Brueghel: Parábola de um cego conduzindo outro (detalhe).
Terminados os cumprimentos iniciais, ele me convidou a sentar e abriu
o livro que trazia na mão, me pareceu que exatamente ao meio.
Lembrei-me de duas vezes em que o vira ali, em encontros - aqueles sim - com alguma premeditação. No primeiro, fim de ano como agora,
passou-me às mãos uma bela carta de Natal, e no segundo, por
ocasião da publicação de Nomes pra viagem, me presenteou
com o romance Meia vida, de Naipaul, com impressionante
dedicatória em meu nome.
Na época estava eu já às voltas com a pesquisa para a escrita de
sua segunda biografia, o que por si só estabelece curiosos laços
entre duas pessoas, e o texto acaba por revelar tanto do biografado
quanto do biógrafo. Renato Pacheco parecia senti-lo muito
fundamente; percebi-o pelo que deixou na página de rosto do livro do
escritor de ascendência indiana.
E se na época do contato diário com sua obra, sua alegria
incomensurável me parecia muitas vezes respingada de grande amargor,
agora a sensação era bem outra: uma aura infinitamente feliz o
envolvia, como aquela que envolve os bebês.
Puxou-me a cadeira. Sentei-me. Sentou-se e compôs uma expressão tão
fingidamente grave que me pareceu mesmo divertida. Iniciou então a
leitura de uma narrativa longa, longa, que parecia mesmo não ter
fim. Era a história de um vilarejo isolado do resto do mundo, onde
só nasciam e habitavam cegos; um lugar onde todos já haviam perdido
inclusive a memória do que significava ver. A esse lugar sem luz e
sem cores, eis que chega, certo dia, um personagem que para os
moradores era absurdo, que é o homem que enxerga, vendo, dizendo e
fazendo coisas sem nenhum sentido, tentando ainda, na primeira
oportunidade, se tornar o rei daquelas paragens onde as necessidades
mais íntimas eram realizadas em público e onde cada um se isolava
no momento de se alimentar, por vergonha dos sons e odores.
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