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Provavelmente por ser professora,
eu acho importante, vez ou outra, lembrar que o mais difícil de perceber – e de
tentar explicar – é o óbvio. Lembro isso a mim mesma com frequência. É como uma
profissão de fé. Não resolve tudo, mas ajuda a evitar longos monólogos que
muitas vezes parecem diálogos.
E se, nesse campo, fujo ao
monológico, por outro lado, gosto de ir sozinha ao cinema. É um prazer que me
reservo sempre que possível. Gosto de imaginar que entro na fila, e depois na
sala, como entrarei na tela: inteira. E não é para evitar o risco de ser desviada,
durante a exibição, por comentários sobre o filme; eu mesma sou tentada a
fazê-lo todo o tempo. É que, nessa hora, quero estar apenas com o povo que
habita lá dentro da tela. Nesses instantes mágicos, salve Clarice, “a solidão é
um luxo”.
Todavia se ao lado eu tenho um amigo,
fatalmente, além de fazer a minha própria leitura do filme, não escapo a
imaginar o que ele lê na tela, embasado no que conheço da sua personalidade, seus
gostos e preconceitos. Bem sei que mesmo vendo e ouvindo o mesmo, vemos e
ouvimos diferente. A tentação, nesse caso, é a de ver dois filmes ao mesmo
tempo: o meu e o dele. Obrigada. Prefiro não.
É por isso que, quando tenho de
ir ao cinema acompanhada, em geral escolho filmes que considero ruins, secundários
na minha lista, filmes aos quais dedicar mais, ou menos atenção, realmente não
faz diferença. Inúmeras vezes, é claro, eu me engano nesse prévio julgamento de
qualidade.
Esta semana porém fui com WF, que
respirava do fluxo da sua escrita sobre o diário de EN. Tendo lido algumas
resenhas, nem ele nem eu dávamos muito por “La belle saison”, filme de 2015, da
diretora francesa Catherine Corsini, e ambos estranhamos a tradução do título
por “Um belo verão”, que ao final concordamos ser simplificadora. “A bela
estação” é, no mínimo, uma parte da vida, enquanto a opção por “verão” (que
todavia comparece na metáfora do título original) reduz tudo a um caso de amor,
talvez devido a ecos inevitáveis na história do cinema. Ainda por cima,
destaca apenas a estação em que se ambientam as tomadas feitas no campo, em
detrimento das cenas parisienses, que contrastam – e não só climaticamente –
com aquelas. O contraste entre as duas estações, no filme, reforça o aspecto
simbólico – e mesmo onírico – de alguns elementos: na fazenda é sempre verão,
enquanto em Paris invariavelmente faz frio.
O caso de amor entre as protagonistas
– Carole (Cécile de France), a agitadora feminista parisiense, cujo nome remete
a cabeça, e Delphine (Izïa Higelin), a filha de fazendeiros, cujo nome se liga
à ideia de herança patriarcal – é apenas um detonador de diferentes expressões
do preconceito machista que se espalha pelos dois ambientes, o campo e a cidade.
Delineia-se também um certo fundo
de conto de fadas, borrado por pinceladas realistas, o que, expondo um jogo
entre super e supraestrutura, pode inclusive passar despercebido – como tudo o
que, de óbvio, grita, sem jamais ser ouvido. Aos poucos, a narrativa revela
alguns tentáculos do gigantesco aparato ideológico que faz com que mulheres aceitem
e reproduzam, desde cedo, a falsa ideia de sua inferioridade diante do homem.
E qual é a primeira e mais
elaborada ferramenta de inculcamento a que são submetidas as crianças, ainda
muito pequenas? Qual o primeiro grande dedo a delinear para as mulheres o seu
papel, a apontar o lugar que lhes cabe num mundo dominado por homens, senão o
conto de fadas? Logicamente não seria justo reduzir um gênero literário a isto,
nem responsabilizar a ele somente, mesmo porque, no mundo capitalista, o conto
de fadas não está presente apenas nos livros e filmes, mas em todas as demais
mercadorias, da mamadeira ao signo de status do Facebook.
O conto de fadas porém continua tendo
grande parte na construção desse sentimento que incita homens e mulheres
a uma espécie de delírio sob o domínio do qual chegam a desejar ou mesmo a acreditar
serem príncipes e princesas. Caberiam aqui, para começo de conversa, duas
questões básicas: o que é ser homem ou mulher, e o que vem a ser príncipe ou
princesa. Deixamos ambas para outro momento, evitando um desvio do assunto.
