mamães Noel quase bonitas, eu o achei verdadeiramente enfastiado. Almoçou bem perto de nós, hipnotizando as pessoas em torno enquanto saboreava comida árabe e suco de laranjas. Por fim aproximou-se da nossa mesa, mexeu com as crianças. Correu-me o corpo um arrepio. Seu olhar de repente me pareceu estranhamente familiar. Mas tranquilizei-me: tinha as grandes mãos muito brancas, talhadas em escritório e diferentes das de um assassino.
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domingo, 18 de dezembro de 2011
Brincar de poeta
- Mamãe, vamos brincar de poeta?
- Como é!?
- É assim: eu sou a monstra sagrada e você é a bicha papona!
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sábado, 17 de dezembro de 2011
Orfanato
Brinquedos. Foto: Andréia Delmaschio.
- Mãe, pra quem são esses presentes?
- Pras crianças do orfanato.
- E por que você vai dar isso a elas?
- Porque elas não têm pai nem mãe pra lhes comprar presentes.
Longo silêncio - e a expressão mais fundamente comovida que já vi no seu rosto:
- Então eu quero que você seja mãe delas!
quinta-feira, 15 de dezembro de 2011
Procustos ou O paradoxo do excessivo afeto
No meio da noite os gêmeos acordam e vão para o meu quarto.
Buscam calor e aconchego.
Nas noites em que acontece de irem os dois ao mesmo tempo
eu os deixo e vou dormir no quarto de um deles,
por não cabermos todos na mesma cama.
Buscam calor e aconchego.
Nas noites em que acontece de irem os dois ao mesmo tempo
eu os deixo e vou dormir no quarto de um deles,
por não cabermos todos na mesma cama.
quarta-feira, 14 de dezembro de 2011
Brincar
Candido Portinari: Cambalhota.
- Gostou? Por quê?
- Porque ele sabe brincar de tudo!
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sexta-feira, 9 de dezembro de 2011
quarta-feira, 7 de dezembro de 2011
Namorado
Em meio à conversa com uma amiga, desponta o tema, as crianças muito atentas ao que dizemos - como sempre. Pergunto então, como meio de fazê-las participar:
- Vocês também acham que a mamãe deve arranjar um namorado?
Flora em silêncio total, pensando.
Francisco, rápido e risonho: - Siiim!... Eu!
- Vocês também acham que a mamãe deve arranjar um namorado?
Flora em silêncio total, pensando.
Francisco, rápido e risonho: - Siiim!... Eu!
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segunda-feira, 5 de dezembro de 2011
A rena
- Gostou do passeio, meu filho?
- Gostei!
- E de que foi que você gostou mais?
- Da máquina de chifres!
- Gostei!
- E de que foi que você gostou mais?
- Da máquina de chifres!
Domingo, seis da manhã
Às seis da manhã eu ouvi, vindo do quarto da Flora:
- Eu tive uma idéia!
Fiz silêncio, na esperança de que estivesse falando de dentro do sonho... E veio de novo, na mesma modulação suave e clara:
- Eu tive uma idéia!
(Dos dois, ela foi quem considerou mais fundamente o meu pedido de que parassem de aportar na minha cama de madrugada, porque daí para diante eu não consigo dormir, a três. Agora, quando ela acorda primeiro, permanece no quarto. E abre gavetas, troca de roupa, fala pelas bocas dos seus fantoches. Depois, quando se enfastia - eu ouvindo tudo e tentando dormir de novo -, chega até a minha porta, onde estaciona e pergunta):
- Posso entrar?...
Quem é que pode manter-se firme diante de um pedido feito assim? E estou certa de que, caso respondesse negativamente, ela não entraria, pelo amor que já parece trazer às coisas previamente acertadas. Aliás, nunca adiantou esbravejar com ela no calor da hora e depois do mal feito - como parece não resolver mesmo com criança alguma. A regra claramente combinada, contudo, para ela é lei - muitas vezes mais do que para mim, que fiz a proposta.
- Vem cá, meu amor! (Ela me abre os braços e o sorriso). Qual foi a sua idéia?
- A gente podia brincar de pique-esconde!
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Natal em Vitória
Dennis Collette: Pinheiro.
As ruas de Vitória foram enfeitadas, como sempre o são, nesta época do ano. Na Dante Michellini as estrelas são feitas de bicos de garrafas plásticas incolores, e têm dentro uma lâmpada. Puro e simples. Econômico e ecológico.
No banco de trás conversam Flora e Francisco, olhando tudo e lançando gritos agudos quando veem mais um enfeite, que eles chamam de "um Natal". "Olha lá um Natal!"; "Outro natal!"; "Um Natal azul!"...
Seguimos em direção a um Shopping Center, para a sua primeira e tão protelada visita ao gigantesco totem.
A Flora lança, então:
- Francisco, agora eu vou fechar os olhos e você me diz se continua vendo o Natal.
- Tá bom...
- Fechei. Está vendo?
- Não, porque eu fechei também!
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sexta-feira, 2 de dezembro de 2011
Árvore de Natal
Eu realmente sou uma pessoa difícil: não gosto de circo, não como frituras, não suporto enfeites de Natal...
Mas o Francisquinho pedindo que enfeitássemos o arbusto que fica ali no hall do elevador foi realmente comovente. E ele tinha razão na sua argumentação: os enfeites agora são todos de plástico (e isopor). Não se corre mais o risco de cortar as mãos nas finas lâminas (de que material?) que compunham as tais bolas na minha infância, tornando as árvores de Natal algo intocável.
Comprei os pacotinhos super-baratos, com bolinhas de isopor revestidas de linha e presentinhos miniatura, também de isopor, enrolados em papel laminado verde e vermelho, amarrados com lacinhos dourados. Mais um papai Noelzinho de plástico e umas borboletas levíssimas que eu não sabia fazerem parte desse contexto. E tenho de concordar: tudo muito bonito!
A nossa "árvore", herança do antigo morador, suicida potencial e matricida, tem os troncos meio retorcidos. Pensei: vamos ter um Natal do cerrado!
Por azar, os enfeites vieram sem o gancho de pendurar - talvez por isso o preço baixo! Tive de improvisar tudo na hora, com grampos de papel, em meio à excitação do Francisco e à compenetração assustadora da Flora, silenciosa como sempre fica em situações que demandem concentração ou que lhe tragam grande novidade. Encarnou uma decoradora, atenta às minhas dicas de que um enfeite não ficasse muito perto do outro e de que tentássemos distribui-los igualmente por todo o arbusto.
Mas o afeto pode mesmo salvar muita coisa: quando terminamos, até a Célia estava emocionada com a beleza simples daquela árvore tão desejada!
A Flora:
- Mamãe, faltou a estrelinha de Natal! Você compra uma estrelinha?
- Compro!
E o Francisco - que nem se envolveu muito com a decoração em si, basicamente rodando em torno e observando atento, os olhos brilhando enquanto buscávamos o melhor lugar para cada uma das cores:
- É a árvore de Natal mais bonita que eu já vi!
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segunda-feira, 28 de novembro de 2011
O espírito natalino
No comercial aparece uma casa atabalhoada de árvores nevadas, repletas de bolas coloridas e brilhantes. Sobre todos os móveis veem-se guirlandas e coroas douradas. No chão, ao pé de um Papai Noel gigante, estufado, estão presentes e velas. Destoa assombrosamente da praticidade e da discrição que eu tanto prezo. Francisco parece encantado:
- Eu queria que a minha casa ficasse enfeitada assim...
- Sério? Não será perigoso a gente tropeçar em tanto enfeite?
- Não, mãe, eles são todos feitos de plástico!
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domingo, 27 de novembro de 2011
sexta-feira, 25 de novembro de 2011
Hiperurbanismo III
- Mamãe, o seu vestido está tôrtoro!
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quarta-feira, 23 de novembro de 2011
Hiperurbanismo II
- E então? Hoje é dia de ir aonde?
- Ao círculo, ver o palhaço!
- Ao círculo, ver o palhaço!
