domingo, 26 de dezembro de 2010

Sobras

Quando criança, vivia num casebre onde funcionava uma espécie de internato interiorano. E era sempre o último a chegar, à noite, por isso não fazia as refeições à mesa, junto com os demais. Servia-se diretamente no fogão, onde ficavam, frias, as grandes panelas.

Naquela noite a mesa de madeira sustentava numa das cabeceiras uma florzinha roxa, murcha e enigmática.

Tendo chegado faminto, foi até o fogão e destampou a frigideira, pensando em aquecer o feijão. Lá estava a ratazana, afoita e barulhenta, devorando as sobras do jantar. Era tão grande e nojenta. A tampa mal parava sobre ela, devido ao seu movimento frenético. No mesmo instante foi entendendo em si certos sintomas até então inexplicáveis e descobriu-lhes, de repente, a causa: ele vinha, há tempos, comendo as sobras da ratazana.

sábado, 25 de dezembro de 2010

Noite feliz!

Uma estranha sensação me toma quando ouço pessoas adultas falando em menino jesus e anjo da guarda. Penso que no fundo devem estar caçoando. Não é possível que invistam sérios afetos em contos de fadas sem fadas e, principalmente, sem um enredo bem contado. (Deus)
 
O espírito natalino baixou ontem no morro aqui atrás. À meia-noite um manto de luz cobriu a todos e, como num passe de mágica, os casais em crise se reencontraram, os irmãos afastados se perdoaram, os vizinhos indispostos se abraçaram e cearam juntos, e logo fumaram o seu baseado na santa paz de deus e foram ouvir o funk do senhor gravado pela Facção de Jesus!

Só um tempo depois percebi que eram os primeiros relâmpagos do temporal que se formava e que inundou a avenida, cujo sistema de escoamento há muito anda comprometido.

Até a dona Conceição, que tinha sido espancada pelo companheiro anteontem mesmo, perdoou. Quase pude vê-la apanhando (perdão pelo verbo e pelo nome dela) na estante da sala o vinil da Simone, para ouvir novamente, depois de um ano: "Então é Natal!...".

Mas a sua cara não está nada boa. Lógico, ninguém se desdeprime antes que o roxo desapareça do olho.

Por falar nisso, na arara do supermercado vi a capa de uma revista: "Reapaixone-se: a solução para o tédio do casal em uma semana". Nessa série, o último de que ouvi falar era o livro Transforme seu marido em seis dias, cuja promessa da sinopse não lembro bem, mas acho que era sexo, amor, companheirismo e cumplicidade de volta - como na lua-de-mel.

Aguardarei um pouco mais. Dado o atual avanço da ciência e da tecnologia, não demora essas coisas se solucionarão muito rapidamente e, assim como tínhamos até há pouco Excel em 24 horas e Derrida em 90 minutos, em breve teremos Salve seu casamento em meia hora ou Descubra se ele é o homem ideal em 15 minutos.

Retornando à Natividade... Todas as mazelas, as dores, as desgraças, toda mentira e traição, a violência, o desamor, o abandono, a miséria, a cobiça, a doença, o desespero, a inveja, os ciúmes, as dúvidas, as dívidas, tudo desaparece como num toque de mágica nesse dia especial. Especialmente quando coincide de a virada do Natal cair na noite de sexta para sábado.

Claro que lamentavelmente há exceções. Conheço duas senhoras hipercatólicas que deixaram de se falar há quinze anos, e justo por ocasião do Natal, sob o som do Jingle Bells e o entrechocar das nozes!

Mas isso é porque o catecismo não lhes foi bem inculcado, ou então elas teriam aprendido que o valor maior para um cristão é o amor ao próximo, e que o ato do perdão é a sua grande demonstração.

Enfim, não se falam. Mas com certeza se lembram uma da outra nas suas orações, porque ambas eu sei que rezam para comer. Quero dizer: as duas realizam em voz alta os seus votos a todos os necessitados do mundo, diante do peru assado, antes de darem, altivas, o sinal para o ataque da família famélica, à meia-noite.

Se eu mendigasse, chegaria a um desses lares enfeitados de luzes coloridas justo à hora da virada, na noite de Natal, a ver se garantia o meu quinhão da fina iguaria! Pode ser que, diante do constrangimento e dos olhares perplexos de crianças e meio-estranhos recém-agregados, deixassem mesmo que entrasse.

Inclusive porque percorre o imaginário a idéia de que na noite de Natal o Cristo em pessoa, disfarçado de mendigo...

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Advérbios

- Mãe, senta aqui no meu perto.
- Sento!
- Assim você fica na minha atrás!
- Na minha frente.
- Na sua frente!?

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Cemitério familiar

Gustav Klimt: Danae.


Recebíamos os mortos em nossa própria casa, trazidos pelos seus parentes próximos. Uns vinham empalhados e devidamente encolhidos, como o boneco de papelão de uns poucos centímetros, de um índio americano, que pendurei provisoriamente na fechadura, enquanto recebia uma remessa já bastante condensada, recém-chegada de uma chacina na casa de detenção. Toda a família trabalhava igualmente no recebimento e na organização dos cadáveres. Orgulhávamo-nos de podermos trabalhar juntos e em nossa própria casa, que transformamos num cemitério ultramoderno. Alguns mortos chegavam em urnas minúsculas e outros já em DVDs, que distribuíamos por ordem alfabética nas prateleiras. Os DVDs eram minha forma preferida para armazenamento: ocupavam pouco espaço e não pesavam quase nada.

Eu havia acabado de receber as vítimas do atentado e arrumava-as nas estantes quando fui surpreendida com o modo antiquado como me trouxeram um novo defunto, dificultando a locomoção: numa caixa grande, feita de ripas de madeira, dessas em que se transportam legumes: pensei em como seria incômodo lidar com aquilo, mas sabia que era norma não rejeitarmos nenhum cadáver.

Aproximei-me, então, calculando como faria, e vi que se tratava de uma mulher jovem, esquartejada, com alguns membros separados do corpo. Olhei bem e notei que tinha a minha estatura. Também o tom da pele se assemelhava ao meu - só que estava mais branca, considerei, porque tinha perdido muito sangue. Quando virei o rosto para vê-lo melhor, percebi assustada que era eu mesma, com um batom vermelho que nunca usei. As formas exalavam sensualidade.


terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Mortos vivos

Frida Kahlo. Sem esperança.

Andei pelo cemitério, contemplando: os mortos eram todos enterrados da cintura para baixo, de pé ou sentados, apenas o tronco e a cabeça apareciam sobre as lápides.  Tive a impressão de que alguns mexiam o dorso, e a certeza de que os cabelos continuavam a crescer após a morte, porque todos os traziam demasiado longos e bastante empoeirados. No momento seguinte reconheci, a partir da cabeleira densa e longa, eu mesma, em uma das tumbas, e passei a sentir a angústia profunda de não estar mais viva, mas de também não estar completamente morta, podendo movimentar apenas parte do corpo, e ter de estar assim para sempre. Olhei na tumba ao lado e reconheci a cabeça do Cristo, como a que aparece em muitas gravuras medievais. Virou-se para mim e piscou-me o olho, num sinal de cumplicidade que antes me encheu de pavor.



sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O asco

Emerge do ventre salobro chafariz.

Encontra o temido e desejado fim.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O caos

Desastre: por um segundo o prisma lacrimal apaga sol e lua.

E num piscar de olhos a paisagem renasce luminosa.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

O caso

Cada canto da boca sorve uma gota salgada:

antídoto longamente destilado.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Ocaso

Duas lágrimas - foi o que verti.

Não é pouco, nem sinal de insensibilidade.

Quem já olhou de perto uma gota sabe que nela se reflete inteiro um universo.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Sutiã

Flora, solidária, estreando a miniblusa rosa que ganhou da avó:
-Mãe, menino pode zuar sutiã?
-Usar?
-É!
-Poder, pode. Por quê?
-Eu vou comprar um sutiã azul pro Francisco, tá?

Presente de Deus


Michelangelo: A criação de Adão (detalhe).

O motorista do carro da frente não precisou comprá-lo, ganhou direto de Deus, está escrito no adesivo.

Será por isso que ele me deu uma fechada, quase me jogando sob a scânia para ser escaneada?

E será pela mesma razão que, quase incontinenti, lançou pela janela uma lata vazia de refrigerante?

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

História natural




Achava dificuldades em perceber o óbvio: cobras cegas são notívagas; o orangotango é profundamente solitário; ratos de laboratório vivem em média dois anos; macacos também preferem o isolamento.

Até que um dia hospedou no quarto de cima um caranguejo. Sempre pensou que o bicho andasse para trás. Mas agora não cabia mais pensar; ali estava ele, o casco reluzente, os olhos compridos, descendo as escadas para o almoço na copa. À mesa, triturava lentamente cada folha de alface, as pernas peludas exalando um odor de lama não de todo desagradável. Dia após dia, crescia.

Às vezes ela se fechava no quarto a imaginar o lugar de onde ele vinha, a superfície fria da lama negra, o brilho das folhas polpudas das árvores do manguezal, suas sementes verdes em formato de pincel, os troncos apinhados de ostras... Subitamente, porém, outras tonalidades tingiam os quadros que criava, e eram os tapetes puindo, a vizinhança curiosa, a feira por fazer e alguns pequenos flocos de lama a se fixarem no rodapé. Nesses momentos, esforçava-se por firmar o pensamento sobre a própria capacidade de compreensão, sobre como ela era humana em trazer para o seu asseado convívio aquele crustáceo. Não podia esquecer que conservá-lo ali era a forma que havia de ter consigo todo o mangue, de vivê-lo ainda uma vez, mesmo que em devaneios.

