Eu
sou a coisa, coisamente. (Carlos Drummond de Andrade)
Ela dizia que tinha um quilo e meio de
silicone nos seios. Falava com naturalidade robótica sobre processos,
técnicas e métodos. Ninguém achava graça na sua desenvoltura maquinal, mas se
percebia nos closes da platéia que todos admiravam algo nela: talvez o completo
desembaraço com que se entregava aos avanços científicos, talvez as altas
cifras que desembolsava nas cirurgias, herdadas do ex-marido, festejado
empresário do jogo do bicho - embora valores não fossem citados ali.
Na primeira fila do auditório estavam as
moças bonitas, separadas das demais na entrada, pelo pessoal da triagem.
Recebiam cinquenta reais para aplaudir, ficar de pé e pedir bis, quando fosse o
caso, sempre guiadas pelo homem do cartaz. As câmeras captariam alguns closes
naquela fileira e nesse momento elas deveriam colaborar sorrindo.
No palco a mulher explicava agora o
processo ao qual se submeteria para que o bumbum não caísse nunca mais.
Chegaria aos setenta anos com um bumbum de quinze. “De dez”, uma voz masculina
gritou no fundo do auditório. Seria enterrada com nádegas sensualíssimas.
Na platéia, todos repentinamente sérios
para a exibição da cena de intervenção cirúrgica de uma famosa modelo, já
magérrima, que se submete à retirada de culotes. A musa, no palco, ainda mais
séria. Só de vez em quando sorria - de coisa nenhuma, ou fora de hora. Alguns
pacientes relatam dores pós-cirúrgicas no ato de rir e ao erguer os braços, mas
sua expressão facial parecia indicar algo mais.
Não que ela acreditasse na
importância das informações que trazia no próprio corpo. O ar grave parecia
provir antes da sua condição de carne trabalhada a laser, cortada com bisturi,
costurada e amarrada, algo um pouco além do humano e muito aquém do que nos
acostumamos a pensar que ele seja. De todo modo, não era mais uma exceção,
havia já uma legião de mulheres e homens na sua geração com os rostos todos
iguais – dir-se-ia terem vindo de um mesmo planeta. A técnica da bunda eterna
se chamava fio de ouro ou bezerro de ouro, não ouvi bem.
Abrindo o plano a partir de um rapaz
franzino vestido de super-homem que dança ao som de “Chuta minha cabeça”, a
câmera segue na diagonal, às vezes sobrevoando corpos que acenam, às vezes
escolhendo um rosto para close. E retorna sempre ao centro do palco, onde a
atração principal continua enumerando a série de intervenções por que já
passou. Quarenta e oito cirurgias plásticas. Ela apresenta uma foto antiga que
não trouxe a tempo de encaminhar à produção. Os telespectadores verão em
primeira mão: seu nariz anterior não era exatamente feio, mas quando foi
retirar pela primeira vez a papada, o médico sugeriu que aproveitasse a anestesia
para dar nele também um retoque.
Apesar de a mudança não ter sido radical,
ela agora se sentia outra. O telão ao fundo mostra a cena do total peeling que
tempos atrás feriu a pele do seu rosto, levando-a ao isolamento por um mês, até
que secassem as feridas e ela pudesse sair de novo de casa, sem risco de
infecções, as doses de antibióticos tomadas sempre de acordo com a indicação
médica.
De repente, como uma menina malcriada, ela
toma o microfone da mão do apresentador, que até então quase nada dissera, e
manda um beijo para o seu médico, doutor Femisto, cujo nome faz uma parte do
público se lembrar vagamente de ter ouvido uma história sobre ele, duas semanas
antes – acusação de pedofilia, estupro ou homicídio. O jornal das oito teria
exibido umas cenas gravadas pelo próprio médico no consultório. Numa delas ele
dava palmadinhas frenéticas no bumbum de um adolescente adormecido, enquanto
retirava o uniforme branco. Na platéia ouve-se um burburinho, abafado
rapidamente pelos aplausos, que sobem sob o comando dos cartazes escondidos
estrategicamente nos cantos do salão.
A câmera se mantém sobre a musa, que, a
pedidos do apresentador, retira a blusa para mostrar as discretas cicatrizes
que lhe ficaram nos seios. O público grita, aplaude, vaia. Os seios da mulher
parecem tetas de vaca implantadas ali. O apresentador se mantém incólume, à
custa de não olhar para eles, ou com o olhar já longamente treinado dos que
olham e não veem. Ela sustenta um sorriso débil. A julgar agora pelos seus
olhos, pode-se supor que seja mesmo infeliz; duma infelicidade não de todo
sabida. Talvez esteja dopada.
O telão exibe outra cena, esta
pré-cirúrgica. Agora a musa está deitada de bruços e dois médicos a examinam.
Um deles dá apalpadelas repetidas na bunda mais famosa do país, imprimindo,
pela sequência cronológica dos puxões e com o rosto escondido por trás da
máscara, um ar de ato científico e estritamente necessário ao exame. O outro
mostra aos repórteres um tubo com a gordura cor de rosa que será injetada nas
nádegas da cantora.
No palco ela se apressa em dizer que a
gordura é dela própria e, sem acrescentar de onde foi retirada, evita que se
pense em algo como um comércio ilícito de fetos para recauchutagem de bundas.
A seguir é mostrado o trecho de um show
dela, ali na mesma emissora, três décadas antes, e, enquanto exibem as imagens
no telão, a musa continua a desfilar os lances de seu longo flerte com a
medicina estética. Acrescenta que após ter dado à luz cada um de seus quatro
filhos, submeteu-se imediatamente a uma lipoaspiração e que o seu
pós-operatório é excelente, saindo da maca diretamente para o palco. O
apresentador anuncia a chegada aos estúdios do atual marido da cantora, com quem
falará depois do intervalo.
Entram os comerciais. Uma voz que vibra a
cada vogal anuncia, ao som de “Over the rainbow”: “Com Botas Estrela, quem
manda é você!” Surge a imagem de um garotinho meio andróide, cheio de molas,
com dificuldade para segurar o tronco, caindo para trás e sendo erguido por
alguém. Tem duas pernas atrofiadas e outras duas presas ao corpo por um
conjunto de molas. Parece um boneco de caixa de surpresas, mas tem a cara
triste de um aleijado. Deixa dúvidas se é um aleijado natural ou se optou pelas
botas, ganhando-as de presente no dia das crianças. Parecem implantadas no
corpo. Em letras miúdas lê-se no rodapé da tela que é preciso fazer uma pequena
cirurgia para poder usá-las. A voz retorna: “Botas Estrela! Basta dar a ordem e
elas vão aonde você quiser, sem qualquer esforço! Conheça também a versão
controle remoto!”
Encontrei no Overmundo, sobre seus escritos: http://www.overmundo.com.br/overblog/estamos-vivos
ResponderExcluirParabéns! O.A.S.
Opa opa, que bacana, O.A.S... Vamos lá ver. Obrigada.
ResponderExcluirÉ o texto do Fernando, o Gasparini. Muito bom, muito bons.
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