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Hiperurbanismo
- Nossa! Que camisa bonita!
- É da Língua da Justiça!
- É da Língua da Justiça!
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quarta-feira, 16 de novembro de 2011
domingo, 13 de novembro de 2011
O pequeno pândego
Fonte: http://roberto-menezes.blogspot.com.br/2010/06/curiosidades-da-mitologia-greco-romana_09.html
Caminhamos pela praia de mãos dadas - Flora, Francisco e eu. Noto que os banhistas nos olham, alguns sorrindo e outros disfarçando um olhar constrangido. Só depois percebo que Francisco, mais próximo do mar, simula perfeitamente um aleijão, um braço pendente e o passo homogeneamente coxo.
segunda-feira, 7 de novembro de 2011
domingo, 6 de novembro de 2011
Encontro com Chico Buarque (6/6) ou Estação derradeira
Gustav Klimt: O beijo.
E a rua do hotel era uma longa linha reta que subia do rio até sair do mapa. (Chico Buarque)
Chegamos ao Catete. Ele achou graça no fato de, entre tantos, eu ter escolhido justo o hotel chamado Vitória. Lançou mais uma: “Xenofobia?”. Respondi: “Não, economia”. E tive um pouco de vergonha, porque o hotel era muito ruim. Acho que foi a vez dele de se arrepender da piada; parecia não esperar por aquela resposta, a que no entanto não acrescentei nenhum tom melancólico ou ressentido. Pelo contrário, disse-a rindo, e principalmente pelo prazer de fazer rima com a sua pergunta. Mesmo porque, se quisesse, estaria muito melhor instalada. Ele é que é muito sensível às reações de quem o acompanha. E afável, cuidadoso com as palavras, especialmente quando se pisam certos territórios, como esse, das diferenças econômicas. Ou talvez tenha imaginado – por que não? – que uma pesquisadora de sua obra merecesse melhor acolhida na cidade. Ergui a cabeça e olhei de frente o hotel, tentando espantar a sensação ruim de me sentir tão pobre perto do Chico Buarque, coisa que jamais me afligiria longe dele, e cogitei: “Ah, ele não o conhece por dentro, para ele o hotel é essa caixa de concreto com a placa azul na porta escrito Vitória”. E, de fato, por fora não assustava, e dali ainda se usufruía a presença das árvores altíssimas do jardim do Palácio, do outro lado da rua. Por dentro é que eram elas. Ouviam-se discussões e altos gemidos, batidas de porta e canções do Roberto Carlos. Tudo numa só noite. Era a primeira vez que me hospedava ali, e provavelmente a última. Agradeci pela entrevista - não sabia ao certo que termo usar -, pelo jantar e por ter me acompanhado até o hotel. Ele acrescentou que não foi nenhum favor e que eu não imaginava que coisa boa tinha sido para ele me conhecer, independente do que eu viesse a escrever a seu respeito.
– Quando vai ser nossa próxima entrevista?, disse num ímpeto.
– Bom, agora eu retorno a Vitória e devo iniciar a escrita do texto propriamente dito.
– Vitória (um olhar de quem busca lembranças longínquas)... estive lá mais de uma vez!
– Ah é? E quando foi a última?
– No começo de 90. A lembrança do lugar me traz uma certa... melancolia. Talvez fosse mais pela situação pessoal que eu vivia na época.
– Ah, são quinze anos, Chico! Hoje talvez a cidade te surpreendesse. Houve muitas mudanças. E a natureza por lá também foi generosa.
– É, eu sei. Me lembro bem da vista de um castelo que fica no alto de uma pedra.
– O Convento da Penha.
– Isso! Como é bonita aquela junção de pedra e água. É como um Rio de Janeiro em miniatura, não?
– Ah, sim, lembra.
Recostou-se na porta de lá, ficando quase de frente para mim, eu aguardando o momento de descer. Fez um silêncio curtinho e depois, erguendo um pouco a cabeça, como quem quer adiantar uma resposta imaginária: – Quem sabe a nossa próxima entrevista pode ser feita em Vitória!?
– Puxa! Seria uma honra, de verdade, tê-lo em terras capixabas – puxei a formalidade pelo rabo.
– Estou apenas aguardando o convite oficial – completou, esboçando no fim da frase um meio sorriso, que agora me pareceu de falsa timidez, porque desmentido por um olhar muito firme, que o trazia aqui adiante, malandramente.
Eu não sabia bem o que dizer. – Pois o convite está sendo feito neste momento, lancei, olhando discretamente o relógio do painel. Apenas é preciso nos prepararmos lá para recebê-lo como merece – introduzi desajeitada um plural que era, a um só tempo, de medo e modéstia.
– Não é necessário se preocupar com nada, Andréia, de verdade. Me dê apenas seu telefone e acho que no próximo mês vou rever a sua cidade.
Abri a bolsa, arranquei uma folhinha da caderneta e fui pondo o telefone de casa e o celular, com o código 27 adiante (imaginei que o meu perfil mostrasse uma seriedade excessiva, eu não sabia mais em que terreno estava pisando). – Vou anotar também o meu e-mail, sim?
– Por favor!
Entreguei o papelzinho, que ele dobrou ao meio e pôs no bolso da camisa.
– Foi um grande prazer conhecê-la!
– Ah não, essa frase tem de ser minha, Chico Buarque de Hollanda!
– Até breve então!
– Até! E obrigada!
Vieram os dois beijinhos, o perfume agora mais suave. E um terceiro. Meu deus, o Chico Buarque me roubou um selinho.
sábado, 5 de novembro de 2011
Encontro com Chico Buarque (5/6) ou Carioca
Guto Holanda: Rio de Janeiro.
Porém a proposta não veio e eu começava a me sentir meio desamparada no Rio de Janeiro, a idéia de ter que voltar para o hotel precário no Catete, depois de planejar dormir enfim em casa, as roupas limpas se esgotando, no último dia do semestre. Sempre que terminavam as aulas no Rio, mesmo sabendo que retornaria no mesmo dia, se instalava em mim uma nostalgia que eu nunca soube ao certo se era ainda de Vitória ou se já era do próprio Rio, que aquela cidade, com seus deleites e horrores, penetra sutil e demorada, porém inexoravelmente. A bolsa pesada de apostilas, a rodoviária assombrosa, a viagem noturna de ônibus pela frente, a chegada a Vitória pela madrugada, com a noite de sono perdida, o dia seguinte também perdido na cama, recuperando o irrecuperável. Nuvenzinhas negras começaram a baixar e o meu célebre companheiro, com a perspicácia que nem mesmo toda a timidez do mundo conseguiria apagar da sua expressão, pareceu ler cada um dos meus pensamentos. Fiz na hora a pausa clássica que anuncia as decisões peremptórias, tomei um gole d’água e iniciei as despedidas. Ele se ofereceu para me acompanhar até o táxi. Aguardamos alguns minutos pela nota do restaurante, cujo valor sugeri que dividíssemos, mas ele se opôs e disse que da próxima vez eu poderia convidá-lo. Saímos em silêncio. Apenas o garçom: “Boa noite, Chico! Boa noite, senhora!”. Lá fora persistia o calorzinho que as chuvas finas só fazem redobrar. Nenhum dos dois sabia ao certo onde ficava o ponto de táxi. Agradou-me perceber tamanha distração em alguém que conhece bem o lugar. A minha ausência de senso de direção sempre se felicita com essas fraquezas alheias. Logo depois vários amarelinhos passaram, seguidamente, ora lotados, ora em disparada, impossível abordá-los em meio ao fluxo intenso daquela noite que para outros apenas se iniciava. Parecíamos dois estrangeiros, com dificuldades para erguer a mão com atitude ou fazer a cara decidida de quem exige uma corrida. Fomos tão inaptos a parar um táxi quanto resolutos para decidir que daquele mato não sairia coelho, podíamos desistir. Não sem um certo constrangimento, ele disse que me levaria até o hotel, e eu aceitei, depois de algum protesto; acrescentei que não gostaria de atrasá-lo mais etc. Imaginei que o Chico Buarque tivesse um motorista esperando ali perto, mas descobri que ele mesmo é que dirigia o carro azul-marinho parado na rua que fica por detrás do restaurante. Abriu-me a porta. Entrei. De dentro, aproveitei para enquadrá-lo nos vidros do carro enquanto ele o circundava para entrar, e assim ele me parecia incrivelmente mais familiar, acostumada que estou à distância das telas de tevê e das capas de disco. Pareceu-me um pouco preocupado, talvez com o movimento quase imperceptível de três rapazes no fim da rua meio deserta. Seguimos em direção ao Catete e ele ia me apontando algumas praças e monumentos já meus conhecidos, mas dava indicações que fugiam totalmente ao senso comum da ciceronagem, e mesmo da lógica, dizendo coisas como - apontando o Teatro Municipal: naquela esquina ali me recostei um dia para fumar; e sobre a Praça Mauá: nesse ponto vi o homem mais feminino que se pode imaginar; tão feminino que, na verdade, era uma mulher. Era belíssimo vê-lo à vontade, fazendo brincadeiras pueris. E que humor! Emendava, uma na outra, anedotas que a mim pareciam novinhas, partindo das coisas mais simples que dizíamos. Vendo-o ali, o olhar absorto cortado pelas luzes da cidade, os dedos claros contrastando com o couro negro do volante, tive de me render em silêncio a parte da mitologia que cerca a sua figura e percebi que a minha preocupação com isso já se tornava obsessiva. Prometi a mim mesma salvar a tese dela – da obsessão. Perguntei sobre o ludopédio, o jogo que ele criara para a Grow no final da década de sessenta e que, dizem, não foi sucesso de vendas por exigir dos jogadores um raciocínio muito acurado. Disse que era uma brincadeira que inventou para jogar sozinho e que no começo pensava naquilo como uma homenagem póstuma ao filho que nunca teve e a quem gostaria de levar ao Maracanã para ver as finais do Fla-Flu, mas depois um amigo sugeriu que vendesse a patente para ganhar algum dinheiro, e aí a coisa não deu certo. Diferentemente da maioria dos que dirigem no Rio, guiava sempre sem passar dos setenta ou oitenta, mas em compensação não olhava a pista, os semáforos, os retrovisores. É carioca mesmo, pensei.
