sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Conto de Natal

Pela manhã, logo depois de me levantar, fui ao fundo do quintal para ver se havia alguma manga caída.

Ao passar pela porta, notei que algo no chão brilhava e lançava um prisma colorido entre o verde e o azul. Abaixei-me, olhei de perto e percebi que era uma tampinha de sprite. Coloquei-a no bolso da jaqueta e voltei ao quarto para apanhar os óculos, que havia esquecido.

Quando abri a gaveta da cômoda, uma barata correu em direção ao meu braço e gritei asperamente, interrompendo pela segunda vez a sua ceia de Natal.

Pensei então poder amassá-la, como na boa literatura, se fechasse rapidamente a gaveta, mas percebi logo que nem isso seria boa literatura nem teria ali o meu momento epifânico, porque ela caiu, e caiu inteira sobre meu pé esquerdo, ao qual cada vez mais se grudava, quanto maior a força que imprimia para livrar-me dela.

E estava aos coices, ligada a uma barata cuja privacidade invadira inescrupulosamente, quando notei que alguém se aproximava. Poderia ser um louva-a-deus chegado num cavalo branco para livrar a barata de mim, ou um rei mago trazendo ouro, incenso ou mirra, guiado por uma manga cadente... Mas era só meu pai, Noel, gordo, a barba por fazer, camuflado sob os ramos laminados de uma árvore, de onde retirou delicadamente uma bolinha vermelha, com a qual se aproximou da barata, que já se encaminhava para a ponta do dedo maior, aproveitando a trégua que lhe dei à chegada do velho.

Ele foi chegando lentamente, até quase encostar a bolinha no inseto. Eu a via de costas para mim e refletida convexa naquele globo lisíssimo. Como que hipnotizada, foi erguendo uma por uma as perninhas e equilibrando-se vagarosamente sobre o seu novo mundo, no qual agora reinava soberana.

Naquele instante o velho Noel pareceu-me o mesmo que tempos atrás apanhava libélulas para atar-lhes as levíssimas fitas coloridas... Olhava fixamente a barata, que o olhava, por sua vez, quando um vento mais forte soprou da janela e derrubou a nossa nave-árvore de Natal.

Com o susto, a barata lançou-se ao cortinado, abandonando o universo reflexivo que havia sido criado especialmente para ela e Noel espancou-a até a morte com meu próprio chinelo.

O som das lâmpadas coloridas se quebrando contra o assoalho alternava-se - e alterna-se ainda - com as pancadas do chinelo sobre o inseto inerte.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Amanhecer enfermo


Frida Kahlo. A coluna quebrada.

Amanhecer enfermo é como entrar no pesadelo de outrem. E como a doença só surge quando estamos sãos, o que é plenóbvio, nos apanha sempre de surpresa - como uma topada na calçada, um dedo preso na porta do carro, uma tempestade. Não temos tempo de nos despedir da saúde, sua saída é a própria entrada da doença. Não há vaga ou espaçamento entre os estágios, o que os transforma quase que em um mesmo estado, sequenciado. É possível que haja alguém meio doente ou meio são? Apenas em rara abstração conceitual. E a doença? Podemos nos despedir dela, estando ainda dentro dos seus domínios? Ou será a doença - como a saúde - um estado do qual só é possível despedir-se a posteriori, estando ela já distante? Podemos ainda nos perguntar: será isso, ainda, uma despedida? Pensamos que as mesmas interseções que ora percebemos na relação entre saúde e doença também se aplicam à dupla vida-morte.

sábado, 28 de novembro de 2009

Alex e o pedinte

Monumento a Bismarck. Foto: Andréia Delmaschio.


Ele tinha ido ao toalete quando fomos enfim atendidos pelo garçom mau humorado, que depositou na mesa, brutalmente, as quatro tigelas fumegantes. Sem esperar que retornasse, começamos a tomar o nosso caldo de feijão, deixando o seu a esfriar por ali. Foi então que chegou o pedinte. As mesas do bar ficavam num pequeno platô, acima do nível da rua, o que nos deixava na mesma altura das cabeças dos passantes. Sem cerimônias o senhor maltrapilho estendeu o braço magro por cima da murada decorativa e começou a sorver, em grandes colheradas, o mais vulgar e saboroso dos acepipes que cabem no bolso de um estudante. Naquele dia resolvemos não beber... Era uma noite fria como são poucas noites por aqui. No bar ficaram todos visivelmente constrangidos com a ousadia do pedinte que não pedia; alguns demonstravam por meio de gemidos covardes a sua indignação com a distração dos administradores, que não expulsavam dali o incômodo pobre - ou o pobre incômodo; outros, creio, se angustiavam, no íntimo, com a visão mais próxima que teriam, naquela noite, da diferença brutal, ainda que marcada por um pouco de feijão batido e, principalmente, pelo poder de entrar no bar. Nós, na mesa, nos entreolhávamos silentes, numa mistura de vergonha pela nossa condição de plenos comedores, até então ridentes, e, ao mesmo tempo, por sermos os anfitriões involuntários do conflito surdo que se instalava. Temíamos especialmente pela reação que adviria do amigo quando retornasse, transbordante de testosterona, no auge dos seus dezoito anos, e se deparasse com o pedido tão longamente esperado sendo devorado pelo transeunte malcheiroso. Rapidamente ele voltou, ainda arrumando a camisa, e, sem nos lançar sequer um olhar, sinalizou para o homem, que lhe entregasse a colher. O outro foi automático, cabisbaixo. Sério, sem qualquer traço de altivez, afetação ou divertimento com a difícil situação que o acaso lhe preparara, alex provou uma primeira colherada. Em seguida, serviu o homem, na boca, com a mesma colher. Tomou a terceira, serviu a quarta, e assim foram, até o fim, tranquilos, contentes, irmanados em seu caldo quente. Em torno, em silêncio, todos nós acompanhávamos, boquiabertos, cada um daqueles gestos inesperados.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Beto

