sábado, 6 de fevereiro de 2010

Domingo

- Francisco, hoje não tem escolinha. Você quer ir passear onde?
- Em casa.
- E você, Flora, gosta de morar aqui, na nossa casa?
- Não!
- Você quer morar onde, então?
- No pula-pula.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Joga a chave

Salvador Dali: A persistência da memória.

Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia.
(Carlos Drummond de Andrade)
 
 
Meia noite, acordei sorrindo: terei sonhado com o chico buarque!?

Tempos atrás, quando, talvez por impulsão lírica da tese (salve mário!), andei inventando que tinha me encontrado com ele, os amigos todos acreditaram. A maioria nem pôs em xeque a inverossimilhança do narrado. Alguns praticamente o conheceram por meu intermédio, rs! E tudo parecia muito natural, até mesmo o fato de, de repente, eu sair espalhando fofoca de mim mesma, e na qual o personagem coadjuvante era, ahahah, chico buarque de holanda!

Porém, agora que se trata de fato verdadeiramente acontecido, é capaz de ninguém acreditar, nem questionar. É possível que não sobrevenha um comentário sequer a esta postagem (ah, isto é sempre muito possível!), ao contrário do que se deu quando o encontro foi meramente (?) ficcional: note-se que a interrogação se segue ao meramente, não ao ficcional. É que não quero mais dúvidas pairando sobre aquela parte deliciosa da minha vida - inventada, repito.

Não houve processo - o que seria a glória! - e a melhor crítica que recebi, quando publiquei a novela, foi de provinciana, tendo partido de mim mesma. De todo modo, dada a proporção que tomaram os fatos (guardo ainda dezenas de mensagens que recebi, entre elas a de uma senhora que, quando lera a descrição que fiz das mãos do ídolo sobre o volante do carro, não tivera mais dúvidas e fechara imediatamente o livro: eu estivera com ele), concluo hoje que nunca um selinho (apenas imaginado) me saiu tão caro.

Por uma comparação muito, excessivamente lógica, estando tudo esclarecido, e tratando-se ora da mais pura verdade, creio, portanto, que posso contá-la aqui, sem problemas, que será entendida como mais uma invencionice.

Mas vamos aos fatos, sem delongas: ele já estava se apresentando, quando cheguei. O bar era decadente. Daqueles que todos os frequentadores sabem sê-lo e que procuram justamente por sabê-lo; a fama do lugar obviamente torna muito fake a própria decadência, e que significa que os fluidos e efeitos da decadência já se perderam lá atrás, com o último revestimento das paredes, escolhido entre tons escuros, por denotarem decadência.

Não falarei sobre a aparência do chico; não quero repetir o erro de antes, nem confundir a cabeça de ninguém. Somente direi que cantava com uma camisa rosa de viscose que me parece já o ter presenciado vestir para uma entrevista.

O que me incomodava na cena (ele cantava, ao microfone, acompanhado de um violonista, apenas) era o fato de ter combinado a camisa rosa com uma calça escura de cobrador de ônibus que eu pensei que nem existisse mais - nem mesmo nos armários dos cobradores de ônibus.

Antes de descer eu tinha deixado sobre a cama a calça jeans nova que compramos na loja do Galeão, e que tinha vindo na minha mala de mão. Realmente não entendi aquele tergal marrom. Se tivesse visto antes, teria dado um toque, mas evitei me aproximar até que o show tivesse início, para evitar a falação, e principalmente as apresentações ensossas, de cumprimentos retardados, que tanto ele quanto eu detestamos, e que jamais resultam em algo proveitoso: ninguém apresenta uma pessoa a outra acreditando que um dia venham a ser grandes amigos, mas apenas para cumprir o protocolo ou para se exibir etc.

E a estranha combinação de cores e texturas já tomava, para mim, proporções monstruosas, apesar da escuridão que pesava sobre as mesas.

Agora só ele era iluminado, de cima a baixo, por um spot pênsil, e notei que me procurava com os olhos - eu havia saído no final da tarde para tomar um ar e creio que deve ter estranhado a demora.

No intervalo do show fui surpreendida, porque não havíamos combinado que viria até a minha - a nossa -mesa. Mas gostei. E como gostei! O problema era aquela calça cor de cavalo.

Lógico que eu não iria comentar nada no delicado momento do intervalo. Tomou um longo gole do meu chope, descuidando assim da própria voz, que nessas ocasiões pede apenas e tão-somente uma bebida quente. Vi que suas mãos tremiam.

Foi ao toalete e retornou, sob aplausos, à pequena plataforma que lhe servia de palco. Notei então que havia mudado, em cima da hora e contra todo o combinado, o repertório, percebendo assim como fui tola: era quase óbvio que vestisse tergal marrom. Mas como o teria improvisado? Ou será que o improviso era apenas de superfície, assim como o de cada peça que se improvisa?

Reiniciou, sempre me olhando e rindo. Gelei. Cantava agora Joga a chave.