sexta-feira, 4 de novembro de 2011
Encontro com Chico Buarque (4/6) ou Trocando em miúdos
Picasso: Bebedoras de absinto.
Pode ser que então não chovesse; a chuva imprimiu-se mais tarde na memória. (Chico Buarque)
A chuva tinha cessado. O jantar veio rápido, mas apenas beliscamos, eu pela excitação do encontro e porque a conversa seguia animada, ofuscando os atrativos gastronômicos. Aceitei um cigarro, mais para poder vê-lo estendendo o isqueiro na minha direção, esse clichê cinematográfico que em meio à dureza cotidiana ainda me encanta ver os homens executarem. Foi aí que comecei a imaginar como e para quem falaria depois sobre o meu encontro com Chico Buarque. Deviam ser já umas dez horas e ele não aparentava cansaço. Acordei com meus botões que ao menor sinal de declínio da conversa eu daria a partida, para não o deixar exausto logo na primeira entrevista, que acabara por não ser bem isso. Num certo momento dissemos que parecíamos antigos colegas de ginásio que se reencontravam depois de muito tempo, tamanha a facilidade com que fluíam os assuntos, já no primeiro encontro. A expressão “primeiro encontro” era dele, então pensei que não o havia desagradado, e que poderia inclusive vir a acontecer um segundo, por que não? Afinal, ali estavam uma pesquisadora e o seu objeto de estudo. Se não cuidasse, lá ia eu de novo caindo na arapuca do mito. Falamos principalmente sobre música e um pouco da literatura brasileira atual, em especial de Noll e Nassar, este último nossa paixão comum. Os assuntos iam de Guimarães Rosa à novela das oito, e quase chegaram ao futebol. Minha completa ignorância nesse campo parecia a ele tão previsível que passou a bola rapidamente. E cantamos versos de Noel, Cartola, Chico César e dele próprio. Nesses ele quase que silenciava, fazendo uma segunda voz suavezinha, percebi que para observar a interpretação de alguém tão leigo e no entanto completamente à vontade em frente ao compositor, que de cantar eu não tenho o mínimo pejo. Ele no entanto enrubesceu quando citei o texto elogioso do compositor paraibano, seu xará, que diz que “ser homem no país de Chico Buarque é difícil”. Baixou a cabeça um pouquinho, sem graça. A lembrança de sua contrariedade permanece como uma nódoa, a única parte desse nosso encontro que eu talvez quisesse apagar, o diacho da minha cristandade culpada misturada aos ímpetos provocativas da ariana. Diante do seu rubor achei que tinha ido longe demais, resolvi não desenvolver o assunto, mas afirmei que o texto de Chico César é belíssimo, e de uma admiração tão incondicional que beira a ironia. Ao me perceber desviando o caminho do elogio para a crítica, ergueu a cabeça subitamente, me encarando de novo com o bom humor do início. E me segredou uma situação comovente sobre a gravação de “Cecília”, em As cidades, mas isso eu não posso contar aqui. Percebi que o Chico Buarque aceita muito bem as críticas; os elogios é que realmente o incomodam. Tudo é ego, pensei. E ego espetando ego. Tudo vaidade. Eu citando o Chico César, o Chico Buarque temendo o seu elogio, aceitando-o – ou fingindo aceitá-lo – somente quando disfarçado em crítica. Pensei que se não fosse a nossa primeira conversa, eu com certeza traria o assunto à tona. Sem nenhuma intenção de deitar o homem num divã do qual não saberia como retirá-lo depois, mas somente pelo prazer da polêmica. O bate-papo ia bem, ríamos muito, mas resolvi que por enquanto já estava de bom tamanho. Fui dando à conversa aquele tom de despedida sem muita convicção, situação em que basta o outro dizer um “fica mais um pouco” e a gente volta a se sentar, permanecendo até a madrugada do dia seguinte.
quinta-feira, 3 de novembro de 2011
Encontro com Chico Buarque (3/6) ou Romance
Renoir: Guarda-chuvas (detalhe).