Quando criança, ouvia contar as histórias do homem-caranguejo, que vivia dos excrementos lançados no manguezal. Naquele tempo o mangue era uma faixa limpa e menos conhecida do mar. Excremento era menos tóxico e o homem-caranguejo era um pernambucano ou um capixaba que tinha vizinhos que lhe apinhavam a palafita para vê-lo comer excrementos, por vezes o próprio excremento.

Crescer o bicho sabia, e ela o notava. Era tanto o espaço que já ocupava que tiveram de ser retirados alguns móveis. Os tapetes da escada, embora favorecessem sua escalada diária da copa ao quarto, também foram discretamente recolhidos, antes que puíssem de todo com a constância das pontas das suas pernas traseiras.

A parte mais proveitosa da hospedagem eram mesmo os devaneios que o hóspede sem saber lhe proporcionava. Também lhe parecia útil a descoberta de que caranguejos andam de lado, e não para trás, como sempre ouvira falar.

Sentada num sofá azul fechava os olhos levemente maquiados - também de azul - e se deliciava com o odor de mangue buscado na memória da imaginação da infância. Suas narinas se dilatavam sorvendo aquele pretume. Podia vislumbrar muitos deles a entrar e sair de seus buracos na crosta semi-dura. Fêmeas prenhes arrastando os ventres dilatados, recheados de ovos cor de abóbora, os olhos compridos em expressão de penúria. Quando se achava já em meio a eles, sendo quase uma delas, correndo também em busca do seu buraco, a sua mãozinha delicada escorregou do sofá e tocou o companheiro, que se chegara silenciosamente, como de costume, em busca de sua ração diária.

Assustada com o contato de seu casco duro e seco, tentou refazer-se, aparentando naturalidade, e exibiu-lhe um sorriso suave, que quase o acariciava. Naquela manhã seu casco parecia mais azul. No almoço, enriqueceu a sua folha de alface com pedacinhos de cenoura, tudo tão fresco e apetitoso que ela mesma resolveu provar. Queria sentir o gosto exato do que o amigo ingeria. Mas era inútil, pensava quando o olhava fixamente. Via o formato quadrado de sua mandíbula peluda e imaginava o que lhe ia por dentro.

Chegou a dedicar-se à Zoologia, na tentativa de penetrar aquele mundo insólito. Comprou alguns livros ilustrados, mas chorava de desespero perante as gravuras, porque todos os caranguejos que via eram diferentes daquele seu hóspede, e pareciam todos tão integrados ao seu habitat natural que passou a sentir-se culpada pela expressão sempre ríspida na face do bicho e até pela dureza do seu casco. Lembrou-se de que, quando ele viera, havia do lado esquerdo um furo de bala, resultado do péssimo costume que têm alguns de usar armas de fogo para a cata de caranguejos. Alguns emplastros ajudaram a recuperá-lo inteiramente; porém, no local do antigo orifício o casco dobrara em espessura, deixando à mostra um calo ainda mais duro que o resto da superfície.

Por meses viveu entre a alface e o devaneio. Até que um dia dormiu no sofá azul e amanheceu com a barriga enorme, repleta de ovos cor de abóbora. A lama cobria o tapete que restava.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Kim Phuc


Estava olhando as famigeradas quarenta e cinco fotos históricas que alguém me enviou quando Flora e Francisco entraram no escritório atrás de papéis para desenhar.

Aparecia justo a menina vietnamita queimada por napalm e os dois foram abduzidos pela imagem. Vivemos numa época em que ver fotos se tornou algo um pouco mais público do que era algum tempo atrás. E o movimento de clicar às vezes é menos rápido que o de fechar um álbum, para mãos acostumadas a lançar juntos mais de um dedo.

Claro que, tendo filhos pequenos, eu também penso sobre a tênue distância entre o quarto cor de rosa e o canivete da esquina, sobre o rápido intervalo entre a bela adormecida e a bala perdida, e o pêndulo oscila sempre entre o que esconder e o que apresentar, o que introduzir agora e o que deixar para mais tarde. É uma rotina de responsabilidade desumana, porque demasiada para o humano, se a tomamos a sério.

Mesmo porque temos, no mínimo, uma história inteira, um idioma inteiro, uma cultura inteira dentro dos quais nos perder para tentar nos encontrar. Das migalhas do que pensamos conhecer temos de fazer uma colcha de retalhos apresentável e coerente, por ora, enquanto as crianças não aprendem a costurar a sua, sabendo contudo que somente o aprenderão a partir dessa pequena mostra que lhes damos no começo.

O fato é que a menina, em choque, chora de dor e desespero, braços estendidos em cruz e a pele a se soltar, correndo nua pela estrada juntamente com outras crianças vietnamitas, seguidas de perto por soldados...

Lembrei-me imediatamente de que irrompi aos prantos ao ver a cena no cinema, a menina em completo desamparo e procurando por ar para respirar, num documentário exibido no antigo cine Carmélia, quando eu ainda era adolescente.

Flora comtemplou a imagem em preto e branco por um largo minuto: "- Por que ela está chorando, mamãe?" Ia responder que era porque estava triste, mas em tempo percebi que não a convenceria. A tristeza ela já conhece. De início fiquei assim, sem resposta, tentando eu mesma entender a dimensão daquilo, enquanto ela já se distraía, espalhando pelo chão as suas canetinhas.

Mas Francisco não. Pediu para ficar no meu colo, como quando aparece no dvd a bruxa má, e não era mais capaz de tirar os olhos da tela. Via apenas a menina e perguntava seguidamente, como num eco da fala da irmã: "- Por que ela está chorando?" "- Porque ela está triste." "- Por que ela está triste?" "- Porque ela está sofrendo." "- Por que ela está sofrendo?" "- Porque ela sente dor." "- Por que ela sente dor?" "- Porque ela foi queimada." "- É? Por quê?" "- Porque os Estados Unidos..."

"E por que ela está chorando?", voltou a perguntar depois de meio minuto. Penso que perguntou doze ou quinze vezes, não importava mais que tipo de resposta eu lhe desse. Fiz menção de fechar a página, ao que ele, sério, num gesto assustadoramente além de sua idade e ainda sem tirar os olhos da menina, empurrou com seu braço o meu, tirando-me assim a posse do mouse. Depois quis saber o que o garoto tinha na perna, uma mancha que não aparece em todas as versões da imagem.

Tentei atraí-lo para uma Challenger que estourava nos céus, um John Kennedy sendo assassinado, um papa a ponto de levar um tiro... não houve modo.

Temo que sofra dessa mesma necessidade que tenho de diluição. Distante de qualquer suposto sadismo ou masoquismo, trata-se de uma estratégia de disseminar o incômodo por meio da palavra, de sua pungente repetição, um modo de desgastar a imagem dolorosa através do olhar, até que se canse de ver.

Junho de 1972. O exército americano ataca Trang Bang, Vietnam do Sul. Foto: Nick Ut.

P.S.: Finda a postagem, percebo que a imagem inutiliza a narrativa, torna-a desnecessária diante da força óbvia que o horror aciona. Mas ela deve permanecer ali, a pedido da própria Kim Phuc. Sobrevivente, hoje ela afirma bastar a qualquer pessoa ver a foto para que entenda a que ponto pode chegar o pavor de uma criança durante uma guerra.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Silábicas

- Mamãe, eu quero vaca de leite!
- Hum!?
- Eu quero leite de vaca!
- Ham!...

- Cadê o meu nipico?
- Ai, meu deus, agora dificultou!
- Pega o meu nipico, eu quero fazer cocô!

- A tia contou a história do cutâneo!
- O quê? Contou o quê?
- A coruja e o cutano moravam na árvore...

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Diálogo no semáforo

Fabio Baroli: Vendeta.

- Aí, tia, passa o brinco!
- Tudo bem (as mãos destarrachando rápido), mas não é ouro; dei oito reais no par. Eu te dou dez reais que eu tenho aqui.
- Toma o brinco.
- Obrigada!

sábado, 27 de novembro de 2010

Fechamento de varandas

Se bem que... eu adoro começar frases com se bem que... É fácil, e qualquer idéia que venha depois estará bem introduzida: o que não lhe garante desenvolvimento, obviamente. Se bem que, quando retornei a vitória, depois de alguns poucos anos em brasília, me assustei com um outro tipo de comércio que tinha surgido aqui, durante a minha ausência (o fascismo do idioma nos trai a boa intenção: o comércio surgiu aqui? e foi durante a minha ausência?), e que vinha estampado em carros comerciais, gritando paradoxalmente, aos meus ouvidos: "fechamento de varandas". Não entendi de primeira. Não conseguia imaginar para que é que alguém quereria uma varanda fechada; fiquei pensando se ela seria, ainda assim, uma varanda. E tentei vislumbrar o tipo de fechamento a que se referiam: grades? paredes de alvenaria? vidro blindado? Claro, é um sinal dos tempos... Ao primeiro montinho de minério de ferro que juntei no canto da sala tive um vislumbre de entendimento. Das questões de segurança prefiro não falar, porque não consigo me situar indubitavelmente de um dos lados da trincheira, observando através do meu vidro blindado...