Parte das cenas de amor entre as
protagonistas de “La belle saison” se passa na mata. A mata simboliza o
inconsciente e é o lugar onde comumente “se perde” – ou para onde é levada – a
princesa (Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve, Bela adormecida), que ao final
será resgatada da morte pela coragem do homem, pelo amor do príncipe encantado.
Na última dessas cenas, Carole e
Delphine se deparam com um camponês da vizinhança, que tanto semelha um
“caçador” quanto o “lobo mau”, do mesmo modo ambivalente que em algumas versões
do conto dos irmãos Grimm. Ao flagrar as moças se tocando no caminho sob as
árvores, o seu olhar não é o de quem simplesmente irá denunciá-las na
comunidade, fazendo fofoca sobre a sua sexualidade. Para além do que Delphine
imagina, a expressão do homem parece antes expor um desejo recôndito, o
recalque cuja revelação pode auxiliar inclusive no entendimento do machismo e
da misoginia generalizados, abrindo espaço para a reflexão sobre até que ponto
se trata de dois sentimentos diferentes.
E se a mulher é tratada como um ser de segunda
categoria, a quem são destinados o trabalho braçal e a procriação, o que lhe estará
reservado na condição de mulher e
homossexual? O olhar do caçador e os desdobramentos da ação nos levam a pensar
que a homossexualidade passa mesmo a uma certa secundariedade na escala, se
comparada à discriminação que a mulher ainda sofre, como algo já praticamente
naturalizado.
E quem conhece algumas
comunidades interioranas do Espírito Santo, por exemplo, sabe que o homossexual
não é somente visto como alguém que, diferente do heterossexual, deseja um
outro do mesmo sexo. Em diversas localidades, ainda
hoje o homossexual é considerado, por alguns, um tipo monstruoso, um depravado ou
alguém pronto a servir sexualmente a qualquer um. Para muitos, o homossexual
revelado perde o status de pessoa, é um objeto simplesmente destinado para o
sexo.
Nessas mesmas comunidades deparei-me,
algum tempo atrás, com o uso da curiosa expressão “homem sexual”, em lugar de
“homossexual”, o que parece duplamente revelador. Ainda que o uso do termo denote
desconhecimento da forma correta da palavra, desvela também, e em primeiro
lugar, a absurda reificação do outro por vias da sua sexualidade; segundo,
mostra mais uma faceta da exclusão da mulher, já que não se usa ali, em
contrapartida, a expressão “mulher sexual”. Algumas pessoas das que entrevistei, homens e mulheres, declaram não acreditar que “existe mulher que quer ficar
com mulher; isso só acontece por falta de macho”.
Não falta, ao fundo de conto de
fadas (ou mitológico) de “La belle saison”, nem mesmo o príncipe encantado, representado
pelo personagem chamado Antoine (Kévin Azaïs), como o de Saint-Exupéry, autor
do famigerado “O pequeno príncipe”. O rapaz, jovem, loiro e apaixonado por
Delphine, é aquela presença que nos faz perguntar se não seria mais fácil a ela
se contentar com a sua dedicação, ainda mais porque o "pequeno príncipe" reúne
tantas qualidades desejáveis, é um vizinho que a conhece “desde sempre”, nas
suas próprias palavras arquetípicas, e se faz presente nos momentos em que ela
necessita da presença de um homem.
Mas é justo aí que se coloca a
questão: de que é que, de fato, Delphine necessita? Para quê e por quê ela
precisa de um homem?
Quando o patriarca da fazenda
retorna do hospital, paralisado depois de ter sofrido um derrame, é Antoine quem
ajuda Delphine no transporte do velho escada acima, ambos empregando igualmente
a sua força física para removê-lo. Depois, quando uma vaca dá à luz
um bezerro no meio da noite, Antoine é chamado para auxiliar, mas quem de fato
põe a mão na massa, digo na carne, e auxilia para que nasça a o animal, é a
própria Delphine. A cada um dos eventos, Antoine é instado a apoiar as duas
mulheres, mas quem age de fato são elas.
Os acontecimentos descortinam o
óbvio: naquelas situações, como em tantas outras, faz-se prescindível a
presença do homem; ele está ali antes pela sua força simbólica que por uma força de outra ordem. A insegurança quanto
a isso é ideológica e culturalmente internalizada nas mulheres, fazendo-as
dependentes psíquicas de uma presença que, além de não ajudar – e por isso
mesmo –, muitas vezes atrapalha.