Não é bem um rosto, é mais a identidade de um rosto, que difere do rosto verdadeiro quanto mais você conhece a pessoa. (Chico Buarque)
Passaram-se vinte minutos, uma chuva fina começou a cair lá fora, a espera já me angustiava quando ele chegou com os cabelos molhados, se sacudindo feito um adolescente, parecia que entrava em casa. Cumprimentou o garçom e veio direto à nossa mesa. Nessa hora o sem jeito dele com as mãos me levou o resto da adrenalina, eu queria deixar o Chico Buarque à vontade na minha presença. Cúmplice, por solidariedade, reajo sempre assim diante dos mais tímidos que eu, correndo o risco de parecer à vontade demais, especialmente quando bebo. Cruzou a mesa, me deu os dois beijinhos não muito comuns no Rio (perfume gostoso!), sentou-se e foi falando do tempo, tema indispensável para se iniciar um diálogo, mesmo com o Chico Buarque. Por alguns instantes, enquanto ele falava sem saber muito bem como me olhar ainda, receei cair na armadilha mitológica e emudecer, depois fui alcançando a difícil descontração, trazendo de volta a anedota que ele fizera ao telefone, para deixá-lo a par de que eu não era jornalista e que não me interessavam os seus romances com a revista Veja. Ele achou graça no novo trocadilho, estava sem dúvida bem-humorado. Chamou o garçom, me ofereceu uma taça de vinho. Tive medo de que me pedisse alguma sugestão, que esses detalhes sempre me constrangem, mas a marca parecia acertada entre eles desde sempre. Seguimos rápido para algumas futilidades. Ele queria saber quem eu era, o que estudava, por que o interesse pelos seus livros. Fui dando as informações oficiais: evitei dizer Semiologia, disse Federal do Rio... E depois comecei a falar que me interessava especialmente pela função autoral no romance. Ele abriu um olhão surpreso, quis saber mais detalhes e eu expliquei que foi Budapeste que trouxe a idéia à tona para mim e que portanto quem pensou a coisa primeiro foi ele, o ficcionista. Não resisti. Perguntei se ele conhecia a meia-polêmica Barthes-Foucault acerca do autor e ele disse que não, mas de modo algum me convenceu. Tenho certeza de que estava mentindo. Perguntou se se tratava dos enrolos de direitos autorais e eu disse que sim, mas que jamais abordaria a questão do ponto de vista jurídico, por exemplo, que não fazia parte do meu métier, me importava o texto, em especial o seu texto e as personagens nele envolvidas, entre elas ele próprio, enquanto personagem-autor. Também não desenvolvi questões teóricas, que com certeza não lhe interessavam. O olhar dele se ampliava à medida que eu ia falando. Parecia nunca ter conversado com ninguém acerca dos seus escritos, imagine! Lembrei a cara de aprendiz admirado que ele faz quando canta em dueto, seja com o Dorival Caymmi ou com a Paula Toller. Enfim, o homem é um delicado. Pensei que talvez estivesse me achando uma dessas cricríticas chatas, mas à medida que a marca do vinho ficava mais translúcida na minha taça fui percebendo que não. Ele estava de fato interessado no assunto, que acompanhava concentradíssimo, desviando o olhar apenas para sorver mais um gole, de vez em quando. Nunca tive tão bom ouvinte para as questões ainda em gérmen da minha tese e, embora para mim parecesse que eu só dizia coisas óbvias ao autor do texto, ele, volta e meia, se surpreendia em silêncio com algumas colocações - percebi nos seus olhos e no sorriso inteligente que esboçava enquanto eu falava. Fui notando nele a contradição: achou ótimo que eu quisesse discutir as redes mitológicas que desde o início da carreira como compositor se armaram em torno de sua figura e de seu nome. Ele que, muitas vezes, se esforçara por desfazê-las, reforçando-as ainda mais, nesse esforço, tendo tido sempre consciência do paradoxo e, por que não dizer, valendo-se muito bem dele. E ali estávamos nós: o mito, que se construiu no ato de desconstruir-se, e eu, que o reconstruo, na pretensão de desconstruí-lo. Ou o vinho estava muito bom ou ele sorvia as palavras com gosto, porque chegou a propor um brinde, e acho que já chegávamos ao fim de uma garrafa. Acrescentou que a minha tese estava lhe dando um imenso prazer. Tirei o chapéu e coloquei-o na cadeira ao lado, para contrabalançar o calor do vinho.
quarta-feira, 2 de novembro de 2011
Encontro com Chico Buarque (2/6) ou Fantasia
Salvador Dalí: Galatea de esferas.
Um artista famoso não correria de caneta na mão atrás de sua admiradora. (Chico Buarque)
O restaurante, por fora, me pareceu despojado. De repente me senti incrivelmente à vontade atravessando a rua para encontrar Chico Buarque de Hollanda. Ia tentando apagar da mente as piadas infames que lembrei no táxi, aquelas que no final dizem sempre que toda mulher é apaixonada por Chico Buarque. Pensei que com certeza ele não ia achar isso de mim, já que dei um tom seriíssimo à nossa conversa pelo telefone e porque, afinal, lá estava eu, sem glamour, vestida simplesmente e portando o olhar de gente honesta que deus me deu. Na dúvida, fui com a bolsa maior, onde coube bem o caderninho de anotações, para o caso de o papo se estender, ou de ele resolver me passar alguma informação mais precisa sobre algo. Eu não queria chatear o homem, mas também não podia simplesmente deixar que ele conduzisse o diálogo, já que a interessada no assunto era eu. Por alguns instantes, enquanto aguardava que o semáforo se abrisse, confesso que quase perdi de vista a tese, e se alguém me perguntasse mesmo sobre o que era eu já não seria capaz de responder assim, de estalo. Deu um branco ali, mas passou rápido. Semáforo aberto, lá fui eu, pé por pé, pé por si, diria o personagem de São Marcos. O garçom aguardava na porta, como era de praxe naquele horário em que ainda não havia movimento. Pediu que me identificasse para saber se tinha reserva e aí então eu fui ousada como nunca antes. Disse que a reserva estava no nome do senhor Chico Buarque. E disse isso com uma simplicidade tão forjada que tive medo de ele não acreditar, mas de repente me lembrei de que estava no Rio. No Rio, tudo pode. E não é que havia a tal reserva? A mesa, pequena e redonda, ficava quase num canto escuro e um pouco abaixo do nível das demais, posição que me pareceu no mínimo curiosa. Lembrei a famigerada e controversa timidez do compositor e de ter lido em algum lugar que aquele era seu restaurante predileto. Supus que a mesa já fosse meio cativa e que ele estaria à vontade ali. Faltavam dez minutos para o horário do encontro. Preferia não ter chegado antes do cavalheiro. Devia ter entrado na loja de sucos que fica em frente, ter dado um tempo por lá. Poderia vê-lo chegando, saltando do carro (com chofer?), ver como ele se movimenta na rua, se está magro, bem vestido, ou com cara de quem antecipa um compromisso chato... Enfim, lá estava eu. O melhor agora era relaxar e colocar os pensamentos em ordem. Quando ele chegasse eu não poderia simplesmente cumprimentá-lo e ficar olhando, tentando descobrir se à noite os olhos ainda mantêm o tom ardósia. Eu havia de ter perguntas, claro. E na verdade tinha muitas. O problema todo seria contextualizá-las. E se ele ficasse decepcionado em não encontrar uma fã típica, ou mesmo um mulherão interessado nas sobremesas? Cortei a viagem logo, logo, que já estava mentalmente quase esnobando o Chico Buarque, e mandei brasa: deixei acesas ali, claras na mente, umas cinco ou seis questões indispensáveis para a minha pesquisa, e sabia que essas poderiam se desdobrar em algumas dezenas, a depender da paciência do interlocutor.
terça-feira, 1 de novembro de 2011
Encontro com Chico Buarque (1/6) ou Ludo real
Cícero Dias: Mulher sentada com espelho.
Sendo provável que nos sonhos as vozes venham dubladas. (Chico Buarque)
Encontrei o Chico Buarque no Rio. A princípio achei que fosse impossível. Telefonei para o número fornecido pelo curador do site e o próprio Chico atendeu. Reconheci a voz com dificuldade e medo de chamar algum assessor de “Chico Buarque!?”, de parecer ingênua. Eu já estava indo para a rodoviária, pegar o ônibus de volta para Vitória, telefonei de dentro do táxi. Conversamos alguns minutos e eu expliquei que fazia tese sobre os seus romances. Ele brincou, dizendo que a revista Veja também escrevia sobre os seus romances, jogou logo um balde de gelo, mas me mantive firme. Rimos um pouco e ele disse que o Wagner já tinha lhe falado sobre mim. Eu não podia perder aquela oportunidade. Então propus, com muito jeito, que conversássemos, futuramente, porque, já que eu estudava a questão autoral, e que no meu trabalho ele próprio era uma personagem, seria interessante que constasse dos meus relatos também uma entrevista, caso ele não se opusesse. Ele topou, disse que tinha livre o fim da tarde e eu senti um torpor nas pernas, não pensei que um assentimento viesse tão rápido. Deixei que ditasse o endereço do restaurante e fui anotando na própria passagem que trazia na mão, com uma letra trêmula que deu medo de depois não entender direito, que eu não conheço tão bem o Rio. Desliguei o telefone e respirei fundo. O motorista perguntou se eu ia me encontrar com o Chico Buarque e eu nem respondi direito. Estava meio atordoada, achando que ele tivesse me passado um trote. Só me faltava esta: um trote do Chico Buarque. Não fui à rodoviária tentar adiar a passagem, voltei direto ao hotel para tomar um banho e recuperar a serenidade, combinando já com o chofer a mudança de planos. Eu tinha três horas para ficar apresentável, seria apanhada às quatro. A recepcionista com quem, poucas horas antes, quitei as diárias, riu divertida e com naturalidade, como se já me esperasse, quando me aproximei dizendo que ficaria com o quarto mais um dia. Parecia acontecer a todo momento. Subi com a bolsa, pensando em que roupa vestiria, o que diria ao Chico Buarque. Confesso que quase desisti, o medo me empurrando para trás e uma alegria nervosa para diante. Tomei um banho morno, vesti a saia azul de florzinhas, blusa e sapatilha brancas, e ousei pôr o chapéu azul que só tenho coragem de usar no Rio. Naquele momento, ser incógnita na cidade me encheu de alegria e a minha profunda timidez foi se afastando aos poucos. Me achei mesmo bonita quando passei pelo espelho do corredor do hotel. Fui sem perfume, sem batom, a boca vermelha, afogueada ainda da surpresa.