Vendem-se cofres

Como assim, vendem-se cofres? Que sentido tem vender cofres (um caminhão cheio deles!) em frente ao mar, no sábado de manhã? Ora, é óbvio que tem a sua razão de ser, Andréia! Quem é você para duvidar da lógica comercial? Claro: a demanda é produzida antes do produto, que para isso também servem as indústrias. A demanda é o primeiro produto. De qualquer modo, é um estranho comércio, em todos os sentidos - a começar pelo estético. As folhas dos coqueiros parecem metálicas quando as vemos por detrás do frio aço da pilha de baús... As pessoas fazendo cooper no calçadão têm de desacelerar para desviar do caminhão... de cofres. O carrinho de coco se encolhe humilhado diante da imensidão daquele pesado marketing sem marca: é somente o caminhão de cofres. Acontece que eu mesma não conheço ninguém, absolutamente ninguém que tenha um cofre em casa - você conhece? Sem dúvida meu ciclo de relacionamentos anda um tanto encurtado e é possível que eu não tenha sequer um amigo rico, mas... há tanta gente assim disposta a comprar cofres? Realmente não consigo entender aquela enormidade de caixas cor de lata e de tantos, diferentes tamanhos, esperando jóias e dinheiros e documentos tão importantes sob o sol amarelo da praia de camburi.

sábado, 13 de novembro de 2010

Retrato falado

Procura-se um rapaz de olhos profundos, da cor da noite passada. Os cabelos são do mesmo tom e avançam por incerta ancestralidade.

As mãos semelham ter trabalhado longamente a maciez do ferro, cada uma desaguando em cinco rios de ébano, talhando mesas e lousas e corpos.

Deve segui-lo um pequeno grupo de elfos.

Relatará um endereço conhecido, porém jamais estará em casa. Se o virem atravessando a avenida, confirmem o seu perfume de laranja e canela, a torre macia dos ombros, as costas aveludadas.

Na voz pode ser que se disfarcem torrentes e luminosa cascata.

Há nela claves de doçura e dureza. 

É prudente abordá-lo com firmeza e conduzi-lo suave, ao som de nina simone.

Conjunções

Francisco aprendeu a fazer conjunções. No início nem era bem uma conjunção. Aliás, começou - como nos parece dialeticamente natural - com o interrogativo. Duvidei de que estivesse falando sério; quero dizer: de que já tivesse noção de que causa e consequência pudessem se articular na linguagem.  Estranhei porque, de um dia para o outro, desandou a usar tantos porquês, e em situações nas quais, para minha parca lógica adulta, soavam tão descabidos, que parecia antes um saborear silábico do termo em si:
- Vamos trocar de roupa.
- Por quê?
- Sua irmã acordou!
- Por quê?
- Está chovendo.
- Por quê?
Ao largo de uma semana escutei dele, enfim:
- Tem que ir pra escola porque hoje vai ter pula-pula.

E logo depois:
- Por que você passou batom?

Estava já convencida de sua proficiência em algumas das variantes quando o surpreendi enfim encetando um diálogo muito interessado com a irmã:
- Porque ele caiu do cavalo! Aí começou a tocar uma música porque.

Já ontem ouvi de Flora a reprodução de uma norma ouvida em algum lugar:
- Não pode correr na rua se não.
Sem reticências e com destaque para o não.

Hoje, quando lhe disse que poderia levar consigo o barquinho, respondeu rápido:
- Não pode levar brinquedo pra escola se não.
Com mais essa demonstração, estou certa de que é a paixão pela própria capacidade de expressão que nos agarra primeiro, ainda muito pequenos.

Da humildade

Bosch: O jardim das delícias (detalhe).


Alguns sentimentos são tão delicados que não resistem sequer a uma repetição dos termos que os nomeiam.

Penso, por exemplo, na humildade. Imagine alguém se autoafirmando... humilde. É o suficiente para decretar o fim, o falso, o frágil da humildade.

Ou dizendo em voz alta uma frase assim: -Eu sou uma pessoa muito humilde! Os ouvintes rimos por dentro. Ou então perguntando: -Todos vocês concordam que eu sou mesmo humildíssimo?

A humildade não suporta nem mesmo o superlativo; que diria do aumentativo!

Assim, o mesmo personagem pode ainda criar para si um endereço eletrônico como este: humildão@gmail.com .

Ou então um blog, o blog do Humilde.

Ou um site, um portal: http://www.ohumilde.com/ .

Trata-se de um equilíbrio tão sutil que mesmo um inocente artigo definido pode estraçalhar a humildade.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Mamãe Andréia

"Mamãe Andréééia!..."

Quando meu nome aparece no vocativo, já posso me erguer procurando por fraldas e lenços e instrumentos de precisão, rs: alguma coisa fora do comum sucedeu. 

Se ouço apenas "mamãe!", em geral é um carinho que querem, segurar a minha mão para dormir, ou simplesmente constatar que estou ao alcance.

Agora, se meu nome é alocado ao final da frase, não resta dúvida (fui confirmando com a experiência): alguém fez xixi na cama, a mamadeira foi derramada, o vídeo parou de funcionar... ou seja: devo ir revestida de todas as minhas funções. Não se trata somente de surgir como mamãe, esse misto de autoridade em cafuné com compreensão normatizadora; tenho de levar comigo a babá, a faxineira e a técnica em eletrônica, que dessa vez o negócio é sério!

Como é que vão se criando esses códigos é difícil saber, mas acompanhar-lhes o desenrolar é muito divertido - e mesmo útil, no convívio com as crianças.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Cruzar o sinal

"... já disse, é tudo verdade, mesmo ou sobretudo o que invento... só a ficção está de fato apta a prestar contas do real..." (Evando Nascimento)

Como pode ser assim, isso de escrever?

Às vezes é tão imenso o deserto imaginário, que as palavras vão saindo dos dedos feito as lebres de um ilusionista, orelhas fora da cartola, carentes de sentido, olhando em volta sem nada entender do barulho do teclado aplauso e das luzes do estranho palco monitor.

E ainda assim desponta, em algum lugar, alguém que, numa noite de chuva como a deste atípico fim de outubro, nos leu...

Na verdade (e ainda há quem ria do fato de eu duvidar também disto: a verdade)... na verdade apanhei um cigarro para escrever ao namorado ausente, sobre como as suas mãos, talhadas no movimento de amaciar o ferro, decoravam o ângulo italiano do meu nariz.

A lista de romantismos resultaria interminável - e mesmo inútil - entre tantas resenhas a revisar, mamadeiras sujas, pequenos contratempos cotidianos e, ainda por cima, a empregada pedindo as contas...

Esta não pode ser uma noite comum. Primeira medida: cortar os cabelos longamente cultivados. Segunda primeira medida: mudar o toque do celular, driblando a náusea da espera. Terceira primeira medida: olhar duas vezes antes de cruzar o sinal.

No quarto contíguo dormem as crianças, entre lobos maus... Esta noite não é mesmo comum.

Deixarei para chorar amanhã, na cadeira do dentista.

domingo, 24 de outubro de 2010

Nunteressa

À medida que o vocabulário se amplia, aumenta a confusão entre palavras com sonoridade parecida, misturam-se sílabas iguais de diferentes vocábulos e, curiosamente, desponta a mesma dificuldade que se tem no aprendizado de um novo idioma: não se sabe ao certo, nos primeiros contatos, onde termina uma palavra e começa outra, no falar fluente do plenamente letrado.

Daí a produção de pérolas como: "Eu não sei andar de bichiclete." ou "Mamãe, eu engoli o bicicletes!"

Algumas vezes só pude entender a permuta involuntária graças aos objetos, ao gestual: "Agora eu vou andar de basquete", disse Flora simulando um skate com meu grande chinelo sem tiras...

Deparamo-nos, por vezes, com a criação (muito lógica) de uma nova regra: "Minha cama é cor de rosa; a parede é cor de branco e o ventilador é cor de preto!"

E, ainda, vez ou outra, com a reinterpretação de uma norma: diante de palavras proparoxítonas, como máquina, ou forçosamente proparoxítonas, como a migrante bátiman, Francisco pergunta em auto e bom som: "Cadê minha maquiná?" e "É esse o batimán?", o que é muito compreensível se ouvirmos essas palavras descontaminados do conhecimento cristalizador que temos delas: lá está, na última sílaba, o segundo acento, o outro tom que chamou à atenção o ouvido, e pelo qual ele optou. Quem te ensinou essa canção? "Foi a tia Fatimá!"

Também aparecem diálogos cômicos - e de início ininteligíveis - como: "Vamos brincar de Bela Adormecida?" "Vamos! Eu sou o cagão!" Diante da dificuldade de pronunciar o dr, comparece a consoante mais fácil. Assim que percebi o fogo saindo das ventas do cagão, fui dar a minha contribuição para o seu encaminhamento ao correto pronunciar, triste embora com a poda de mais essa linda ignorância. Assim que saí do quarto, escutei: "Agora o vagão sou eu!"

À insistência em saber o que a priminha mais velha tinha na boca, Francisco recebeu enfim o seu primeiro "Não interessa!" Demorou, mas já estamos tão acostumados a essas crueldades - ou deselegâncias - que nem as percebemos como tais. E, se assim é, é melhor que nos naturalizemos a elas, para não sofrer em vão. Só que, para ele, ainda não caiu como ofensa. Veio imediatamente a mim: "Mamãe, me dá nunteressa. Eu estou sentindo o cheirinho de nunteressa".

São pratos já feitos para um decadente poeta concreto, para o escritor aposentado, carente de imaginação, ou para o alfabetizador perdido para a criação, de tão agarrado à gramática da língua...

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Tímpanos perfurados


Acidente no quarto de brinquedos. Foto: Andréia Delmaschio.


Do que viu e ouviu, o escritor retorna com os olhos vermelhos e os tímpanos perfurados. (Gilles Deleuze)


O Miguilim, narrando a preparação do corpo do irmão menor para o velório, diz que "a coisa mais forte neste mundo" era a mãe segurando o pezinho machucado do Dito morto como se ainda pudesse doer, caso batesse na beira da bacia em que o lavavam...

