sábado, 31 de julho de 2010

Nos nós (parte 11)

Depois de alguns dias ali, perdida já a noção das datas, tive as mandíbulas imobilizadas pela descoberta de um deslocamento. Uma terceira mulher me trouxe a caderneta onde poderia anotar os meus pedidos. Lembrei-me das intermináveis listas de compras que a mãe adiava, pendentes da porta da geladeira. Dos telefones que o pai riscava nas paredes, para um caso de urgência. E dos poemas que publicavam nas contracapas das revistas.

Iniciaria eu mesmo a minha lista, uma pessoa tão frágil que quebrasse os dedos quando pegasse nas suaves, levíssimas coisas, e fosse deixando, mais que as impressões digitais, a pele - nos cantos das mesas, nas capas dos livros, nas cigarras dos apartamentos, nas pontas dos cigarros, nas pontes, nos carros, nas portas corrediças, nos corrimões dos corredores, nas corridas de táxi, nas colunas dos jornais, nos cais, nos cacos, nas xícaras, nos corpos, nos lacres, nos leques, nas luvas, nos vivos, nos uivos, na vulva, nos ovos, nos nós, nos sóis, nos sós, nos ós.

Nos nós (parte 10)

Não quis que me trouxessem os jornais, não importava que dia fosse, rejeitei a televisão a que tinha direito pelo plano de saúde. Quando cheguei, como indigente, o que restava de mim foi colocado numa maca com rodas enferrujadas e levado ao fundo de um corredor escuro. Tinha lapsos de memória, mas pude, enquanto me arrastavam, trec, trec, imaginar que fosse dia de visita da saúde pública, que os quartos estivessem lotados e que aquele hospital fosse um dos que aparecem na televisão no horário nobre, enquanto em casa fazemos o lanche.


A primeira pessoa se dirigiu a mim e era uma mulher alta e magra. Prestou-me os segundos socorros, depois entrou no toalete. Quando retornou era completamente outra: teria lavado a máscara de gesso e diluído em lavanda o odor de éter. Também encolhera muitos centímetros. Estaria deixando o plantão. Imaginei-a caminhando lá fora, em todos os sentidos, na direção que desejasse, apanhando o ônibus e passando pelas ruas cinzentas da periferia. Nesses primeiros momentos a dor era apenas insuportável, como uma mordida de cachorro, que alivia ao pressionar. Depois foi crescendo e a cada novo relance eu me esmerava em comparações para distrair os relances que me punham fora de órbita. Era como estar dependurado pelo dedo do pé, era ter os dentes arrancados sem anestesia, agulhas fincadas sob as unhas, era uma mordida de dragão hidrófobo. Os remédios deviam ser muito fortes e caros, porque só eram aplicados quando eu não mais suportava e já uivava, perdendo toda lucidez.

Nos nós (parte 9)

Gritei no meio da noite, repetindo em sonhos o acidente que me levara até ali. A dor no joelho platinado me alucinava e eu rasgava com os dentes a faixa de pano que atava o braço ao ombro e me assemelhava a um bicho-da-seda. Eu era um caso raro de bruxa de biblioteca que se transformara em casulo.

Nos nós (parte 8)

Vejo que o tempo se embaralha por entre as capas da noite. Num átimo, principio a reviver, folha por folha, o imenso arsenal de recortes, os periódicos incendiados, as atas, bulas, fotos, as dicas que me deram sobre como organizar. Engatinhei por todas as paredes procurando uma mancha, um traço, uma vírgula. Catalogava cascas de laranja. E agora, quando penso na mão esquerda dentro da armadura de gesso, me assola um desespero jamais imaginado. Maior que a ira com que rasguei os jornais, pior que o horror de estar vegetando na quitinete surreal, incrustada no centro do bairro pobre e suburbano, longe da praia, dos bares, do ror, do horror de gentes.

Nos nós (parte 7)

Pensei que talvez uma massagem me ajudasse a restabelecer as sensações, mas não teria coragem de solicitar algo tão supérfluo à mulher de avental branco, gestos rápidos e maquinais. Deveria haver, além do mais, uma fila de acidentados, alguns em pior estado que eu, aguardando também a espetada reconfortante da sua agulha.