As reações de Antoine indicam que
ele ao menos o intui. Daí o ressentimento histérico (tradicionalmente tido como
feminino) que demonstra ao ver as duas jovens se beijando, e o exagero
expressivo com que orna os esforços físicos que, aparentemente, o fazem útil a
Delphine e à manutenção do universo da fazenda, em que ambos desenvolvem o seu
trabalho. Até que ponto o “amor” de Antoine se mescla aos desejos de ser o
herdeiro daquelas terras é algo que apenas de modo secundário o romantismo que
nos serve de base permite questionar, sob o risco de desmoronamento de todo o
castelo construído até aqui, na terra mole da fazenda.
O pai inclusive, anteriormente ao
acidente cerebral, já é, de modo perceptível, quem trabalha menos. Enquanto
Delphine dirige a máquina, a mãe lança acima os fatos de feno, e ele, o
patriarca, literalmente guia as mulheres, vai adiante indicando o caminho a percorrer
naquele estranho trabalho repetitivo que é o de cortar e secar a grama para
alimentar o gado. Aliás o fazendeiro nem mesmo traz no corpo as marcas de
quem lida no campo, caracterização que foi primorosamente cuidada no que toca às atrizes
que dão vida às duas camponesas.
Após a doença, fisicamente
imobilizado, mesmo não tendo condições de dirigir ou ordenar, de ser portanto “o
cabeça” da família, o homem tem preservado o seu aspecto simbólico, o que
permite questionar a tese de que o domínio masculino se deva à proeminência
intelectual e/ou à superioridade física.
A mãe de Delphine, mesmo com os
pés fincados naquela estrutura heteropatriarcal, afirma que “mulheres e homens
são iguais para o trabalho”, endossando, sem sequer o notar, que o poder do macho,
nessa sociedade, é antes de tudo simbólico e a ele atribuído também pelas mulheres.
Quando o marido é hospitalizado, é nos seguintes termos que ela descreve a si e
à filha: “nós parecemos duas galinhas sem cabeça”. Porém, tendo apenas
descoberto o envolvimento de Delphine com Carole, a velha camponesa, até então
calada e submissa, repentinamente traz à tona o seu fascismo homofóbico. Reprodutora
de um discurso falocêntrico e repressor, ela agora afronta a feminista com
veemência, tachando-a de “a escória”.
No filme de Catherine Corsini, aproximam-se,
fatalmente, mulher e vaca, como antes foram comparadas mulher e galinha. A procriação,
explicitada no momento em que a vaca dá à luz, é um problema que permeia toda a
trajetória de Carole, desde a sua militância contra a criminalização do aborto
até o seu trabalho, uma década depois do caso com Delphine, divulgando métodos
anticoncepcionais numa clínica que realiza o aborto.
A comparação com animais da
fazenda, como vaca e galinha, que são grandes reprodutores e por isso mesmo valorados
e criados também para a sua devoração, não simplesmente reduz a mulher ao
estágio animal, mas lembra que, assim como o homem, ela é carne, tem desejos,
ela pode e deve ser responsável pelo destino e pelos resultados de sê-lo e de
tê-lo. A mulher como reprodutora – de seres e de ideologia – é um ponto
importante em que o filme ousa tocar. Afinal, juntamente com as discriminações
que sofre como trabalhadora, no mundo capitalista, a mulher tem de enfrentar
também as reduções que sofre a sua expressão do desejo. Sexualidade, trabalho,
vida, produção e reprodução, tudo se emaranha e, em grande parte, é dependente
da mulher, ao contrário do que se costuma afirmar.
Por isso a liberta Carole, que
põe Delphine em apuros ao dormir com ela na casa da fazenda e ao correr nua
pelo pasto, num dado momento chega a dialogar com as vacas que mugem no pasto,
pedindo, ironicamente, que não a condenem por seus atos. Quando enfim nos
entranhamos e compreendemos o universo de Delphine, a liberdade de Carole chega
a soar egoísta, por parecer que ela desconsidera o quanto a outra é emaranhada pelos
fios daquela ideologia invisível e quase muda, que impõe as suas normas não
apenas pelo que decreta, mas antes de tudo pelo que cala. O mais difícil de
perceber é o óbvio.
Ao fim, é justo pelo trabalho que
cada uma das personagens, tanto quanto possível, se liberta para ser: Carole
passa a trabalhar na clínica ao lado da nova companheira, enquanto Delphine
adquire sua própria fazenda. Ela vai para longe do domínio (e dos domínios) dos pais, porém permanece
curiosamente ligada à terra, e realiza o mesmo tipo de trabalho para o qual
fora treinada “desde sempre”.