Roland Barthes, acerca da foto de "crianças 'anormais' em uma instituição de New Jersey", afirma: "Desprezo todo saber, toda cultura... não vejo as cabeças monstruosas e os perfis deploráveis... vejo apenas a imensa gola Danton do garoto, o curativo no dedo da menina...".

A mim me tira noites de sono a voz do pastor Jim Jones repetindo rouca e incisiva, quatro vezes: "Mother, mother, mother, mother" no momento em que as mães (ao menos uma devia estar relutando) tinham de fazer ingerir veneno as crianças, antes de o ingerirem elas próprias.

domingo, 1 de agosto de 2010

sábado, 31 de julho de 2010

Nos nós (parte 11)

Depois de alguns dias ali, perdida já a noção das datas, tive as mandíbulas imobilizadas pela descoberta de um deslocamento. Uma terceira mulher me trouxe a caderneta onde poderia anotar os meus pedidos. Lembrei-me das intermináveis listas de compras que a mãe adiava, pendentes da porta da geladeira. Dos telefones que o pai riscava nas paredes, para um caso de urgência. E dos poemas que publicavam nas contracapas das revistas.

Iniciaria eu mesmo a minha lista, uma pessoa tão frágil que quebrasse os dedos quando pegasse nas suaves, levíssimas coisas, e fosse deixando, mais que as impressões digitais, a pele - nos cantos das mesas, nas capas dos livros, nas cigarras dos apartamentos, nas pontas dos cigarros, nas pontes, nos carros, nas portas corrediças, nos corrimões dos corredores, nas corridas de táxi, nas colunas dos jornais, nos cais, nos cacos, nas xícaras, nos corpos, nos lacres, nos leques, nas luvas, nos vivos, nos uivos, na vulva, nos ovos, nos nós, nos sóis, nos sós, nos ós.

Nos nós (parte 10)

Não quis que me trouxessem os jornais, não importava que dia fosse, rejeitei a televisão a que tinha direito pelo plano de saúde. Quando cheguei, como indigente, o que restava de mim foi colocado numa maca com rodas enferrujadas e levado ao fundo de um corredor escuro. Tinha lapsos de memória, mas pude, enquanto me arrastavam, trec, trec, imaginar que fosse dia de visita da saúde pública, que os quartos estivessem lotados e que aquele hospital fosse um dos que aparecem na televisão no horário nobre, enquanto em casa fazemos o lanche.


A primeira pessoa se dirigiu a mim e era uma mulher alta e magra. Prestou-me os segundos socorros, depois entrou no toalete. Quando retornou era completamente outra: teria lavado a máscara de gesso e diluído em lavanda o odor de éter. Também encolhera muitos centímetros. Estaria deixando o plantão. Imaginei-a caminhando lá fora, em todos os sentidos, na direção que desejasse, apanhando o ônibus e passando pelas ruas cinzentas da periferia. Nesses primeiros momentos a dor era apenas insuportável, como uma mordida de cachorro, que alivia ao pressionar. Depois foi crescendo e a cada novo relance eu me esmerava em comparações para distrair os relances que me punham fora de órbita. Era como estar dependurado pelo dedo do pé, era ter os dentes arrancados sem anestesia, agulhas fincadas sob as unhas, era uma mordida de dragão hidrófobo. Os remédios deviam ser muito fortes e caros, porque só eram aplicados quando eu não mais suportava e já uivava, perdendo toda lucidez.

Nos nós (parte 9)

Gritei no meio da noite, repetindo em sonhos o acidente que me levara até ali. A dor no joelho platinado me alucinava e eu rasgava com os dentes a faixa de pano que atava o braço ao ombro e me assemelhava a um bicho-da-seda. Eu era um caso raro de bruxa de biblioteca que se transformara em casulo.

Nos nós (parte 8)

Vejo que o tempo se embaralha por entre as capas da noite. Num átimo, principio a reviver, folha por folha, o imenso arsenal de recortes, os periódicos incendiados, as atas, bulas, fotos, as dicas que me deram sobre como organizar. Engatinhei por todas as paredes procurando uma mancha, um traço, uma vírgula. Catalogava cascas de laranja. E agora, quando penso na mão esquerda dentro da armadura de gesso, me assola um desespero jamais imaginado. Maior que a ira com que rasguei os jornais, pior que o horror de estar vegetando na quitinete surreal, incrustada no centro do bairro pobre e suburbano, longe da praia, dos bares, do ror, do horror de gentes.

Nos nós (parte 7)

Pensei que talvez uma massagem me ajudasse a restabelecer as sensações, mas não teria coragem de solicitar algo tão supérfluo à mulher de avental branco, gestos rápidos e maquinais. Deveria haver, além do mais, uma fila de acidentados, alguns em pior estado que eu, aguardando também a espetada reconfortante da sua agulha.

De repente achei que, se pensava em mover-me, era talvez porque já se iniciasse algum processo a caminho da melhora. Desanimador era imaginar o quão longa e penosa seria a convalescença, à espera de que chegasse o dia em que pudesse de novo caminhar e respirar o ar pesado da avenida lá embaixo, até que uma outra morte viesse me tomar inteiro, e não por partes, como fizera essa pequena morte de agora, com odor de éter e branca como fria.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Nos nós (parte 6)

Já no meio da segunda manhã a dor voava, ave de rapina. Saía do alto-forno e caía no centro da geleira. Conhecia outra loucura, implorar por morfina de três em três horas. Não, a morte não era fina. Distinguia cada pino implantado no joelho, via o sangue coagulando em torno da placa de platina e a veia dilatada reiniciando o trabalho com o fluxo sangüíneo azulado e grosso. Nas primeiras horas depois da incisão, a perna intumescia rapidamente, e por fim os dedos, brancos, arroxearam em pontas frias e dormentes. A perna, pesada, imóvel, obrigava à paralisação de todo o corpo, cuja parte esquerda me era completamente estranha. O que fora eu não estava mais ali.

Enquanto perdurava o efeito alucinógeno da morfina, tudo era suportável: a dor, a sede interminável, o tédio, o medo da morte, da vida, da morte, era tudo tingido com os tons lilases do anestésico e nessas horas as marcas dos meus pés se espalhavam pelas paredes, formando um rastro até a janela, de onde me jogava direto sobre os automóveis que se dirigiam à beira-mar naquele dia claro. Domingo. Segunda. Terça. A mãe costurando para os ricos, bordando margaridas e beija-flores nas calças boca-de-sino, dia e noite ouvindo fofocas, tecendo redes, recebendo revistas com fotonovelas em preto e branco. Espetadas no alto da parede pelo irmão mais velho, cigarras e borboletas. Uma beleza que doía ver distribuída em filas que cresciam, os alfinetes furtados do salão de costura. No fundo do quintal, cigarras invisíveis, uma goiabeira, os siris subindo mangue acima. Sururus cozinhavam nas latas, os urubus rondavam a casa enquanto o pai não chegasse com a novidade de todos os dias, uma maçã insossa embrulhada em papel de seda. Na cozinha as panelas abandonadas, o chão sempre sujo dos pés enlameados. Na escola o medo do mundo, da morte, dos nomes dos planetas todos. Alguns meses têm trinta e um dias, os rios cortam a terra, no fim das frases um ponto, deus se escreve com maiúscula, lavar as mãos no recreio, as meninas brincam de roda, quem não fizer o dever não volta para casa. Os mais pobres olhavam com inveja para os menos pobres. Odiavam-se todos, desamor de toda espécie. Fila para entrar, fila para sair, fila para o carimbo no caderno, fila para devolver a tabuada, fila para cantar o hino, fila para receber a merenda. Os meninos puxavam cabelos, pisavam nos calcanhares, cuspiam na cara, jogavam carrapichos para grudarem nas meias, empurravam, derrubavam, escoiceavam. Os louros sofriam mais. No fundo da escola, por detrás da caixa dágua, faziam um menorzinho comer biscoito com merda, enquanto sua irmã chorava. A professora não saía para o recreio. No gabinete, recolhia listas de coletivos, fazia ajoelharem e copiarem cem vezes o verbo que erraram. Domingo. Passava. Segunda. Passava. Terça.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Nos nós (parte 5)

Porém sempre que alguém escreve é contra o pai e de certo modo contra si, e contra a infância, enorme, e a memória dela, diminuta. As palavras que juntamos restam longe da inquietação mais funda. Nos vingamos então numa terceira pessoa, reflexiva, correndo sempre para o lado oposto a nós mesmos, como corriam os antigos carrinhos das máquinas de escrever: se, si, só muito mais tarde, quando desistimos de nos perseguir, é que cavoucamos, quase sem perceber, as palavras enterradas na terra preta do fundo do quintal, revelando as manchas de sangue deixadas debaixo da árvore mais alta.

O pai trabalhava à noite. Então fazíamos sempre, durante o dia, um silêncio mortal, para não lhe cortar o sono. A que horas vivia, não sabíamos. Acostumamo-nos a ouvir psiu. Tantos psiu que nem sabíamos mais de onde vinham. Fazíamos psiu um ao outro, a mãe aos filhos, os filhos à mãe, a mãe às visitas... A irmã mais velha até hoje intercala, sem perceber, o diálogo com uns psiu. E ninguém bate portas, ninguém anda descalço, ninguém arrasta chinelos, nem xinga ou abre as torneiras, psiu, ninguém se serve sem pensar nos demais, ninguém ousa apanhar o último pedaço.