segunda-feira, 31 de outubro de 2011
Teatro
Fonte: http://www.ecult.com.br/noticias/grupo-aberto-teatro-universitario-da-ufpel-acolhe-novos-integrantes
- Mãe, vamos brincar de teatro?
- Vamos!
- Eu sou a Emília!
- E eu?
- Você é o palco.
- !?
sábado, 29 de outubro de 2011
Festa do Guilherme
- Mãe, a festa do Guilherme é minha?
- Rs, é a festa do Guilherme, mas é sua também, porque você foi convidada.
- Então a festa é de todo mundo?
- É... Festa é uma coisa nossa, que a gente faz e então fica sendo dos outros também.
quarta-feira, 26 de outubro de 2011
Corpo humano
A professora:
- Hoje nós vamos estudar o corpo humano, que é o corpo do ser humano. O ser humano é todo aquele que veio do homem. Por exemplo você, Flora. Você veio do homem?
- Não, eu vim de mulher.
- Hoje nós vamos estudar o corpo humano, que é o corpo do ser humano. O ser humano é todo aquele que veio do homem. Por exemplo você, Flora. Você veio do homem?
- Não, eu vim de mulher.
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Ser humano
De madrugada, aos 38 de febre:
- O Francisco é um ser humano, mãe?
- É, sim.
- Ah... Um ser humano do olho marrom!
- O Francisco é um ser humano, mãe?
- É, sim.
- Ah... Um ser humano do olho marrom!
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terça-feira, 18 de outubro de 2011
Minha mãe
Rembrandt: Velha senhora lendo.
Minha mãe sempre foi, para mim, o signo da delicadeza. Apesar de uma longa infância no mais íngrime dos campos capixabas, filha de agricultores italianos imigrantes, ela é daquela estirpe de gente que – afora todas as contradições inerentes ao humano – emana elegância.
Minha mãe foi uma mulher nervosa, por vezes destemperada, na sua juventude – e esse tempo se deu muito antes de que se falasse em TPM, e um pouco antes de que se disseminassem os variados métodos contraceptivos... Como não estou certa de que as doenças e similares existam antes de sua criação linguística, eximo-me de especular se o primeiro desses componentes já estava presente lá, guiando os seus achaques, que contudo me pareciam – ou hoje parece a mim terem sido – rigorosamente mensais.
Minha mãe não se sentou num banco de escola por mais de seis meses. Foi na época em que se escrevia numa pedra (sim, uma pedra preta usada à guisa de caderno, não de lousa), mas aprendeu a se expressar por escrito com firme clareza, internalizando depois algumas normas, todas elas a partir das correções que fazíamos nos bilhetinhos que ela deixava ao sair, de manhã, para o salão de costura. Nós, bons alunos da vida que ela nos legou, respondíamos respeitosamente, acentuando porém, pontuando, corrigindo. Na mesma idade da pedra aprendeu ainda, com desenvoltura, as quatro operações, o que foi de muita utilidade depois, na minha própria introdução ao mundo do cálculo não virtual.
Minha mãe raramente elevava a voz, jamais dizia um palavrão. É delicada no comer, no vestir, no falar... Mesmo assim levamos bons tapas e chineladas marcantes. É possível que possua todos os defeitos que costuma ter uma pessoa, mas, com sua singeleza de modos, conseguiu marcar em mim essa lembrança, que creio mesmo destoar daquela que guarde, por exemplo, minha irmã. Não importa agora cada tomo que venha a deixar: o conjunto da obra é essa doce memória que já se forma e que permanecerá.
Minha mãe leu todos os escritos que publiquei, impressionando-me com suas perguntas e comentários, mesmo sobre aqueles mais desprovidos da atração do enredo. Na última visita que me fez, surpreendi-a às gargalhadas, lacrimejante, no escritório lendo Turandot!
Minha mãe foi pobre, cozinhou em fogão a lenha, casou-se sem paixão... Conseguiu, mesmo assim ou por isso mesmo, insuflar, até onde pôde, a nossa paixão pela liberdade, embora nunca tenha realizado o desejo - para tantos tão prosaico - de estudar e tornar-se professora, e embora nem mesmo tenha realizado o simples feito de guiar um carro...
Minha mãe vive uma funda religiosidade, para além de sua experimentação nas religiões, mas nunca discriminou ou recriminou os filhos ateus, nem jamais nos obrigou a frequentar a igreja. Sua inteligência lhe beneficia, ao menos, com o direito à dúvida. Minha mãe fala sobre homossexualidade, tem opiniões e curiosidades políticas.
Minha mãe, mais que tudo, tem humor, e, mesmo antes de ter conhecido fantasmas como o do câncer - e como que se preparando já para enfrentá-lo -, nunca se apavorou com a descoberta das nossas por vezes perigosas experimentações de jovens, chegando mesmo a se oferecer, carinhosamente, para plantar umas sementinhas de maconha: “Se é uma planta, vou cultivá-la como a todas as outras!”
Minha mãe, mais que tudo, tem humor, e, mesmo antes de ter conhecido fantasmas como o do câncer - e como que se preparando já para enfrentá-lo -, nunca se apavorou com a descoberta das nossas por vezes perigosas experimentações de jovens, chegando mesmo a se oferecer, carinhosamente, para plantar umas sementinhas de maconha: “Se é uma planta, vou cultivá-la como a todas as outras!”
Se eu pudesse, ter-lhe-ia “puxado” inteira...
Bipolar
Flora me olha com ambas as mãos diante da face, unidas e fechadas feito conchas:
- Mãe, o que é bipolar? Bipolar é isso?
- !?
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domingo, 16 de outubro de 2011
Esquecimento
- Mãe, esqueci!
- O quê?
- Não sei, esqueci!
- Rs.
- O quê?
- Não sei, esqueci!
- Rs.
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sábado, 15 de outubro de 2011
Tia Gi
- Mãe, eu quero ser motorista de caminhão!
- Quando você crescer, tá bom?
- Tá bom. E você, Fola? Vai ser o quê?
- Eu vou ser a tia Gi!
- Ah é? Quer ser professora, minha filha?
- Não, eu não quero ser professora; eu quero ser a tia Gi.
- Ah, entendi...
- E quem vai ser a criança, mamãe?
- Quando você crescer, tá bom?
- Tá bom. E você, Fola? Vai ser o quê?
- Eu vou ser a tia Gi!
- Ah é? Quer ser professora, minha filha?
- Não, eu não quero ser professora; eu quero ser a tia Gi.
- Ah, entendi...
- E quem vai ser a criança, mamãe?
quarta-feira, 12 de outubro de 2011
Menino ou menina?
- Mamãe, vamos brincar de neném?
- Vamos.
- Fica deitada que eu vou colocar o homem-aranha em cima da sua barriga.
- Tá bom.
- Agora ele vai nascer. Pronto, nasceu.
- É menino ou menina?
- Menino e menina!
domingo, 9 de outubro de 2011
Planeta
Planeta Terra. Fonte: http://kobunmentezen.blogspot.com.br/2011/10/por-respeito-ao-planeta-terra.html
- Mãe, por que é que está de noite?
