sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Se eu morresse amanhã

Candido Portinari: Palhacinhos na gangorra.
 


Quando nos nascem os filhos, descobrimos a mortalidade. (Joan Didion)

Sinto que o mês presente me assassina. (Mário Faustino).

Se eu morresse amanhã as crianças estariam bem. Até às cinco da tarde, em nada teria mudado a sua rotina: almoço, brinquedo, aula de capoeira. Às cinco horas, já de banho tomado, seriam levadas pela mão até a entrada da escola, onde se sentariam, mochilinhas ao lado, como todos os dias, para me esperar, enquanto o restante da turma seguiria em fila indiana para o refeitório.

Amanhã, sob o olhar atento do vigilante uniformizado, os dois olhariam ansiosos para o portão, mas desta vez não receberiam o meu abraço. Nunca mais sentiriam o meu calor.

Cinco horas, cinco e meia... seis horas. A tia retorna com a turma do refeitório: - Vocês ainda estão aí? - Mamãe se atrasou? - Querem esperar na sala com os colegas? São muitas perguntas para crianças de quatro anos - e são só o começo.

A partir de então se inicia, para eles, um estranho périplo de gentes estranhas, que olham com pena e suspresa: - Tão pequenos ainda! - A mãe tinha tanto amor por essas crianças! Mãos na boca, olhos se abrindo, mãos na cabeça... Esses pequenos gestos dos que recebem a notícia iniciam os dois no aprendizado mais efetivo do que significa: um verbo no passado.

A teatralidade das pessoas em volta prepara-os para algo que tem de ser conhecido e interiorizado o quanto antes, mas que, contudo, ninguém chega a lhes dizer o que é, mesmo porque ninguém quer falar a crianças sobre a morte da mãe, ninguém quer dar a má notícia. O pai, talvez... O que foi, que houve... Ninguém os olhará nos olhos e lhes dirá que a mamãe morreu ou coisa que o valha. O que aconteceu? Essa pergunta ainda não sabem formular com clareza, ou talvez não serão ouvidos em meio a tanta confusão, centrada muito acima de suas cabeças, provavelmente, agora, um pouco mais baixas. Suas demandas são de outra ordem, da ordem dos não acostumados à falta, dos que sequer suspeitam da existência da ceifadeira.

O que ditam é muito mais um presente, já então impossível: Eu quero a minha mãe! Talvez utilizem, a partir de agora, com grande propriedade (sutil evolução que será contudo ignorada por pessoas preocupadas com questões práticas, quiçá com a sobrevivência e o bem estar físico das duas criaturinhas): Por que a mamãe está demorando hoje? Já é de noite? Onde está a mamãe?

Certamente seriam poupadas do espetáculo sombrio do enterro, do ridículo velório.

Em breve meus irmãos, entre si, determinariam quem ficaria com as crianças, até que o pai diligenciasse. Se ficassem com o pai, seriam criadas por uma empregada, expectativa para as noites que talvez alongasse e entristecesse infinitamente os seus dias, já longos, na escola, a depender da índole dessa nova mãe assalariada, habitante de um distante subúrbio e mãe de quatro outros filhos.

Os fins de semana, quando o pai viaja a trabalho, seriam de grande imprevisibilidade, desenhada de acordo com a disponibilidade dos amigos dele, dos parentes da mãe: ora estariam em Manguinhos, ora em Bela Aurora; ora em Nova Venécia, ora em Jardim da Penha... Para Francisco, que gosta de silêncio, de ordem e de rotina, essa fase seria difícil. Ainda não imagino de que modo resolveria as suas crises de medo, que o levam a minha cama praticamente todas as madrugadas, assim como ocorria comigo mesma quando criança. Refiro-me não ao consolo imediato, que tanto pode auxiliar quanto retardar a resolução; penso antes no desenrolar lento e gradual dessa faceta de sua personalidade, que, estando viva, eu acompanharia...

Nos primeiros dias, ou nos primeiros tempos, provavelmente ele teria crises de choro e declararia "saudade da mamãe", como faz quando dorme em casa do pai ou porque "está demorando muito" a hora de retornar ao lar. Enquanto isso Flora talvez o consolasse, beijando-o, alisando-lhe os cabelos. Pode ser que ele voltasse mesmo a chupar o dedo e, se não voltasse, seria porque a mãe ficou tão feliz com a sua atitude de parar imediatamente e para nunca mais retornar ao hábito, desde que ela lhe descreveu o ciclo da verminose...