Anotei isso no verso do receituário que o ortopedista deixara na mesa de cabeceira.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Nos nós (parte 4)

Sabia enfim a dor. Relembrava o irmão mais velho e o antigo conselho urrado pelo pai quando quebrávamos os braços caindo do abacateiro, ou tínhamos de arrancar dentes ainda não de todo moles, ou quando nos picavam marimbondos, ou quando nos queimavam os vizinhos nas brincadeiras com álcool, ou quando vinha o farmacêutico aplicar injeções em cujo efeito acreditávamos, acostumados que estávamos a retornar sempre à saúde, depois de um curto período de reclusão. Para o pai a única dor era física, e outras não existiam. Quando tínhamos de passar por grande sofrimento físico, ensinava: “– Sintam raiva, sintam muita raiva”. E nos dava uma toalha úmida enrolada para morder. Com o tempo a raiva foi se estendendo como antídoto a todas as más ocasiões: às provas na escola, às viagens de ônibus, às filas. Aprendemos a ligar a ira à labuta diária, ao investimento objetivo, à própria vida enfim. E justo graças a ele, que sofrera a vida inteira de dores que não eram físicas, um perseguido mental.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Nos nós (parte 3)

Domingo. Passou. Segunda. Passou. Terça. Quando eu era criança, no fundo do quintal, escavava a terra com as unhas até sangrar. Mentira. Quando eu era criança, trocava chicletes com o irmão mais velho, pelo pegar no fio despelado pendurado na parede. Mentira. Eu era ainda criança quando o irmão mais velho comprava já sua primeira motocicleta. E era eu quando, no fundo do quintal, notei que ele sacrificava pequenos animais. Mentira. O irmão, tendo me percebido criança no fundo do quintal, as unhas sangrando minhocas, nenhum chiclete no bolso e os olhos arregalados perante o grito morto dos animais sacrificados, ofereceu-me um saco de doces coloridos em troca de que segurasse com força os fios despelados que corriam frouxos pelas paredes úmidas. No fundo do quintal, eu criança não via que os doces eram comprados com o dinheiro furtado do meu cofre. O cofre vazio, o choque dos olhos mortos, os cães riscados em cruz na parede do barraco, o choque elétrico, o raio nas tardes de chuva, a terra, os torrões, as paredes terríveis, terrivelmente frias. Mentira. Ameaçando com a garrafa verde de água sanitária incendiada na ponta da vara, ele perseguia formigas vermelhas, formigas-de-ferrão, formigas cabeçudas, pingando lava plástica incandescente sobre suas vidinhas indefesas. De algumas bastava se aproximar. Ninguém jamais não via nunca nada naquele mundo de criança sozinha em fundo de quintal. Mas volta e meia passavam libélulas, anunciando do alto a dor de viver, pesadas com o fardo da linha colorida atada a seus troncos pelo irmão mais velho. Eram livres mas não podiam voar muito alto. Domingo. Linha amarela. Segunda. Linha vermelha. Terça. Amanheci enlutado. Um luto branco e duro dos pulsos aos tornozelos. Na boca um ranço de sangue e os chumaços de algodão saindo cada vez mais sujos, antes do vômito cinzento que continha nacos de uma gordura densa, de origem desconhecida. Sem descanso a mulher recolhia tudo na sua cestinha; depois do almoço eu espalhava pelo chão aquilo que não podia reter nos ímpetos de náusea. Tudo o que fora levado a comer retornava agora e às vezes a mulher se abaixava para recolher aqueles restos espalhados pelo assoalho.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Nos nós (parte 2)

Foram as últimas anotações que madruguei. Depois, mais longe do silêncio duramente urdido, enfiei a cabeça pela janela, para fora do quarto obscuro, repleto dos periódicos que durante tanto tempo dividiram comigo o ar rarefeito daquela água-furtada, e vislumbrei ao longe, num ror de gente, uma cara esquisita, um tanto familiar. Tendo esgarçado em segundos sessenta peles do meu corpo auto-regenerante, saí para a rua de camisa branca, abrindo a multidão a cotovelos, flashes do passado anunciando as cenas seguintes. O coração no bolso, junto a caneta e canivete. Na outra calçada acheguei-me ao velho reconhecido, e ele vinha trazendo as muletas de muito ter agradado com a conhecida pureza clara – transparente – das suas palavras. Não era alguém com quem na tosca língua dos reclusos pudesse falar, não me ouviria. Aproximei-me e olhei-o, agora sem espanto. Era o mesmo mutante de outrora, a calva ampliando a fronte em todos os sentidos. Minha face refeita no entanto o apavorava. Abriu a boca, bom dia, buscava um tom autoconfiante, como vai, gaguejava, há quanto tempo. A cobra da doxa pulou certeira no meu pescoço, espremendo as purezas que eu tentava respirar naquela manhã. Fechei os olhos nauseado e suas palavras flutuavam como bolhas de sabão cingidas de repente num terço volátil pela liquidez da ladainha há muito conhecida e repetida, brotando-lhe da boca em programados borbotões. Vinha não se sabe de onde e ao encerrar a primeira fala já havia pressionado, automático, o sinal do semáforo, enquanto eu, no precipício enfim, pressentindo o bote da despedida que me sufocaria, colei a boca na sua, evitando que iniciasse a segunda parte da velha litania. Era assim conseguir de volta um pouco do ar sugado dos meus pulmões exauridos pelo tempo de convívio, no quarto, com a palavra escrita nos jornais.


Enquanto lépido sentia na minha o lábio seco da sua carne, pôs-me a mão sobre o peito, paf, e empurrou-me com força do meio-fio em direção à rua, como se me defendesse de catástrofe premente, asfaltando-me, pof, pof. Perante a queda brusca e a multidão que seguia retilínea, os ônibus, perplexos, se amontoavam uns sobre os outros, biii, na presença súbita daquele novo corpo estranho, o meu corpo. Os sons condensados das buzinas pressionavam meus ouvidos como socos. Passantes sufocaram um riso nervoso. Um rapaz saído de uma barraca amarela tocou meu tênis com a ponta do pé. Todos aguardavam um assentimento para agir, mas ninguém dizia que direção o coletivo tomaria. Foi o que vi, ouvi estatelado no chão de março, enquanto puxava minha perna de sob as rodas do automóvel pequeno cujo passeio findara ali. Por alguns instantes, resquícios de filmes americanos bruxulearam à minha frente. A posição em que me encontrava era muito trágica, do meu ponto-de-vista, e o velho desconhecido se sumiu na multidão, com as sobras do meu hálito emborcadas no seu.

Sobrou-me tempo para despensar que houvesse asco naquele seu gesto desesperado; quem sabe nem fossem muletas aquelas pernas duras, empanadas num tecido liso que não amarrotava, e a mão que empurrou o meu peito fosse antes o tentáculo de um arrebatamento que o impelia contra mim e a meu favor, antes que o ouroboros que nos elidia os pomos-de-adão saísse a se arrastar pela cidade, traçando um risco tortuoso frente à multidão muda.

Era possível que estivesse vindo ele também de incinerar os seus recortes de periódicos, e tivesse confundido, à primeira vista, as minhas calças com muletas e, quando fechei os olhos, achou talvez que eu estivesse escondendo as bolhas engroladas que me habitavam a garganta, e a serpente que nos enredava já enroscava a cabeça e a cauda no meu e no seu colos. Quiçá o ar que quis sugar dos seus pulmões fosse também a sua única reserva, e a mão que de assalto me afastava era a que defendia sua vida, e a boca que me renegara ainda mais me recebera, antes, depois, lá longe. Poeirava no céu a sombra do contato a um tempo tardio e prematuro, a marca engrossada daquela transfusão fluindo ali, em meio ao tráfego subitamente interrompido.

Enquanto retiravam minha camisa de sob o veículo, e antes de a dor se acomodar, quis saber o que rondava minha mente, mas não fui além de compreender que seria aquela a sexagésima primeira veste e a minha pele inconsútil se rebelara nos membros, expondo o que de sangue e nervos havia lá dentro. Os restos de mim no asfalto eram quase uma terceira pessoa. Um cão aproximou-se farejando, mas os pedestres, parados em torno da minha primeira e definitiva body art, enxotaram-no com ganidos incrivelmente humanos. O sangue latejava-me nos ouvidos, aguçando-os. O tráfego seguia e finalmente a matilha faminta espantava os curiosos que vinham me lamber o sangue e a ferida e a ambulância logo, logo, se alguém de seu celular,

domingo, 25 de julho de 2010

Nos nós (parte 1)

Para meu irmão Alex: nos cântaros dos olhos o verde-paris.

I

De novo formigando atrás de alguém que ouça minha voz em preto e branco. Ainda não é o máximo a que consigo chegar. Pior é passar as noites em claro tentando deslocar com os dedos a ponta do papel cenário que encobre o pesadelo bruto. Enquanto a vizinhança sonha que sonha brisas metáforas, demolir na tela, click por click, os castelos de pedra que em silêncio, no degredo da noite, esbocei. Foram dias inteiros procurando palavras que caiam como chuva. Eis o primeiro rol de vocábulos sutis. Uma pessoa tão frágil que quebrasse os dedos ao pegar nas suaves, levíssimas coisas, e fosse deixando, mais que as impressões digitais, a pele - nos cantos das mesas, nas capas dos livros, nas cigarras dos apartamentos, nas pontas dos cigarros, nas pontes, nos carros, nas portas corrediças, nos corrimões dos corredores, nas corridas de táxi, nas colunas dos jornais, nos cais, nos cacos, nas xícaras, nos corpos, nos lacres, nos leques, nas luvas, nos vivos, nos uivos, na vulva, nos ovos, nos nós, nos sóis, nos sós, nos ós.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Insônia

Liu Bolin: Autorretrato número 5.


Depois de décadas lutando contra a insônia (expressão que por si só já demonstra um erro típico do insone crônico), descobri a sua cura e divido-a com vocês, meus queridos leitores, em primeiríssima mão: o caminho para uma noite muito bem dormida é: duas ou três noites sem dormir!

