Salvador Dalí: Sleep.
Entrei no consultório e sentei-me. O
médico, entediado e de olho nos próprios rabiscos, ia fazendo perguntas previsíveis, a que eu respondia
desesperada, sobre quando o meu cabelo teria começado a cair, que quantidade eu
perdia por dia. Parecia não ter levado a sério o meu relato inicial. Sorria,
dizia que era normal perder até sessenta fios por dia. Acrescentei que
perdia muito mais que isso a cada vez que penteava os cabelos. Chamou um outro
homem de branco, que apresentou como sendo odontólogo. Este se sentou
de modo oblíquo numa terceira cadeira, sem que ficasse de frente
para o colega nem para mim, e ambos iam trocando frases cifradas e repletas de erros
de português, enxertadas de termos técnicos mal utilizados e cuja significação
supunham que me fosse estranha. Sorrindo como canastrões enquanto faziam suas
cadeiras circularem sobre as rodinhas, pareciam querer incutir medo. Do fundo
do meu próprio drama, eu relevava a qualidade do seu péssimo teatro, mas a angústia crescia e a lembrança
de quanto cabelo vinha perdendo já me dava receios de tocar a cabeça. Os dois
tinham a aparência de índios bolivianos e a luz rarefeita da sala criava um
cenário de encontro da máfia. Eu não entendia muito bem qual a função do
dentista ali, mas notei que tinha posto a cadeira numa posição em que formava
uma linha, perpendicular à porta, com as outras duas, onde estávamos sentados o
médico e eu. Pareceu-me um sinal de que, se desejasse sair, livrando-me do
médico, teria de passar, obrigatoriamente, pelo dentista. Por um momento tentei
me lembrar se estaria perdendo também os dentes. Diante da minha insistência em
que me caíam fios demais, o médico pediu que lhes mostrasse. Soltei os cabelos,
que usava num rabo de cavalo, e passei a mão pela cabeça, trazendo preso nos
dedos um tufo que, enfim, assustou os dois homens.
Que massa! E boa escolha colocar Dalí para o texto.
ResponderExcluirSim, Fred, eu gosto bastante da relação entre os elementos, ali nos posts.
Excluir