- Porque o sol está do outro lado do planeta.
- Planeta?
- É, o planeta Terra, onde vivemos.
- Aqui é um planeta?
- É.
- Então eu vou embora daqui. Eu não quero morar num planeta!
Diabo
Arcimboldo: Outono.
- Mãe, eu queria comer um diabo!
- Um diabo?
- É, aquele verdinho que parece um chapéu de duende!
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quinta-feira, 6 de outubro de 2011
Caixinha de remédios
- Mãe, isso aí é uma pomada?
- Não. É uma tomada.
- Por que, então, ela fica junto com os remédios?
- Não. É uma tomada.
- Por que, então, ela fica junto com os remédios?
segunda-feira, 3 de outubro de 2011
No meio da noite
Na mesma idade que têm hoje os meus filhos, do mesmo modo e com a mesma frequência que um deles, eu sempre corria, no meio da noite, para a cama de minha mãe e, até onde consigo me lembrar, a sua índole diurna por vezes irritadiça, à noite, mesmo depois de um dia exaustivo ao pé da máquina de costura e das clientes, invariavelmente chatíssimas, assim como também já me pareciam, naquela época, os assuntos que se propunham discutir (cor, textura, trama, modelo, caimento), jamais foi alquebrada por um grito de rechaço à criança amedrontada que eu fui, ou por qualquer outro rasgo de impaciência diante da minha insônia precoce.
Não digo que fosse uma santa resignada; nem que devotasse aos filhos uma cota infinda de atenção. Ao contrário: estou certa de que lutavam nela - que antes de ser mãe era uma pessoa, e mulher - tanto a necessidade cruciante de suprir a nossa subsistência quanto a ânsia por alguma liberdade da sua difícil condição.
No entanto, no meio da noite, a sua voz firme e tranquila, vinda do escuro insondável do quarto, abatia monstros e fantasmas. Sua cama era uma fortaleza contra os demônios do pesadelo. Aconchegada ao calor do seu corpo, eu um dia fui imortal. Dali, nem deus nem o diabo me arrancariam. O seu hálito doce abria um halo onde eu fruía a calma e a certeza de uma noite inteira de sono suave e profundo.
Essa sua delicada firmeza em me atender sempre com paciência, no meio da noite, não me curou completamente da insônia, que ainda hoje me faz companhia, mas criou como que um arcabouço psíquico para as noites de desespero.
Quando uma criança desperta, à noite, envolta em pavor, é preciso que o aconchego lhe chegue rápido e seguro. É possível que seja essa a única herança que deixarei, contra a moda psicológica do adultismo e da contenção. Nenhuma criança (ou adulto) que é assombrada pelo seu próprio inconsciente consegue usar o seu pavor como moeda de troca, manha ou pirraça - para sabê-lo basta olhar-lhe nos olhos. E ainda que fosse esse o risco, eu preferia corrê-lo. No meio da noite, jamais bramar. Basta a cada criança o seu próprio demônio.
Casamento
Todo casamento tem seus baixos e baixos.
Eu tomo Prozac,
ele toma Zoloft -
e somos felizes para sempre...
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Epifania
Aldemir Martins: Galo.
Depois de tanto comer "frango" assado na escola, as crianças sofrem uma epifania ao ver a avó acariciando uma galinha grisalha que acabara de pôr um ovo:
- Vovó, a galinha é um frango!!!???
sábado, 24 de setembro de 2011
Quarto de brinquedos
Barbie e Max Steel. Foto: Andréia Delmaschio.
Não ponha os soldados de chumbo na mesma cesta que a fazendinha. Eles têm armas e podem querer caçar os animais. Marcha, soldado, cabeça de papel. Os super-heróis estão todos aos frangalhos. A cabeça do aranha não adere mais ao tronco, depois de repetidos deslocamentos. Minha boneca de lata bateu a cabeça no chão. Ninguém aguenta mais colar a máscara do batman e nem se pode encontrar, em meio a tanto plástico colorido, as asas quase invisíveis da pequena fada, convertida agora numa menininha suave, porém sem vôo. Eu sou pobre, pobre, pobre. As casinhas, com suas portas e janelas desmontáveis, entediam. Os quebra-cabeças mais complexos logo se tornam previsíveis. Atirei o pau no gato. À exceção da boneca de lata, todas as outras permanecem intocadas, sem atrativos - que graça pode haver em trocar-lhes a roupa? - e, quando falam, suas frases piegas se repetem ao longo da noite, tirando o sono. Pela estrada afora eu vou bem sozinha. Os violões têm as cordas rompidas com a primeira canção de duas notas; os pistões perderam os pinos. Vem de lá seu delegado, pai Francisco foi pra prisão. As rodas dos carrinhos não resistiram a brincadeiras e faxinas. Pirulito que bate, bate. Os ursos de pelúcia estão repletos de ácaros ou então perderam o recheio por um rasgão aberto na costura. Tubarõezinhos sem dentes, corujinhas sem olhos, macaquinhos sem rabo e coelhinhos sem orelhas, que trazes pra mim? O avião foi jogado do alto da cama e se chocou contra os tigres de borracha, originando farta carnificina. Há manchas de tinta pelas paredes. As canetas novas, ou não funcionam, ou esburram. O cravo brigou com a rosa. Encheram os lençóis de motivos florais. Dos sete anões, restaram cinco, e um apenas, dos três porquinhos. É mentira da barata, ela tem é uma só. Em meio ao caos contudo o superomem se casou com a branca de neve e foram felizes para sempre, trancados na torre de lego. Cuspiu no chão? Limpa aí, seu porcalhão, tenha mais educação. A barbie sentou no colo do mequistil. Rebola se não eu caio. Tinha mais razão quem tinha medo de bonecos. E pego as criancinhas pra fazer mingau.
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O pedreiro
- Seu Tião, cuidado pra não quebrar o meu preto velho, sim?
- Fique tranquila, dona Andrea; eu jamais violaria um ícone de adoração dos povos negros!
- Fique tranquila, dona Andrea; eu jamais violaria um ícone de adoração dos povos negros!
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quinta-feira, 22 de setembro de 2011
Tempo
- Assim não dá! Quando é que vocês vão aprender a catar os brinquedos espalhados?
- Hum... Pode ser ontem, mamãe?
- Hum... Pode ser ontem, mamãe?
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terça-feira, 20 de setembro de 2011
Soldadinho maneiro
Miniatura através do vidro. Munich, 2006. Foto: Andréia Delmaschio.
- Esse soldadinho novo é maneiro!
- Maneiro? E por que ele é maneiro?
- Porque ele faz uma coisa com as mãos.
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domingo, 18 de setembro de 2011
Obedientes
- Mãe, olha só o que nós achamos na geladeira!
- Ai, os ovos! Cuidado! Segurem firme pra não cair...
Flora, com firmeza: plof.
Francisco, muito firme: plof plof.
quinta-feira, 15 de setembro de 2011
Brincar de mar
- Mãe, vamos brincar de mar?
- Vamos.
- Eu sou o golfinho, tá?
- Tá bom. E eu?
- Você é o golfão!
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quarta-feira, 14 de setembro de 2011
Noite de lua
Noite de lua. Estranhos efeitos de luz e sombra. As nuvens semelham peças de um quebra-cabeças...
- Mãe, vem cá ver! A lua está desmontando o céu!
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segunda-feira, 12 de setembro de 2011
A nova Barb(ar)ie
Que brancor no abre e fecha sensual dessa Nossa Senhora Asséptica! Com ela eu saio e traio a televisão, rainha minha e de vocês.
(Belchior. Balada da madame Frigidaire)
A mais civilizada tem
cílios postiços,
nariz lapidado,
lábios de botox
e seios de silicone -
tudo em apenas um exemplar.
Faz escova progressiva
e usa mega hair.
Uma costela foi retirada,
os quadris lipoaspirados,
a cintura lipoesculturada
e as pernas dermolipectomizadas.