Da Flora, aparentemente mais bem adaptada à nova rotina ou à falta dela, pode ser que se ouvissem comoventes perguntas desconcertantes acerca do desaparecimento materno, que os ouvintes, a depender do seu grau de sensibilidade, poderiam interpretar como poéticas, dramáticas ou mesmo cômicas.

Ninguém poderia contudo mudar a sua rotina de trabalho para cuidar exclusivamente da readaptação dos dois pequenos seres. Nem mesmo minha mãe deixaria de cuidar de suas plantas e galinhas, transformando radicalmente o seu dia-a-dia, por décadas planejado, para dedicar seus últimos e cansados anos a cuidar dos netos órfãos.

Por mais que alguns, como meu irmão Alex, se esforçassem por se colocar no lugar dos pequenos gêmeos, ninguém poderia compreender (eles mesmos apenas sentiriam, e por algum tempo) que perder a mãe, neste momento histórico pós-feminista e anterior à resolução da famigerada dupla jornada, é mais que perder a mãe. Perder a mãe é perder a oca do aconchego, o calor da casa, o sossego e o silêncio do território conhecido e a cada dia, de novo, reconhecido.

Todas as sutilezas polidas pela passagem das águas transparentes do cotidiano, tudo se perde com a perda da mãe. Tudo tem de ser reinventado: a fruta preferida, a roupa de dormir, a temperatura do leite... Têm de ser redescobertas, por alguém que mal e mal as descobrira: a sandália que machuca, a palavra que significa outra (biscoito de cobra, rabo de macarrão)... A camisa do dragão, o filme da floresta, todas as incorreções dos belos jogos de linguagem, tudo agora se torna, como num passe anti-mágica, ininteligível aos ouvidos dos novos adultos. As palavras passam das suas acepções familiarmente ressignificadas, da corredeira da recepção mais afetiva, para a pescaria comum. Será preciso, aos pequenos órfãos, criar outros modos de fala, mais lógicos, objetivos e racionais, que empurrarão os dois para os cinco, depois para os seis anos de idade e assim por diante. A responsabilidade de se fazer entender cescerá juntamente com o leque das necessidades.

Se fossem morar com a família de um dos meus irmãos, ingeririam muito mais açúcar do que estão acostumados a ingerir e talvez engordassem um pouco no início, especialmente porque seria difícil negar-lhes um chocolate, agora que tinham perdido a mãe...

De repente teriam mais irmãos, é finda a ditadura dos gêmeos! Do nada, outros jogos e regras, outras ordens a que obedecer, surpreendentes permissões e, volta e meia, uma voz que se aproxima lhes faz abrir os olhos, achando, ambos ou um dos dois, que é a mãe que retorna da longa viagem, se é que não lhes dirão que a mãe foi para o céu. Francisco, que vinha, ultimamente, mostrando grande interesse pelo sistema solar, agora imagina, impressionado e confuso, os cabelos da mãe esvoaçando por entre os planetas, a mãe voando e rindo perto da lua... - Mas por que ela preferiu ir sem mim, e nem me avisou?

Flora à noite dará suas pequenas gargalhadas, desta vez sonhando com as cócegas que lhe fazia a mãe antes de dormir, com os beijinhos suaves que trocávamos no meio da noite...


Mas no fim da tarde, na escola, porque o fato já se repete há anos, a força do hábito fará com que ainda esperem pela mãe,  e é provável que, mesmo depois de algum tempo, ainda torçam para que hoje venha a mamãe. É possível até que troquem palavras, confabulando entre si sobre o que fariam quando acontecesse o esperado retorno, rejeitando assim o pai, a empregada ou o tio que vem apanhá-los naquela tarde.

Algumas vezes, na escola, por detrás dos cartazes onde a mãe se escondia para não atrapalhar o desempenho dos dois na aula de capoeira, ainda verão umas pernas que se assemelham às dela, e talvez daí a uma ou duas semanas ainda corram para ver se sou eu, embora nunca mais nenhum coleguinha tenha gritado, como quase todos os dias: "Flora, Francisco, sua mãe chegou!"

Com o tempo se acostumariam ao novo ambiente que lhes fora designado, mas com certeza não seriam mais as mesmas crianças. Talvez viessem a ser adultos melhores. Talvez piores. Menos ou mais sensíveis... nunca se sabe, mas nunca os mesmos que seriam se eu não morresse amanhã, se seguissem sob o afeto e a influência da figura materna.
 

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