Philip Hass: Releitura de "Inverno", de Arcimboldo.
Nada prenunciava um dia incomum. Meupai trabalhava desde cedo na casinha de ferramentas, com a mesma cara de lata de sempre. Minha mãe costurava no salão ao lado da casa, ouvindo a rádio Cariacica AM, por meio da qual, alguns anos depois, eu me deleitaria com as lendas e canções do Projeto Minerva.
Era Sábado de Aleluia, um dia ensolarado como parecem ter sido quase todos os dias da minha infância, vivida entre o manguezal e o coqueiral entremeado de barracos de madeira que Meupai havia construído pessoalmente e que agora eram alugados a famílias nordestinas cujos membros haviam migrado para o sudeste em busca de trabalho em companhias como a Vale, na época conhecida pela sigla CVRD.
Estávamos no início da década de setenta. Eu tinha quatro ou cinco anos e vivia fascinada com as linhas coloridas e brilhantes que minha mãe usava para bordar girassóis e colibris nas barras das calças boca-de-sino das jovens vizinhas influenciadas pela onda hippie.
Eu tinha me escondido no galpão abandonado, anexo à casinha de ferramentas, onde gostava de apreciar, naquela hora da manhã, os riscos de luz que passavam pelas frestas e se projetavam sobre os montes de madeira, incendiando no ar a poeira que se erguia quando eu batia neles com a ponta de uma ripa. O galpão era escuro e o calor lá dentro só era mesmo suportável no início da manhã.
Escutei quando Meupai, no cômodo ao lado, soltou um grunhido incomum, e temi que tivesse descoberto meu esconderijo. Como não fez menção de se aproximar, tomei coragem e, supondo que fosse qualquer outra a razão do gemido, ergui-me do canto onde estava sentada e encostei o rosto numa das frestas. Naquele ponto a madeira semelhava uma escova dura, parecia ter sido esfiapada durante o corte. Apertei o rosto o mais que pude contra a tábua gretada, para que o olho conseguisse um ângulo mais aberto do cenário lá fora.
Daqui para a frente - caso saia - este relato me sairá a custo.
Foi então que vi Meupai, forte e peludo, sair da casa de ferramentas bufando. Levava numa das mãos um grosso feixe de fios amarelos que imediatamente reconheci como sendo os restos daqueles que ele utilizara na instalação elétrica de uma das últimas casas que havia construído.
Num relance vi o mendigo cambaleante que compunha o fundo do quadro vivo. Era um homem já grisalho e maltrapilho, e não conseguia parar de pé, estando por certo muito bêbado.
Meupai, jovem e lépido, cruzou o quintal e achegou-se a ele em questão de segundos, apanhando-o ainda no que seria, caso o bairro fosse urbanizado, a calçada, e já no limiar do nosso amplo quintal. Sem dirigir-lhe uma palavra sequer, Meupai ergueu o braço o mais alto que pôde e baixou sobre o homem a primeira saraivada de fios, depois a segunda e a terceira, e assim sucessivamente.
Meus olhos queriam comer a madeira, como se ver pudesse me esclarecer aquele equívoco. Não, o homem chamado Meupai não podia estar espancando aquele outro, fraco e indefeso. Mas meus olhos não me enganavam. Meupai despejava contra o outro, que agora já rolava no chão, toda a sua fúria. Um calafrio me percorreu o corpo. Meupai não via que corria sangue da carne daquele outro homem? Em segundos não pude mais olhar. Engoli algo amargo e seco, semelhante a um bolo de pó de madeira, e corri à procura de minha mãe, que estranhou a minha palidez e foi em busca de um copo de água com açúcar.
Naquela noite não pude dormir. Nem nas noites seguintes. Até hoje ainda não durmo direito.
Minha mãe, que sempre recriminou o hábito terrível de se malhar o Judas, também sofreu nas entranhas aquele Sábado de Aleluia.
Nos dias seguintes, e enquanto ecoou a notícia pela vizinhança, Meupai afirmou que o homem havia tentado molestar uma das nossas inquilinas adolescentes. Do alto dos meus cinco anos, ousei contrariá-lo justo à mesa do jantar, dizendo que tinha visto todo o espancamento, e ele se transformou diante dos meus olhos, contrariadíssimo. Disse algo como a filha preferir um mendigo a ele, culpou a minha mãe por isso e acrescentou que da próxima vez deixaria que invadisse o quintal e a casa etc. Tive medo de olhá-lo nos olhos e pensei que, se agia assim como um homem velho e fraco, como não poderia agir comigo?
Se é que havia até então um personagem chamado Meupai, deixou de existir naquele Sábado de Aleluia.
Quê isso, gente? Tem magia na escrita? Isso me arrasa!!!
ResponderExcluirOlá, volte sempre.
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