A bunda é de silicone
e as unhas de porcelana.
Desaconselha-se morder ou sugar,
apertar ou puxar os cabelos com força.
(Belchior. Balada da madame Frigidaire)
A mais civilizada tem
cílios postiços,
nariz lapidado,
lábios de botox
e seios de silicone -
tudo em apenas um exemplar.
Faz escova progressiva
e usa mega hair.
Uma costela foi retirada,
os quadris lipoaspirados,
a cintura lipoesculturada
e as pernas dermolipectomizadas.
A bunda é de silicone
e as unhas de porcelana.
Desaconselha-se morder ou sugar,
apertar ou puxar os cabelos com força.
domingo, 11 de setembro de 2011
J. Quiroga
J. Quiroga veio pedalando desde o centro da cidade e me trouxe um pão integral. Em plena terça-feira recebi o meu pão, fresco e crocante, por um dia inteiro fermentado em iogurte. J. Quiroga teima em não colaborar com a destruição deste mundo. O pão era uma encomenda que fiz da sua deliciosa culinária, e comentei que não valia a pena trazer um pão, apenas, do centro a bento ferreira - que esperasse uma ampliação da demanda. Do outro lado da linha J. Quiroga não riu, mas viria de bicicleta - argumentou -, portanto não gastaria gasolina. Aliás, J. Quiroga não pretende ter um automóvel e, ao final, também não quis receber pelo pão, revolvendo assim, completamente, a relação de utilidade e a única lógica que conhecemos - a do lucro. J. Quiroga mora ao lado da gruta da onça, fuma cigarros feitos à mão e cultiva, nos muros, as mudas das delicadas avencas. Cultiva-as involuntariamente. É possível mesmo que sejam elas a lhe fazer o cultivo... A casa de J. Quiroga é habitada por crianças sérias e elfos brincalhões. Tudo é tão integral em J. Quiroga.
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quinta-feira, 8 de setembro de 2011
terça-feira, 6 de setembro de 2011
São José do Campo Real
Mamãe foi à cidade vender ovos. Desliguei o telefone enfeitiçada com a notícia: a minha velha mãe hoje acordou cedo - como de costume - e levou seis dúzias de ovos até a cidade mais próxima, a uns vinte quilômetros de distância. Vovó vendeu os ovos, crianças. Lembrei-me daquelas primeiras sentenças da antiga cartilha de alfabetização... Mas não se trata de uma frase, apenas. Ela estava contente, sua voz irradiava a contenteza que quase todos hoje desconhecemos: a de poder, por uma ação simples, dar encaminhamento a um produto - e nem foi pelo dinheiro: Eu não podia deixar estragar tantos ovos! As galinhas põem quase duas dúzias por dia! Os ovos da roça têm a gema extremamente amarela e em nada se assemelham a esses quase-de-borracha que compramos no supermercado. Nem se igualam a esses meio-caipiras que compramos como caipiras, por um preço mais elevado. Por que será que não vendem ovos na feirinha de orgânicos? Deve ser pela dificuldade de transportá-los. Mas a velha mãe é zelosa, e o seu comércio, do início ao fim, artesanal. Mesmo o motorista do ônibus que a leva, espera até que acomode delicadamente as pequenas caixas, e todos os outros passageiros acham normal algum atraso. Eles mesmos oferecem ao motorista, cotidianamente, um naco de queijo e uma xícara (esmaltada) de café, sem que ninguém reclame da demora. Absolutamente todos se conhecem pelos nomes, sabem de que padecem os que padecem, quem morreu, quem nasceu... O que importa é que mamãe vendeu os ovos, catados pelos quatro cantos do terreiro - no buraco perto da porteira, nas touceiras do capoeirão, perto da tampa do açude e onde mais aprouve às galinhas improvisar os seus ninhos.
sábado, 3 de setembro de 2011
Andar de bicicleta
Quando aprendi a andar de bicicleta eu tinha uns 7 ou 8 anos de idade. Minha família era muito pobre e por isso não tive acesso a um velocípede ou a uma bicicleta antes disso, como costuma acontecer.
Até que um dia apareceu a bicicletinha verde para conserto, porque meu pai, para complementar o orçamento, tinha que fazer os seus bicos consertando coisas. Era toda arranhada e tinha o selim em pandarecos, mas a mim pareceu deslumbrante.
Acontece que ela também não tinha os pedais e acho que era justo isso o que pediram que meu pai colocasse nela. (Além de marceneiro e pedreiro, ele era eletricista e mecânico autodidata). Como o tempo do conserto durou mais do que devia, devido à grande demanda de serviços que havia na fila de espera, eu enfim aprendi a andar de bicicleta. Numa bicicleta sem os pedais.
Como o nosso quintal era em declive, eu subia empurrando a bicicletinha até o alto dele e depois descia de lá quase voando, com as pernas abertas em tesoura e o corpo todo arrepiado de medo e prazer. Não me lembro de ter caído nenhuma vez. Me parece uma boa técnica para aprender a se equilibrar sobre a bicicleta. Claro que é preciso ir dosando gradativamente a altura. A pedalar mesmo só fui aprender na adolescência, mas me pareceu então um fraco arremedo daquela sensação que tive na infância.
domingo, 28 de agosto de 2011
Seis lindas xícaras
Seis lindas xícaras me olhando da vitrine. O erre é de rato; o esse é de sapo... O xis é de que, mamãe? É de xícara! Xícaras de cerâmica, simulando o mais rústico barro, um atrativo ao contrário para quem se atrai pelos opostos emaranhados. Pareciam caríssimas perto das contas de luz e água, gás e telefone, mas mesmo assim eu as comprei e, no cuidado típico do primeiro dia, da coisa recém-adquirida, preferi levá-las a tiracolo, junto com a carteira e os óculos de sol. Tocou porém o celular e, no afobamento de atender à ligação, o embrulho caiu no chão do elevador, a despeito de todo o cuidado que lhe devotei, retirando-o delicadamente, enquanto apalpava o fundo da bolsa, à procura do telefone que tocava e tocava, e vibrava fazendo cócegas na palma da mão. Não é preciso dizer que aquele telefonema foi perdido; não lembro sequer quem foi que me chamou em tão delicada hora. É possível mesmo que tenha sido engano - é sempre por engano que lançamos fora o mais precioso. Apanhei o embrulho com pena; veio a idéia súbita de voltar ao armarinho e tentar trocar todo o jogo, mas sabia que não havia outro para troca, nem para compra; a vendedora fez questão de destacar que se tratava de um aparelho exclusivo, artesanalmente produzido. Cheguei até a mesa carregando-o como quem acalenta o animalzinho agonizante, em busca de um sopro qualquer de vida, e fui retirando as peças, uma a uma. Como tinham sido embrulhadas uma sobre a outra, em alta pilha - algo incomum, pensei na hora -, apenas o último pires, colocado sob os demais, havia se quebrado. Pelas trincas que nele se abriram, simulando um esgar de dor num rosto derrotado, suponho que, na sua fragilidade, protegeu a todos os demais, intactos após a queda de um metro. Gostaria de tê-lo recuperado com a minha colinha de geladeira, mas seria impossível, porque, além da boca dramática, abriu-se nele também um pequeno olho ciclópico. Melhor aceitar o irrecuparável da sua nova natureza. Arrumei-os então, par a par, sobre a forte bancada de pedra da copa, tomada de uma certa gana infantil de quebrar também uma das xícaras, para que não expusesse tão descaradamente a sua incompletude - e o meu descuido. Pouco depois me veio a iluminação: esperar o dia em que, por um lapso da arrumadeira, quebrar-se-á, muito mais naturalmente e sem alarde, uma das seis xícaras, estando assim novamente completo o aparelho. Por ora guardo a xícara solitária nos recônditos do grande armário e torço para que não se quebrem de uma só vez duas xícaras; ou quem sabe mais um dos pires.
sábado, 27 de agosto de 2011
Nuvens
- Mamãe, por que você está triste?
- Porque o céu está nublado.