De repente achei que, se pensava em mover-me, era talvez porque já se iniciasse algum processo a caminho da melhora. Desanimador era imaginar o quão longa e penosa seria a convalescença, à espera de que chegasse o dia em que pudesse de novo caminhar e respirar o ar pesado da avenida lá embaixo, até que uma outra morte viesse me tomar inteiro, e não por partes, como fizera essa pequena morte de agora, com odor de éter e branca como fria.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Nos nós (parte 6)

Já no meio da segunda manhã a dor voava, ave de rapina. Saía do alto-forno e caía no centro da geleira. Conhecia outra loucura, implorar por morfina de três em três horas. Não, a morte não era fina. Distinguia cada pino implantado no joelho, via o sangue coagulando em torno da placa de platina e a veia dilatada reiniciando o trabalho com o fluxo sangüíneo azulado e grosso. Nas primeiras horas depois da incisão, a perna intumescia rapidamente, e por fim os dedos, brancos, arroxearam em pontas frias e dormentes. A perna, pesada, imóvel, obrigava à paralisação de todo o corpo, cuja parte esquerda me era completamente estranha. O que fora eu não estava mais ali.

Enquanto perdurava o efeito alucinógeno da morfina, tudo era suportável: a dor, a sede interminável, o tédio, o medo da morte, da vida, da morte, era tudo tingido com os tons lilases do anestésico e nessas horas as marcas dos meus pés se espalhavam pelas paredes, formando um rastro até a janela, de onde me jogava direto sobre os automóveis que se dirigiam à beira-mar naquele dia claro. Domingo. Segunda. Terça. A mãe costurando para os ricos, bordando margaridas e beija-flores nas calças boca-de-sino, dia e noite ouvindo fofocas, tecendo redes, recebendo revistas com fotonovelas em preto e branco. Espetadas no alto da parede pelo irmão mais velho, cigarras e borboletas. Uma beleza que doía ver distribuída em filas que cresciam, os alfinetes furtados do salão de costura. No fundo do quintal, cigarras invisíveis, uma goiabeira, os siris subindo mangue acima. Sururus cozinhavam nas latas, os urubus rondavam a casa enquanto o pai não chegasse com a novidade de todos os dias, uma maçã insossa embrulhada em papel de seda. Na cozinha as panelas abandonadas, o chão sempre sujo dos pés enlameados. Na escola o medo do mundo, da morte, dos nomes dos planetas todos. Alguns meses têm trinta e um dias, os rios cortam a terra, no fim das frases um ponto, deus se escreve com maiúscula, lavar as mãos no recreio, as meninas brincam de roda, quem não fizer o dever não volta para casa. Os mais pobres olhavam com inveja para os menos pobres. Odiavam-se todos, desamor de toda espécie. Fila para entrar, fila para sair, fila para o carimbo no caderno, fila para devolver a tabuada, fila para cantar o hino, fila para receber a merenda. Os meninos puxavam cabelos, pisavam nos calcanhares, cuspiam na cara, jogavam carrapichos para grudarem nas meias, empurravam, derrubavam, escoiceavam. Os louros sofriam mais. No fundo da escola, por detrás da caixa dágua, faziam um menorzinho comer biscoito com merda, enquanto sua irmã chorava. A professora não saía para o recreio. No gabinete, recolhia listas de coletivos, fazia ajoelharem e copiarem cem vezes o verbo que erraram. Domingo. Passava. Segunda. Passava. Terça.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Nos nós (parte 5)

Porém sempre que alguém escreve é contra o pai e de certo modo contra si, e contra a infância, enorme, e a memória dela, diminuta. As palavras que juntamos restam longe da inquietação mais funda. Nos vingamos então numa terceira pessoa, reflexiva, correndo sempre para o lado oposto a nós mesmos, como corriam os antigos carrinhos das máquinas de escrever: se, si, só muito mais tarde, quando desistimos de nos perseguir, é que cavoucamos, quase sem perceber, as palavras enterradas na terra preta do fundo do quintal, revelando as manchas de sangue deixadas debaixo da árvore mais alta.

O pai trabalhava à noite. Então fazíamos sempre, durante o dia, um silêncio mortal, para não lhe cortar o sono. A que horas vivia, não sabíamos. Acostumamo-nos a ouvir psiu. Tantos psiu que nem sabíamos mais de onde vinham. Fazíamos psiu um ao outro, a mãe aos filhos, os filhos à mãe, a mãe às visitas... A irmã mais velha até hoje intercala, sem perceber, o diálogo com uns psiu. E ninguém bate portas, ninguém anda descalço, ninguém arrasta chinelos, nem xinga ou abre as torneiras, psiu, ninguém se serve sem pensar nos demais, ninguém ousa apanhar o último pedaço.