Desculpem-me pelo chiste os colegas insones - dirão que isso não é matéria com que se brinque, mas foi a solução a que cheguei: uma readministração da rotina sonífera, que inclui o largo aproveitamento psíquico das noites de sono - as que percebi que só chegam mesmo, para o insone, após os famigerados períodos de insônia.

Para estes, depois de verdadeiramente constatada a certeza de que naquela noite não se conciliará o sono, o único conselho possível - e já amplamente divulgado e posto em prática - é: a música, o cinema, a leitura, a culinária, a jardinagem, o sexo, a faxina no apartamento, o alimento do blog...

Porém, sempre que ouso me confessar insone, sinto-me um pouco farsante, o que se deve, talvez, ao fato de ser um assunto que toca, obviamente, em terrenos impalpáveis ou de fronteiras pouco prováveis, como o são o sono ou a inconsciência. Assim, depois de uma noite em claro ou simplesmente mal dormida, nunca tenho a plena certeza de que assim mesmo o foi... o quanto mais? o quanto menos? Essa mesma inconsistência percebo nos relatos de quase todos os insones com quem converso a respeito. Parece a mim que todos eles reforçam um pouco os sintomas, ampliam as horas de vigília etc.

Mas pode ser que seja justo o contrário: cansados, enganamo-nos acreditando que dormimos algumas horas, e no entanto trata-se precisamente de segundos... não sei.

Todavia, apesar dessas tergiversações, há receitas reais e simplíssimas que sempre surtiram em mim algum efeito. São quase todas de chás, portanto muito naturais e saudáveis, encontráveis no supermercado da esquina.

O chá de camomila, por exemplo, calmante potente, se tomado a partir do meio-dia garante uma noite de sono muito melhorada. Refiro-me ao que se compra em caixinhas, embalado em pacotes unitários. Se tivermos acesso à planta, então, é melhor que o tomemos somente algumas horas antes deitarmos, e em quantidades menores, com o risco de no dia seguinte perdermos a hora - sem qualquer exagero. Tanto faz se o preparamos com a camomila branca ou a italiana. E enquanto dormimos, um pouco amargados, é verdade, ainda "desopilamos o fígado", amanhecendo mesmo com fome. É excelente também para cólicas menstruais.

O delicioso chá de cidreira pode ser adoçado a gosto e nos induz, ao longo do tempo de uso, a um sono infantil, de sonhos coloridos... Em pequenas doses suaves pode ser oferecido também às crianças, que em geral não precisam dele.

O suco de maracujá, bem forte e com as sementes bastante trituradas, faz alguns delicados bocejarem somente com o seu aroma. Não vai aqui nenhuma anedota; trata-se de uma associação natural que comprova sua eficácia. O efeito às vezes é imediato, mas fica na dependência de um ambiente propício. O retorno a um trabalho frenético pode diluir em segundos a sua aura calmante - que no entanto retornará, naquele mesmo dia, em momento e lugar propícios.

A alface pode ser comida às baciadas, mas o bom mesmo é reservar o caule para bater, à noite, no liquidificador, apenas com água fria ou gelada. Em geral não é bom adoçar os chás amargos ou os líquidos de sabor não muito palatável, como é o caso deste, porque se o fizermos eles se tornam enjoativos, intragáveis. A alface, em doses concentradas, concede um sono pesado, do qual ainda restarão indícios no dia seguinte.

À exceção da camomila in natura, que pode nos deixar um pouco lerdos, e ao contrário dos venenos todos de laboratório, nenhum destes nos tira o apetite sexual, nos impede de guiar um carro etc.

domingo, 13 de junho de 2010

Os olhos de Vincent


Vincent Van Gogh: Autorretrato com a orelha enfaixada.


Flora não gostou de van gogh: "Esse não, mamãe; esse não!" Ou então não gostou do livro das reproduções, a sua dura capa gigante... Ou talvez o tenha preterido apenas em contraste com o anterior, um bosch cheio de bichos novos e outros conhecidos, ou mesmo em comparação silente com a revista da flora silvestre brasileira, tão sem graça para mim e à qual retornou assim que fechei o grande livro.

À qual, aliás, retorna sempre, fascinada, a cada vez, com a descoberta de um novo detalhe: "Que é isso, mamãe?". (Um dia, na falta de livros de histórias por perto, iniciei, a pedidos do francisco - "Conta uma história, mamãe!" -, um era uma vez a partir das páginas da revista amada, com seus pistilos, vanilas e rubiáceas, mas nenhum dos dois aceitou que fizesse a minha viagem imaginativa apontando o dedo para uma vitória-régia dissecada e com legenda: não confundem ciência com contos de fadas).

E ela rejeitou o van gogh. Mas o seu comentário não veio de imediato, como pode parecer pelo dito acima. Antes ela o folheou muito curiosa, viu os girassóis, os comedores de batatas, os campos de trigo, noites estreladas, a orelha enfaixada de vincent, o semeador... Ela olhou, ela viu, ela quis mesmo ver, mas algo nesse não lhe agradou.

Certa hora vi seus grandes olhos claros sobre os olhos decadentes de vincent. Não resta dúvida de que ela o viu, mas... o que foi, enfim, que ela viu? Não importa? Importa, mas não consigo vislumbrá-lo - então tateio.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Me conserta!



A estrutura frasal vai sendo aprimorada, mas ainda está longe (quiçá) de chegar perto da norma! Assim, o "Me ajuda!" inicial se ampliou para o "Me conserta!" e, depois de algumas risadas dos adultos, foi enfim acrescentado um providencial "pra mim". Agora ouço coisas assim: "Me abre pra mim, mamãe!"

Com a ampliação dos verbos, flora começa a confundir aqueles que possuem sílabas iguais; troca "segura" por "mistura" e "conserta" por "consegue". Demorei um pouco a perceber isso, quando chegou a mim com o guardassol: "Me mistura pra mim, mamãe!" E depois, com a boneca sem perna: "Mamãe, me consegue pra mim!". E como usa bem o imperativo, rs!

Enquanto isso, francisco se empenha admiravelmente em melhorar a pronúncia de alguns termos. Vez ou outra se posta bem à minha frente, fixa os olhos nos meus lábios e lança a palavra sobre a qual paira alguma dúvida fonética, para que eu o auxilie, pronunciando-a corretamente, o que já se tornou uma deliciosa rotina lúdico-pedagógica. Foi assim, da primeira vez, com o "fapo", ao qual transformamos em "sapo" em apenas duas ou três repetições...

Esta semana, do fundo de sua alminha teatral, que não se contenta em responder à pergunta sobre que barulho faz a onda do mar quando bate na pedra com apenas uma onomatopéia, repetindo-a incessantemente (como o próprio mar) e jogando o corpo junto com o "tchá", "tchá", "tchá", sempre para um mesmo lado e com os olhos abertos como os de um peixe à deriva, saiu-me de repente com uma frase longuíssima, surpreendendo com o uso tão precoce do pronome relativo: "Na casa do papai tem um bicho esquisito que abre as asas e voa lá para fora."

Outro dia ainda me encarou muito sério, quase triste, e soltou, comoventemente, entre a exclamação e a pergunta: "Mamãe, me ama!?" Só depois lembrei que provavelmente estava se referindo a quando me debruço sobre eles fazendo-lhes cócegas, brincadeira que quase sempre termina em declarações de amor de nós todos.

Interpretar o que pode vir a ser cada termo, cada uso, cada contexto ou neologismo que trazem é das coisas mais deliciosas que esta fase reserva. Assim a flora, encontrando pelo chão uma fotografia da via láctea: "Olha!... O tempo!" E depois, à noite, concentrada num belo alvorecer waltdisneyano no dvd: "Amanhã!"

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Carcaças

Uma pessoa morta é um objeto muito especial. (Von Hagens)



Por que será que têm me perseguido as carcaças? Geralmente os leitores, ao se depararem com essa palavra, se lembram logo de baudelaire. É porque ninguém encontra carcaças reais por aí assim, à torta e à direita. O mais longe que a maioria chega é mesmo ao poema, na sua tradução para o português. Mas eu, sim. Eu encontro carcaças. Melhor dizendo: as carcaças me perseguem.


Como assim? Uma fruta que esqueci sobre a pia, e que as formigas devoraram por dentro, deixando intacta a casca; o gato morto no asfalto, inchando com as chuvas de maio... Deve ser que ando demais para ir de casa ao trabalho, olhando os cantos da rodovia, ao atravessar os municípios da grande vitória (esse hábito de nomear os próprios com iniciais minúsculas ainda me causa problemas, especialmente quando não desejo ser irônica)...


E hoje, conversando com o dinho no café da padaria, notei que algumas pessoas têm o dom de - mui discretamente - trazer à tona as nossas próprias carcaças. Ou seriam couraças? Não sei se reich ou freud se viraram no túmulo; na verdade não gosto dessa expressão, que se baseia em uma série de impossibilidades: toda vez que se acha que alguém vulgarizou um ponto das teorias freudianas, por exemplo, logo um sujeito solta: "Freud deve ter se revirado no túmulo". Que túmulo, afinal? E que freud, enfim? Mas, num esforço de consideração de toda a abstração que traz esse chistezinho sem graça, suspeito em geral que, ao contrário do que se pensa, freud adoraria ouvir o que se diz sobre o que disse um dia...


Bom, estava no café com o dinho, e talvez retorne até lá, impressionada com a capacidade que tem a sua presença de bom ouvinte, todo olhos, acostumado a pensar a pausa, o silêncio entre as frases de um diálogo (ou monólogo)... a sua capacidade enfim de desenterrar as nossas carcaças. Uma presença que por vezes se disfarça entre cortinas...


