Liu Bolin: Invisible man.
Sob que máscara retornará o recalcado? (Adriana Calcanhotto/ Waly
Salomão)
A mulher tem que decidir rápido: O que é
leptospirose? Um jogo de cartas, uma doença ou um tipo de dinossauros? Se
errar, seu pai e sua mãe serão atirados numa banheira com água fria. Ela
responde, com voz débil e a face tomada pela expressão ambígua dos que adiantam
mentalmente, a um só tempo, a miséria do erro e a felicidade da vitória: um tipo de
dinossauros. O pai e a mãe descem incontinenti um tubo gigante de PVC e caem na
banheira, que fica bem no centro do palco. A platéia se alvoroça. O
apresentador se afasta rindo, o rosto curvado sobre o tronco, simulando grande
divertimento com a cena. O casal de meia idade se ergue ensopado, acenando para
a câmera e rindo.
O jogo continua!, exclama o apresentador.
Segunda pergunta, Sandra. Atenção, muita atenção! Esta pergunta pode definir o
jogo! São dez mil reais! Atenção Sandra, qual é a capital do Estado do Ceará?
Sergipe, Teresina ou Fortaleza? Ela tem sessenta segundos para decidir. Sua
testa brilha de suor. A platéia não deve assoprar, mas se ouvem ao fundo vozes
titubeantes gritando ora Sergipe ora outro nome quase inaudível. O tempo se
esvai, soa o sirene, ela tem de responder. Arrisca então: Teresina. O
apresentador balança o tronco e improvisa umas interjeições, enquanto olha, por
segurança, a ficha à mão: A resposta está êêê... está êêê... O público,
exaltado pelas faixas que o assistente de palco ergue, exclama: êêê... xata. O
apresentador dobra o corpo numa gargalhada convulsiva e em seguida exclama:
resposta êêê... rrada! Todos riem e aplaudem, alguns assobiam. A mulher é
lançada num caldeirão repleto de animais peçonhentos e por alguns segundos
sustém em close um riso indecifrável. O foco segue rápido para a platéia e retorna
ao apresentador, que anuncia de modo efusivo: A família adversária vence o jogo
por dois a zero! Muitos aplausos para a família Soares! Os membros da família
vencedora se abraçam e pulam freneticamente, cantando o refrão do hit do
momento: “Chuta minha cabeça! Chuta minha cabeça!” O apresentador chama o
intervalo comercial.
É ele mesmo quem fala, e
tem agora um tom sério de quem dirá algo importante, parece outra pessoa: Neste
momento eu quero me dirigir a você, papai, a você, mamãe, que está assistindo
ao nosso programa (com um riso um pouco surdo, dá à fala, a partir de um ponto
claramente pré-determinado, um tom informal, descontraindo também o cenho): É
com muito orgulho que eu apresento a vocês, meus colegas que há tantos anos
acompanham o nosso trabalho, uma novidade - o Bebê Dodói. Aproxima-se da mesa
prateada sobre a qual está o boneco, um garoto loiro de olhos azuis e fixos. A
assistente de palco, sorridente, lê as características do brinquedo: De
material resistente, o Bebê Dodói vem com seringa, tesoura e máscara cirúrgica,
além de um termômetro, uma pinça e um aparelho para examinar o ouvido. É
recomendado para crianças a partir de três anos de idade.
Parece comigo, pergunta o
apresentador, parece? A moça, sempre sorrindo, faz um sinal afirmativo com a
cabeça. Pois pode separar dois lá pra casa, ele acrescenta. E fica com esse,
que eu vou te dar no dia das crianças. A moça seminua abraça e beija o boneco
com afetação, contorcendo o tronco para um lado e a cabeça para o outro.
Tem início a segunda parte do jogo das
famílias. Capturam um meio close do apresentador, que assume agora uma carranca
sisuda de preocupação. A mulher, ainda ajeitando a roupa úmida, esconde nas
mãos o rosto inflamado pela emoção reprimida. É a parte do programa em que o
perdedor tem uma última oportunidade e quando a platéia parece verdadeiramente
envolvida. O apresentador anuncia: Agora, Sandra, valendo a realização de um
dos dois sonhos que você narra na sua carta... entre a paixão e a razão...
responda, Sandra (o tom da voz vai subindo), entre o coração e a necessidade...
o que você escolhe, o sonho dos seus filhos, que é fazer compras no
supermercado, ou o seu, que é mobiliar a casa?
Ela fala com a voz estrangulada pelo
choro: Na verdade, para mim a felicidade era ver os meus filhos entrando num
supermercado, mas eu não aguento mais os coleguinhas deles indo lá em casa e
não tendo um lugar pra sentar.
Música de tambores e trompetes. Uma porta
gigante se abre por detrás do palco. Sobre uma mesa dourada se destaca a plaqueta
com a marca Confiança. A mulher cai em choro convulsivo, seus pais e seus
filhos entram para abraçá-la. O garotinho menor corre e segura a perna do
empresário, que se aproxima num terno italiano. Em seguida é retirado pela avó.
O empresário recebe um microfone. Tem voz
de barítono: A micro-empresa Móveis Confiança tem o prazer de anunciar que vai
estar dando a você, Sandra, e a toda a sua família, uma mobília completa, de
fabricação própria e primeiríssima linha, para você não ter mais de estar se envergonhando
quando receber visitas.
A tela se divide, para o telespectador. A
música ao fundo é dramática. Do lado direito, o interior da loja de móveis,
repleta de sofás, camas e armários. Do lado esquerdo, a casa de Sandra - um
cômodo sem reboco -, mobiliada apenas com um fogão e um beliche. O apresentador
agradece ao micro-empresário, que se retira sob fortes aplausos. A mulher
parece aguardar mais algum acontecimento. Uma das assistentes a guia para fora,
seguida da família.
Puxa, Andréia!! Adoro quando você se alonga no que é escreve!! Adoro essa sua acidez adocicada, sutil e que incomoda.
ResponderExcluirE eu agradeço pela sua leitura sempre arguta, querido amigo. Um abraço.
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