Anotei isso no verso do receituário que o ortopedista deixara na mesa de cabeceira.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Nos nós (parte 4)

Sabia enfim a dor. Relembrava o irmão mais velho e o antigo conselho urrado pelo pai quando quebrávamos os braços caindo do abacateiro, ou tínhamos de arrancar dentes ainda não de todo moles, ou quando nos picavam marimbondos, ou quando nos queimavam os vizinhos nas brincadeiras com álcool, ou quando vinha o farmacêutico aplicar injeções em cujo efeito acreditávamos, acostumados que estávamos a retornar sempre à saúde, depois de um curto período de reclusão. Para o pai a única dor era física, e outras não existiam. Quando tínhamos de passar por grande sofrimento físico, ensinava: “– Sintam raiva, sintam muita raiva”. E nos dava uma toalha úmida enrolada para morder. Com o tempo a raiva foi se estendendo como antídoto a todas as más ocasiões: às provas na escola, às viagens de ônibus, às filas. Aprendemos a ligar a ira à labuta diária, ao investimento objetivo, à própria vida enfim. E justo graças a ele, que sofrera a vida inteira de dores que não eram físicas, um perseguido mental.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Nos nós (parte 3)

Domingo. Passou. Segunda. Passou. Terça. Quando eu era criança, no fundo do quintal, escavava a terra com as unhas até sangrar. Mentira. Quando eu era criança, trocava chicletes com o irmão mais velho, pelo pegar no fio despelado pendurado na parede. Mentira. Eu era ainda criança quando o irmão mais velho comprava já sua primeira motocicleta. E era eu quando, no fundo do quintal, notei que ele sacrificava pequenos animais. Mentira. O irmão, tendo me percebido criança no fundo do quintal, as unhas sangrando minhocas, nenhum chiclete no bolso e os olhos arregalados perante o grito morto dos animais sacrificados, ofereceu-me um saco de doces coloridos em troca de que segurasse com força os fios despelados que corriam frouxos pelas paredes úmidas. No fundo do quintal, eu criança não via que os doces eram comprados com o dinheiro furtado do meu cofre. O cofre vazio, o choque dos olhos mortos, os cães riscados em cruz na parede do barraco, o choque elétrico, o raio nas tardes de chuva, a terra, os torrões, as paredes terríveis, terrivelmente frias. Mentira. Ameaçando com a garrafa verde de água sanitária incendiada na ponta da vara, ele perseguia formigas vermelhas, formigas-de-ferrão, formigas cabeçudas, pingando lava plástica incandescente sobre suas vidinhas indefesas. De algumas bastava se aproximar. Ninguém jamais não via nunca nada naquele mundo de criança sozinha em fundo de quintal. Mas volta e meia passavam libélulas, anunciando do alto a dor de viver, pesadas com o fardo da linha colorida atada a seus troncos pelo irmão mais velho. Eram livres mas não podiam voar muito alto. Domingo. Linha amarela. Segunda. Linha vermelha. Terça. Amanheci enlutado. Um luto branco e duro dos pulsos aos tornozelos. Na boca um ranço de sangue e os chumaços de algodão saindo cada vez mais sujos, antes do vômito cinzento que continha nacos de uma gordura densa, de origem desconhecida. Sem descanso a mulher recolhia tudo na sua cestinha; depois do almoço eu espalhava pelo chão aquilo que não podia reter nos ímpetos de náusea. Tudo o que fora levado a comer retornava agora e às vezes a mulher se abaixava para recolher aqueles restos espalhados pelo assoalho.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Nos nós (parte 2)

Foram as últimas anotações que madruguei. Depois, mais longe do silêncio duramente urdido, enfiei a cabeça pela janela, para fora do quarto obscuro, repleto dos periódicos que durante tanto tempo dividiram comigo o ar rarefeito daquela água-furtada, e vislumbrei ao longe, num ror de gente, uma cara esquisita, um tanto familiar. Tendo esgarçado em segundos sessenta peles do meu corpo auto-regenerante, saí para a rua de camisa branca, abrindo a multidão a cotovelos, flashes do passado anunciando as cenas seguintes. O coração no bolso, junto a caneta e canivete. Na outra calçada acheguei-me ao velho reconhecido, e ele vinha trazendo as muletas de muito ter agradado com a conhecida pureza clara – transparente – das suas palavras. Não era alguém com quem na tosca língua dos reclusos pudesse falar, não me ouviria. Aproximei-me e olhei-o, agora sem espanto. Era o mesmo mutante de outrora, a calva ampliando a fronte em todos os sentidos. Minha face refeita no entanto o apavorava. Abriu a boca, bom dia, buscava um tom autoconfiante, como vai, gaguejava, há quanto tempo. A cobra da doxa pulou certeira no meu pescoço, espremendo as purezas que eu tentava respirar naquela manhã. Fechei os olhos nauseado e suas palavras flutuavam como bolhas de sabão cingidas de repente num terço volátil pela liquidez da ladainha há muito conhecida e repetida, brotando-lhe da boca em programados borbotões. Vinha não se sabe de onde e ao encerrar a primeira fala já havia pressionado, automático, o sinal do semáforo, enquanto eu, no precipício enfim, pressentindo o bote da despedida que me sufocaria, colei a boca na sua, evitando que iniciasse a segunda parte da velha litania. Era assim conseguir de volta um pouco do ar sugado dos meus pulmões exauridos pelo tempo de convívio, no quarto, com a palavra escrita nos jornais.