E não é que ontem a frase nefasta nos apareceu no texto de uma entrevista que líamos em aula? Estava lá, com todas as letras: "Freud deve ter se revirado no túmulo". Era sobre o fim do tabu do incesto, projetando um momento em que a família nuclear tivesse já se transformado, após a disseminação da reprodução humana por meio da clonagem...


O entrevistado lembrava freud para afirmar que algo como o complexo de édipo teria de ser revisto, numa situação em que um filho pudesse ter dois pais e duas mães (um biológico e outro doador), e quando pai e filho fossem, na verdade, irmãos gêmeos, o que aconteceria também com mãe e filha, sendo que irmão e irmã seriam tão estranhos, sanguineamente, como pai e mãe, podendo inclusive virem a se apaixonar...


Ali pausamos, a pedidos, para que eu explicasse o que vinha a ser o complexo de édipo, contando, na introdução, com o resumo da peça feito pelo carlos augusto, sempre a postos com sua memória multimídia, e, quando ia terminando minha fala, que dizia do desejo filial, pincel na mão riscando algo no quadro, principiei a ouvir a negativa que se avolumava a partir dos cantos da sala, feito um coaxar, na turma eminentemente masculina: "Não! Não! Não!". E um dos rapazes ainda acrescentou: "Nem morto!"; e um outro: "Nem que me pagassem!", o que quase nos mata a todos de rir.


Freud também gargalhava, em decúbito ventral.

domingo, 23 de maio de 2010

Fim de jogo

Acontece que alguém tem que chutar a bola, é certo, na hora terrível da cobrança de pênalti. Sofre o goleiro, sofre o jogador, sofre talvez a bola, no seu couro calejado, que por vezes uma partida basta para desbastar-lhe as arestas e tirar-lhe o cheiro de matéria nova. Tenho receio de usar metáforas de futebol, mas até aqui penso que não fui mal. O que importa é o chute - a coragem (obrigatória) e a força dele. Mas a bola pode ir para o mesmo lado ao qual o goleiro se lança para abraçá-la - e tudo em questão de segundos. Menos ainda, talvez. E ninguém me exija verossimilhança, que só pisei num estádio uma vez - e foi por engano. A bola pode ainda se desviar. Para que isso aconteça basta que, ao resvalar na chuteira, descubra um milímetro até então oculto de lama no ponteiro também já gasto, e quase na hora de ser dispensado. Se o gramado também não ajuda... E o gramado, inclusive, sofre, se não for de plástico (artificial não seria o termo mais adequado). Aí subentende-se que falo aqui de uma pelada de várzea. Gosto bastante dessa idéia, porque em volta da quadra posso vislumbrar um bairro suburbano, e então o nosso jogador emagrece um pouco, não tem carro nem glamour. Nem moças esperando na fila para serem suas próximas namoradas. Também não precisa ser obrigatoriamente assim, claro... Voltando ao campo, lá nos cantos do gramado, já que nossa grama é viva (natural não seria o termo mais adequado), existem centímetros não pisados, e ali o mato mais alto (que não se trata nem bem - ou não só - de grama) ainda guarda um pouco de rocio (que o nosso rocio não é de rosas) e a nossa partida é logo pela manhã. Domingo. Tédio de beber no bar da esquina com os camaradas de sempre, falta de grana... E aquelas gotículas de orvalho, que irão secando lentamente com o passar do dia, permanecem lá; aguardam uma carícia do gandula, porque esse anda descalço. Em meio a todos os esquálidos jogadores, ele é o mais leviano (no sentido marioandradino do termo) e corre lépido todo o tempo que durar a partida. Sua mulher, grávida, acompanha-o a cada domingo ao local do jogo, e sempre com um misto de vergonha hierárquica e um certo sorriso escondido lá consigo, através do qual se vinga do desempenho tão ruim que o rapaz tem na cama... Alguém passa distribuindo água. Aqui você não deve imaginar as garrafinhas azuis de água mineral. Melhor: imagine-as, sim, mas reaproveitadas do lixo limpo do boteco mais próximo e reabastecidas com água da torneira da prefeitura. Mas ela mata a sede de todos, especialmente a daquele goleiro oprimido, que o irmão caçula segue com os olhos como a um super-herói; porque não basta ser herói, tem que ser super. E a bola vem na sua direção. Para ele, aquele momento se apresenta em câmera lenta, como num filme. Ela vem vindo, a princípio lenta, lentíssima, e quando ele abre os olhos ela já entrou. E entrou por entre seus finos gambitos. Seu primeiro olhar é para o irmão caçula, sentado em lugar de visão privilegiada. Ele bem sabe que o pequeno o compara ao Spiderman desde que o viu, um dia, escalando um alto muro, na vizinhança. O irmão menor, em silêncio, sente latejarem as têmporas, na hora da cobrança. E internamente reza, como se o irmão estivesse no cadafalso... E a bola passa - por entre as pernas. A cabeça do goleiro reclina incontinenti...

sábado, 8 de maio de 2010

Dia das mães

E já que este blog está se descaracterizando a olhos vistos, dia após dia, aproveito para dizer que ontem ganhei meu primeiro presente de dia das mães. Como todos os que se acham críticos do sistema obrigatório-comemorativo-mercadológico, eu também não ligo - mas ligo - para essas coisas. Se se lembram do nosso aniversário, então não ligamos; se se esquecem, então saímos chorando pelos cantos. De todo modo, eu pensei que tivesse de esperar até que crescessem um pouco (santa ingenuidade!) para que fossem tomados pelos tentáculos da obrigatoriedade comemorativa mercadológica (é o nome de um deus ou totem) de agradar-me com presentes no dia das mães, mas chegaram os dois empertigados da escolinha, disputando um só embrulho, porque a entrega deve ter sido muito treinada, o papel celofane estava incrivelmente intacto naquelas mãozinhas inábeis e o ato tinha de ser solene. Ganhei! O primeiro! E pela primeira vez, às vistas de um embrulho de presentes, entenderam que não era para eles.

Sintaxe

Alguém que é professora oito horas por dia e mãe outras dezesseis não deveria ter o direito à insônia, penso eu. Mas, já que é pra permanecer de plantão, e como não sei falar de amor às três da madrugada, vamos registrando aqui alguma coisa, apenas para não perder o hábito.

No começo da verbalização de frases mais completas, os gêmeos descobriram o verbo ajudar. E, como perceberam que funcionava muito bem (ninguém vai negar ajuda a um bebezinho de braços estendidos), usavam-no para quase tudo. Era Me ajuda! pra cá, Me ajuda! pra lá. Me ajuda!... desce da cadeira. Me ajuda!... sobe na cadeira. Me ajuda!... abre a mamadeira. Me ajuda!... apanha um biscoito.

Agora a gama de verbos se ampliou, mas a estrutura - utilíssima, devem pensar eles - foi preservada, o que gera frases no mínimo curiosas, como: Me descasca! (com a fruta na mão). Me abre! (a porta do box). Me fecha! (o registro). Até aí tudo bem; com o tempo aprenderão a necessidade do objeto - pensei. 

Ultimamente contudo, desde o adentramento mais efetivo a um pequeno mundo tecnológico, tenho escutado diariamente os assustadores: Me liga! Me desliga! Me conserta!

Melhor introduzir logo uma aulinha de sintaxe, enquanto não chega de vez o homem pós-orgânico.

sábado, 1 de maio de 2010

Morrer

Bão Balalão, Senhor Capitão, tirai este peso do meu coração.
Não é de tristeza, não é de aflição, é só esperança, Senhor Capitão!
A leve esperança, a aérea esperança... Aérea, pois não!
Peso mais pesado não existe não.
Ah, livrai-me dele, Senhor Capitão!
(Manuel Bandeira).



Ninguém sabe ao certo quando é que alguém começa a morrer. O professor Arnoni dizia, do Mário de Andrade, que sua morte teve início no final de uma anedota genial do Oswald, dita certa noite, num bar, e cuja principal personagem era o próprio Mário, ali presente... O amigo sarcástico teria dito que "Mário de Andrade, de costas, era igual a Oscar Wilde", revelando de uma só vez a feiúra e a homossexualidade, além de desenterrar no nosso Mário sabe-se lá que mais, pela comparação - para os delicados recônditos de Mário, nefasta - entre os dois escritores. A partir desse momento, afirma-se, o gênio paulista definhou até a morte. Não sei. Pode ser que o próprio Oswald já estivesse morrendo, naquele momento... A gente mal nasce - diz o poeta - começa a morrer.

Eu não penso aqui nos pródromos românticos, financeiros ou de saúde - em geral ninguém os chega a conhecer, também, por completo - que acabam por precipitar-nos em acidentes fatais, por vezes ininteligíveis. Penso sim é nos pródromos subterrâneos desses pródromos: aquele pesadelo bruto que persegue por dias, tão real que só podia mesmo ter sido sonhado: por que ele não se descola de vez da nossa rotina, deixando o fluxo livre para os acontecimentos reais, se em geral nem mesmo percebemos que ele ainda está ali... E a palavra mal posta, pendendo da boca amiga feito uma fruta podre? Será ela a nossa bala perdida? E a impossibilidade de dar e receber amor? A indiferença paterna...

Tempos atrás chegou aos meus ouvidos, curiosamente por acaso e através de desconhecidos, a história de um meu parente não muito distante, filho de produtores de tangerina em Venda Nova do Imigrante, que, jovem belo, muitíssimo querido pelos amigos e feliz com a namorada, apanhou o violão, seguiu para o paiol, tocou uma última canção brasileira e desfechou um tiro na cabeça. Ponto.