- Eu vou pintar o céu de vermelho pra você, tá?
- Porque o céu está nublado.
- Eu vou pintar o céu de vermelho pra você, tá?
quarta-feira, 24 de agosto de 2011
Dialógica
Pablo Picasso: Mulher chorando com lenço.
- Por que você está chorando, mãe?
- Porque eu estou triste.
- Então pára de chorar pra ficar alegre!
quinta-feira, 18 de agosto de 2011
O amor
Kate Macdowell: Venus.
- E o que é que é o amor, meu bem?
- É uma surpresa, quando você olha no meu olho!
terça-feira, 16 de agosto de 2011
O coração
Kate Macdowell: Entangled.
- Mãe, olha o que eu achei!...
- Ah, um coração!
- É. Eu posso colocar no seu peito?
- Pode...
- Eu vou precisar de cimento!
- Oh!
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domingo, 14 de agosto de 2011
A bruxa
A mulher passava, olhando lenta, com uma pilha de chapéus na cabeça e o nariz capixaba dos negros descendentes de italianos. Tinha mesmo uma pinta alta em algum lugar do rosto, manchado pela exposição cotidiana ao sol escaldante das nossas praias.
- Mãe, uma bruxa!...
- Não, meu filho, é uma vendedora de chapéus.
- Por que ela não é uma bruxa? (O porquê aí equivale a "como você sabe que").
- Porque ela está fora do livro.
- Ahn... E por que as bruxas são velhinhas?
- Porque elas viveram muito.
- E por que elas são feias?
- Ah, porque foram bem usadas!
domingo, 7 de agosto de 2011
sábado, 6 de agosto de 2011
Mamãe provedora
Flora se aproxima, silenciosa como sempre é em público, e nos mostra a panelinha de plástico cheia de pequenos pedaçoos de massa colorida, que começamos imediatamente a simular comer, imaginando ambos, muito empenhados, estar cumprindo o nosso papel na sua fantasia de mamãe provedora.
Súbito, ela cobre a panelinha com a tampa:
- Gente, isso é massa de modelar! Não é pra comer a massinha!
terça-feira, 2 de agosto de 2011
sábado, 30 de julho de 2011
Barbie e Max Steel
- Mãe, você compra a espada do Max Steel?
- A espada? Pra quê?
- Pra matar a Barbie.
- A espada? Pra quê?
- Pra matar a Barbie.
sexta-feira, 29 de julho de 2011
Brincando com as formas
- Mãe, esse é o O de ovo?
- É.
- E esse? É o C de cobra?
- É sim.
- E esse aqui? É o I de... de... de banana!?
- É.
- E esse? É o C de cobra?
- É sim.
- E esse aqui? É o I de... de... de banana!?
segunda-feira, 25 de julho de 2011
sábado, 23 de julho de 2011
Primeiros contatos com a beatitude ou Na casa da vovó
Francisco se depara com uma imagem de Nossa Senhora Aparecida - dura, masculina, com cetro e coroa:
- Olha, mamãe, o rei!
Papai do céu
Gaughin: Cristo no jardim das oliveiras.
- Não faz isso, porque papai do céu não gosta!
Flora, pasma, olhos no alto:
- O papai está morando no céu?
terça-feira, 12 de julho de 2011
Pegar borboletas
Flora:
Se eu fosse a bailarina
eu cortava o meu cabelo
pra não agarrar nas árvores
quando eu fosse pegar borboletas.
Se eu fosse a bailarina
eu cortava o meu cabelo
pra não agarrar nas árvores
quando eu fosse pegar borboletas.
segunda-feira, 11 de julho de 2011
Branca de Neve e Superomem
Francisco se aproxima com os dois bonecos na mão, de mesmo tamanho, porém desnivelados:
- Mãe, o Superomem quer beijar a Branca de Neve.
- E por que ele não beija?
- Porque ele é muito baixo.
- Dá uma ajuda a ele, então.
- Tá bom. Sobe, sobe, sobe, sobe, sobe... Ih, agora ele ficou muito alto!
- Mãe, o Superomem quer beijar a Branca de Neve.
- E por que ele não beija?
- Porque ele é muito baixo.
- Dá uma ajuda a ele, então.
- Tá bom. Sobe, sobe, sobe, sobe, sobe... Ih, agora ele ficou muito alto!
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quinta-feira, 7 de julho de 2011
Sete de julho
Vincent Van Gogh: Noite Estrelada, 1889.
Naquele dia eu me perfumei como se fosse me encontrar com um cego. É a única coisa de que, com certeza, me lembro. O resto - inventarei.
Havia no céu, do lado do Norte, umas nuvens escuras que a princípio não tomei em conta. Seguia sem meias ou luvas. O vento de inícios de julho principava a rachar os lábios, mas eu seguia, aquecida ainda pela lembrança do vinho.
Quando cheguei próximo ao local marcado, umas meninas que jogavam amarelinha fugiram de mim - quiçá por timidez, considerei.
Conforme eu me afastava do carro estacionado, percebia que o céu carregava um pouco mais. Lembrei que as crianças tinham pedido bolachas. Provavelmente não apanharia aberto o mercado.
Cheguei ao costão. A série de penhascos parecia ter sido amontoada a um canto pelo vento. E sempre fora assim. A vegetação definhava sob o sol ainda quente. Quando criança, eu contemplava aquela mesma paisagem toda vez que fugia de casa para não ter de ouvir os rugidos do velho. De repente escutei um eco da sua voz, preso por quatro décadas entre as pedras da enseada. Lá embaixo as ondas batiam fortes - quem deixaria uma criança brincar ali?
O celular ficara no carro. Tendo chegado contudo pontualmente ao encontro, comecei, aos poucos, a impacientar-me com a demora. O vale verde agora semelha um pântano. Acontece sempre que alguém me fere: a paisagem é a primeira a se transformar.
O frio recrudesceu, as nuvens se aproximaram. Achei melhor me abrigar no carro e, assim que entrei, as gotas caíram em profusão. A única cura para o sofrimento é sofrer.
Devo ter esperado meia hora, mas o tempo, depois que se dilata, a primeira coisa que nos leva é justo a noção de tempo. Posso ter passado ali apenas um minuto - ou um ano, um ano e meio...
Quando retornei a mim havia manchas no dorso das mãos e pequenas mechas brancas sobre as têmporas. O espelho retrovisor não mente jamais; por isso aquela história de não olhar através dele... A verdade talvez não dói, mas tira o sono e nubla os dias.
Sempre gostei de ver a chuva escorrendo pelo vidro - é um modo de chorar sem ser notado.
A estrada de terra estava repleta de poças de lama. Quando enfim dei a partida, vi-o chegando, o passo lento, o olhar muito distante...
Passei por ele devagar, receando lançar a água da chuva na camisa branca. As crianças teriam seu lanche.
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segunda-feira, 4 de julho de 2011
domingo, 3 de julho de 2011
Presente
- Mãe, se você me obedecer eu vou comprar um presente bem bonito pra você!
- Ah, é? E se eu não obedecer?
- Aí eu vou comprar um presente bem feio!
- Ah, é? E se eu não obedecer?
- Aí eu vou comprar um presente bem feio!
sexta-feira, 1 de julho de 2011
terça-feira, 28 de junho de 2011
No banho
- Essa bunda é sua, mãe?
- Claro que é, ahahah!
- E você tem outra bunda?
- Nããão... Só esta!
- Ó, no seu aniversário eu vou comprar uma bunda nova pra você, tá bom!?
- !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
- Claro que é, ahahah!
- E você tem outra bunda?
- Nããão... Só esta!
- Ó, no seu aniversário eu vou comprar uma bunda nova pra você, tá bom!?
- !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
domingo, 26 de junho de 2011
Envelhecer
Frida Kahlo. Las dos Fridas, 1939.
- Vou. Por quê?
- Porque eu não quero uma mãe velhinha.
- Ah, não? Mas eu vou ficar velhinha, sim... Mesmo porque a outra opção é pior!
- Então eu vou trocar de mãe!
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