Enquanto lépido sentia na minha o lábio seco da sua carne, pôs-me a mão sobre o peito, paf, e empurrou-me com força do meio-fio em direção à rua, como se me defendesse de catástrofe premente, asfaltando-me, pof, pof. Perante a queda brusca e a multidão que seguia retilínea, os ônibus, perplexos, se amontoavam uns sobre os outros, biii, na presença súbita daquele novo corpo estranho, o meu corpo. Os sons condensados das buzinas pressionavam meus ouvidos como socos. Passantes sufocaram um riso nervoso. Um rapaz saído de uma barraca amarela tocou meu tênis com a ponta do pé. Todos aguardavam um assentimento para agir, mas ninguém dizia que direção o coletivo tomaria. Foi o que vi, ouvi estatelado no chão de março, enquanto puxava minha perna de sob as rodas do automóvel pequeno cujo passeio findara ali. Por alguns instantes, resquícios de filmes americanos bruxulearam à minha frente. A posição em que me encontrava era muito trágica, do meu ponto-de-vista, e o velho desconhecido se sumiu na multidão, com as sobras do meu hálito emborcadas no seu.

Sobrou-me tempo para despensar que houvesse asco naquele seu gesto desesperado; quem sabe nem fossem muletas aquelas pernas duras, empanadas num tecido liso que não amarrotava, e a mão que empurrou o meu peito fosse antes o tentáculo de um arrebatamento que o impelia contra mim e a meu favor, antes que o ouroboros que nos elidia os pomos-de-adão saísse a se arrastar pela cidade, traçando um risco tortuoso frente à multidão muda.

Era possível que estivesse vindo ele também de incinerar os seus recortes de periódicos, e tivesse confundido, à primeira vista, as minhas calças com muletas e, quando fechei os olhos, achou talvez que eu estivesse escondendo as bolhas engroladas que me habitavam a garganta, e a serpente que nos enredava já enroscava a cabeça e a cauda no meu e no seu colos. Quiçá o ar que quis sugar dos seus pulmões fosse também a sua única reserva, e a mão que de assalto me afastava era a que defendia sua vida, e a boca que me renegara ainda mais me recebera, antes, depois, lá longe. Poeirava no céu a sombra do contato a um tempo tardio e prematuro, a marca engrossada daquela transfusão fluindo ali, em meio ao tráfego subitamente interrompido.

Enquanto retiravam minha camisa de sob o veículo, e antes de a dor se acomodar, quis saber o que rondava minha mente, mas não fui além de compreender que seria aquela a sexagésima primeira veste e a minha pele inconsútil se rebelara nos membros, expondo o que de sangue e nervos havia lá dentro. Os restos de mim no asfalto eram quase uma terceira pessoa. Um cão aproximou-se farejando, mas os pedestres, parados em torno da minha primeira e definitiva body art, enxotaram-no com ganidos incrivelmente humanos. O sangue latejava-me nos ouvidos, aguçando-os. O tráfego seguia e finalmente a matilha faminta espantava os curiosos que vinham me lamber o sangue e a ferida e a ambulância logo, logo, se alguém de seu celular,

domingo, 25 de julho de 2010

Nos nós (parte 1)

Para meu irmão Alex: nos cântaros dos olhos o verde-paris.