Ontem, indo a pé pela Praia do Canto, notei que as chuvinhas de abril começam a apagar o rastro de sangue que durante semanas acompanhei por uma dezena de quarteirões, no primeiro dia de um vivo vermelho à Frida Kahlo, no terceiro apenas marrom e logo depois quase ocre, da cor do esquecimento.

Quem terá vertido tanta matéria pulsante nas pedras indiferentes daquela calçada centenária? Não importa, talvez. Mas houve momentos em que claramente se recostou a uma árvore, porque o fluxo, saísse de que parte saísse, deve ter lhe enchido as mãos, escasseando um pouco logo depois, quando o passo começa então a ir mais trôpego, com paradas inesperadas, sempre próximo das esquinas - percebe-se por cada novo grande borrão, lançado ainda quente ao vento vindo da orla próxima e agora coagulado em grande mancha na pedra fria.

Penso que os refregos tenham coincidido com o olhar já quase sem esperança na direção de um carro que se aproximava, pensando que pudesse ser um ônibus - ou mesmo uma ambulância. Por outro lado, pode ser que  fizessem mesmo parte ativa de uma fuga, o sangrante em pleno jogo, de dia ou de noite, contra a polícia, os amigos, os inimigos, o amante.

Quem sabe uma mulher tenha simplesmente menstruado em meio ao caminho para o trabalho! É difícil imaginar contudo que andasse por tanto tempo sem buscar abrigo e auxílio... A não ser que fosse uma daquelas babás noturnas que descem dos prédios muito cedo, de madrugadinha, com suas fundas olheiras, vindas de Cariacica ou Serra sede, e que se revezam com uma outra que acaba de chegar de lá também, andando rápido, ombros tesos, com medo de assaltos...

Mas não. Havia nas bordas da pintura sanguínea de cada cerâmica daquelas como que o fantasma de um sacolejar angustiado - e seguramente solitário - de mãos que tentam segurar a alma vermelha e quente entre os dedos, empurrando-a de volta para o peito, ou a cabeça, ou a boca, ou as pernas, ou o sexo, ou os intestinos...

terça-feira, 20 de abril de 2010

Vovó em São Marcos

Ipê no Lago Norte - Brasília. Foto: Andréia Delmaschio.

Nós somos os mortos. (George Orwell)

Deitada no caixão, mãos cruzadas no colo, a face lívida, parecia que as marcas dos anos tinham se apagado. Era como se o tempo, estancado para ela, tivesse levado consigo todas as sobras de seu longo trabalho. Ou como se as rugas que antes lhe sulcavam o rosto tivessem sido impressas ali previamente e correspondessem, ao contrário do que se pensa, aos eventos que ela ainda viveria, e não aos que já tinha vivido.

Fiquei pensando na criança que ela foi, na serra mais alta e fria do Espírito Santo, nascida durante a Primeira Guerra, na época em que açúcar branco só havia literalmente para remédio e os alimentos todos eram racionados, sob o medo do espectro das batalhas na Europa. Os pais deviam ser pessoas especiais, para que ela tivesse desenvolvido tão bom humor e aquela inteligência arguta em meios grandemente desfavoráveis: a moradia precária, a família inumerável, pré-métodos contraceptivos.

Foi ela quem ensinou um dia a minha mãe que só se morre quando se quer. Mamãe menina, apavorada diante do pato, rígido no fundo do poço: Por que ele morreu, por que ele tinha que morrer? E ela, do alto, o nariz comprido, a boca um risco na face: Porque ele quis, ora, ele não sabia que não podia chegar tão perto do poço? Mamãe ainda hoje afirma que só se morre quando se quer.

Entrei no quarto para escrever a nota biográfica que um neto leria na missa em sua homenagem e a roupa que ela usava no dia anterior ainda estava dependurada atrás da porta. Era certo que guardasse um calorzinho seu e aquele cheiro de rosas que ela tinha, um toque sempre macio para o olfato contrastando com os ossos pontudos que espetavam o corpo enquanto nos abraçava. Eu gostava de me jogar no colo dela, havia algo de ancestral naquele encontro. Não me importava saber que ela enlaçava em mim um pouco da filha caçula, morta anos antes.

Por entre as frestas das ripas, na parede do quarto escuro (devia ser bom dormir ali), um discreto filete de luz ia se deslocando para não deixar dúvidas sobre a passagem do tempo e, curiosamente, uma das crianças marcava sua trajetória com um lápis.

Lá fora se iniciava uma ladainha tosca, as caras obrigatórias da vizinhança igrejeira: lavaram a morta, vestiram-na, cobriram com flores. Agora cozinhavam: muitas panelas de frango e macarrão. Algumas pessoas eu pensei que não existissem fora das novelas de Jorge Amado: a moça morena, praticamente desconhecida, assumiu todas as funções: chorava e coava café. No minuto seguinte já lavava copos e depois servia pães com salame, de um modo hábil e maquinal que contrastava com os olhos úmidos e a face inchada.

De vários pontos do quintal brota a onipresente Bíblia. Os dedos grossos de lavradoras escorregam pelo índice temático, escolhendo trechos difíceis. Na leitura do salmo, uma das moças, ombros largos de carregar pesadas sacas de café, tropeça em pórticos, cálix, vindouras. Gagueja, mas não importa. Orações como o Credo, com seus apostos, têm as palavras emendadas numa litania entoada geração após geração e assumem um tom de música funesta. Nascem, crescem e encaminham uns aos outros ao jazigo dizendo palavras cujo significado não conhecem. Os pais levam as crianças ao velório, para garantir a renovação do ciclo. Os recém-chegados, entre eles adolescentes muito tímidos, procuram os familiares da morta para nos dizer que é a vida, que Deus sabe o que faz, que temos que ser fortes, que ela agora descansa em paz.

Uma fresta de luz - que sol escaldante o daquele dia! - oscilava sobre as mãos de vovó e a mim pareceu que ela movera o terço que lhe arrumaram entre os dedos. Talvez tenha mexido realmente.

Na missa na pequena capela, dita de corpo presente (quando morremos, o corpo de repente assume grande importância), tendo se atrasado o padre, um ministro anuncia no púlpito as últimas estatísticas: Poucos de nós vão direto para o inferno, poucos chegam ao paraíso, a grande maioria segue para o purgatório, onde terá a oportunidade de expiar as suas culpas. A igreja inteira escuta calada.

À minha frente, um São Marcos de olhar sonso ouve tudo condoído, enrolado para sempre em sua manta de gesso. Furtado no seu leão e sem nada poder fazer contra a morte decretada da palavra viva que um dia gritou, o evangelista de repente solta o ramo de flores secas que trazia enfiado num dos braços. Alguém mais parece ter visto.

De um lado os homens, caras duras, bigodes cultivados; do outro as mulheres, narizes aduncos, a pele branca de italianas manchada do sol da colheita.

Vovó, quieta, é a pessoa mais viva nos arredores.

sábado, 10 de abril de 2010

O túnel

Frida Kahlo. Eu sou o que a água me deu.


O túnel ligava Serra e Cariacica. As pessoas eram pagas (coisa de dois, três reais) para entrarem por um lado e recolherem pedaços que entregavam no outro, ao saírem. Eu entrei pensando: “Nessa vida temos de viver todas as experiências possíveis”. Então fui, por isso e não pelo dinheiro - o que me diferençava dos outros catadores, que tentavam ser rápidos, levavam muitas sacolas e já saíam com as partes de corpos humanos separadas: numa sacola só pulmões, na outra pedaços de pernas e assim por diante. Havia muitas crianças. Antes de entrar imaginei que me depararia com pessoas apáticas, anestesiadas pela desumanidade daquele trabalho, mas assim que pisei lá dentro notei que não havia indiferença. Estavam todos deprimidos, desesperados, a situação era duplamente, plenamente escatológica, fim do mundo. E o cheiro de carne humana apodrecendo, um rio de sangue correndo sob os pés... A atmosfera era irrespirável e eu estava prestes a desmaiar, no entanto não desmaiava. Quando pensava que morreria, achava uns orifícios na parede por onde respirava – sempre apenas o suficiente para não morrer. Era muita gente catando pedaços, quase não conseguíamos nos mexer lá dentro e, desde que se houvesse entrado no turbilhão, não havia mais como voltar, a não ser em uma das levas que caoticamente se empurravam em direção à saída. Ainda assim apanhei um bracinho de criança e coloquei na sacola de pano que trazia a tiracolo. Lá fora me acusaram de ter feito o trabalho errado: “A senhora segue para outra fila - trouxe parte de uma pessoa viva”.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Palimpsesto



Por entre portas decepadas
e camas de pontacabeça
a tristeza é indisfarçável.

Numa casa em reforma
as cicatrizes todas vêm à tona:
noites mal dormidas,
noites bem dormidas...

Solidão aos pares
e, logo, logo, a três,
a quatro -
tudo se acresce
de um pó finíssimo
que penetra a alma,
insuspeitada,
aparentemente inexistente
no turbilhão
que a rotina desvairada
antes compunha.

Em meio a caixas de pisos e revestimentos
as dores não se organizam.

Sob todas as camadas de tinta
persistem nomes rabiscados, nódulos antigos.

A água penetra pelas frestas,
expondo reentrâncias agudas,
e as lembranças assombram
com sua autonomia,
feito um cadáver - já esquecido - que

de repente

assoma nas águas tranquilas.

Se uma das paredes desabasse agora,
não seria maior o desastre...

Uma casa não é o seu contorno,
muito menos o seu conteúdo.

Uma casa é o vácuo
que suga para sempre
os seus habitantes.