I

De novo formigando atrás de alguém que ouça minha voz em preto e branco. Ainda não é o máximo a que consigo chegar. Pior é passar as noites em claro tentando deslocar com os dedos a ponta do papel cenário que encobre o pesadelo bruto. Enquanto a vizinhança sonha que sonha brisas metáforas, demolir na tela, click por click, os castelos de pedra que em silêncio, no degredo da noite, esbocei. Foram dias inteiros procurando palavras que caiam como chuva. Eis o primeiro rol de vocábulos sutis. Uma pessoa tão frágil que quebrasse os dedos ao pegar nas suaves, levíssimas coisas, e fosse deixando, mais que as impressões digitais, a pele - nos cantos das mesas, nas capas dos livros, nas cigarras dos apartamentos, nas pontas dos cigarros, nas pontes, nos carros, nas portas corrediças, nos corrimões dos corredores, nas corridas de táxi, nas colunas dos jornais, nos cais, nos cacos, nas xícaras, nos corpos, nos lacres, nos leques, nas luvas, nos vivos, nos uivos, na vulva, nos ovos, nos nós, nos sóis, nos sós, nos ós.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Insônia

Liu Bolin: Autorretrato número 5.


Depois de décadas lutando contra a insônia (expressão que por si só já demonstra um erro típico do insone crônico), descobri a sua cura e divido-a com vocês, meus queridos leitores, em primeiríssima mão: o caminho para uma noite muito bem dormida é: duas ou três noites sem dormir!

Desculpem-me pelo chiste os colegas insones - dirão que isso não é matéria com que se brinque, mas foi a solução a que cheguei: uma readministração da rotina sonífera, que inclui o largo aproveitamento psíquico das noites de sono - as que percebi que só chegam mesmo, para o insone, após os famigerados períodos de insônia.

Para estes, depois de verdadeiramente constatada a certeza de que naquela noite não se conciliará o sono, o único conselho possível - e já amplamente divulgado e posto em prática - é: a música, o cinema, a leitura, a culinária, a jardinagem, o sexo, a faxina no apartamento, o alimento do blog...

Porém, sempre que ouso me confessar insone, sinto-me um pouco farsante, o que se deve, talvez, ao fato de ser um assunto que toca, obviamente, em terrenos impalpáveis ou de fronteiras pouco prováveis, como o são o sono ou a inconsciência. Assim, depois de uma noite em claro ou simplesmente mal dormida, nunca tenho a plena certeza de que assim mesmo o foi... o quanto mais? o quanto menos? Essa mesma inconsistência percebo nos relatos de quase todos os insones com quem converso a respeito. Parece a mim que todos eles reforçam um pouco os sintomas, ampliam as horas de vigília etc.

Mas pode ser que seja justo o contrário: cansados, enganamo-nos acreditando que dormimos algumas horas, e no entanto trata-se precisamente de segundos... não sei.

Todavia, apesar dessas tergiversações, há receitas reais e simplíssimas que sempre surtiram em mim algum efeito. São quase todas de chás, portanto muito naturais e saudáveis, encontráveis no supermercado da esquina.

O chá de camomila, por exemplo, calmante potente, se tomado a partir do meio-dia garante uma noite de sono muito melhorada. Refiro-me ao que se compra em caixinhas, embalado em pacotes unitários. Se tivermos acesso à planta, então, é melhor que o tomemos somente algumas horas antes deitarmos, e em quantidades menores, com o risco de no dia seguinte perdermos a hora - sem qualquer exagero. Tanto faz se o preparamos com a camomila branca ou a italiana. E enquanto dormimos, um pouco amargados, é verdade, ainda "desopilamos o fígado", amanhecendo mesmo com fome. É excelente também para cólicas menstruais.

O delicioso chá de cidreira pode ser adoçado a gosto e nos induz, ao longo do tempo de uso, a um sono infantil, de sonhos coloridos... Em pequenas doses suaves pode ser oferecido também às crianças, que em geral não precisam dele.

O suco de maracujá, bem forte e com as sementes bastante trituradas, faz alguns delicados bocejarem somente com o seu aroma. Não vai aqui nenhuma anedota; trata-se de uma associação natural que comprova sua eficácia. O efeito às vezes é imediato, mas fica na dependência de um ambiente propício. O retorno a um trabalho frenético pode diluir em segundos a sua aura calmante - que no entanto retornará, naquele mesmo dia, em momento e lugar propícios.

A alface pode ser comida às baciadas, mas o bom mesmo é reservar o caule para bater, à noite, no liquidificador, apenas com água fria ou gelada. Em geral não é bom adoçar os chás amargos ou os líquidos de sabor não muito palatável, como é o caso deste, porque se o fizermos eles se tornam enjoativos, intragáveis. A alface, em doses concentradas, concede um sono pesado, do qual ainda restarão indícios no dia seguinte.

À exceção da camomila in natura, que pode nos deixar um pouco lerdos, e ao contrário dos venenos todos de laboratório, nenhum destes nos tira o apetite sexual, nos impede de guiar um carro etc.