Beta. Foto: Nascimentus.

Aliás o beta, a que chamamos Beto, faz dois dias já que não sai da casca de ouriço que coloquei no fundo do aquário... A não ser quando Francisco o invoca com sua voz cheia de promessas de futura gravidade: "Peisse!" (Por vezes sou forçada a crer que uma certa aura franciscana o meu pequeno cabeludo traz consigo, e é ela que o faz enfiar a mão pelas bocas dos cães, desde quando ainda era um bebê. Trata-se de um santinho alegre e debochado, mas a quem os pássaros praticamente vão procurar na cama, a cujos chamados atendem os gatos todos da vizinhança e que até as formigas perseguem.) E só mesmo quando é chamado por ele o beta vem à tona, belisca alguma coisa e volta para o mar que lhe improvisei - sem sal, sem ondas, sem céu, sem qualquer imensidão. E como nos primeiros dias após a sua chegada as crianças jogassem folhas lá dentro, trouxe-o do jardim, onde parecia já bem adaptado por entre os ramos da bertalha, direto para o escritório. Pensei que aqui receberia menos pó de minério, além de ser a parte mais silenciosa do apartamento. Agora estou me achando cruel, vendo-o ali, solitário, recuado aos restos de outro ser aquático que recolhi um dia das pedras da ilha do frade. Sempre me incomodou saber que os chamam peixe de briga, sendo que só ficam violentos quando confinados em aquários. Quando o comprei, diante da casinha de vidro imunda em que se encontrava, vivi o mesmo impasse que sempre me abala nessas circunstâncias: adquiri-lo ou não? Acabei optando por trazê-lo; acreditava seriamente que o estava salvando do tratamento meramente comercial que lhe era dado, da comida regrada a que estava destinado ali... O argumento lançado por mim mesma, de que comprando-o estaria incrementando o comércio e abrindo espaço para que outro fosse adquirido pela loja para substituí-lo não me convenceu, ainda mais que por detrás do vidro esverdeado eu vislumbrava já dois pares de olhos gigantes, estatelados diante daquela novidade, a vida nadando, vermelha, dentro da nossa casa... Foi assim também quando comprei quinze violetas sem flores, que definhavam a olhos vistos, sob o sol de setembro (de resto igual ao de janeiro e ao de julho, em vitória), na floricultura da esquina. Com elas a experiência foi feliz e depois de algum tempo de adaptação nunca mais deixaram de florescer. Mas o Beto está ali, quieto; parece não querer muita conversa. Devo levá-lo de volta ao jardim suspenso, e desta feita talvez o ponha em meio às violetas.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

A maciez do ferro

Monumento em Berlim. Foto: Andréia Delmaschio

Meus irmãos e eu éramos, quando crianças, catadores de ferro. Sim, exatamente como os atuais catadores de lata ou de papelão. Não me lembro do que fazíamos - se fazíamos - com o dinheiro da venda dos grandes pedaços do mineral coletados nos terrenos baldios do bairro suburbano. Me lembro muito mesmo é da maciez do ferro pisado pela minha conguinha vermelha desbotada (é curioso como continuamos nos referindo à cor perdida, não mais identificável, para descrever os objetos que nos acompanham no tempo e, de dentro do box, pedimos aquela toalha de banho marrom que ninguém é capaz de encontrar, porque agora são todas bege...). Me lembro muito desse paradoxo sinestésico da maciez do ferro, amontoado em nacos que se entrechocavam sob os pés, emitindo um som agradabilíssimo. Na verdade nunca fui uma grande coletora. Embora por um tempo tenha me dedicado com afinco, nunca consegui um quarto sequer da produtividade dos meus irmãos mais velhos, e confundia, por vezes, ferro com pedra preta, o que fez, ao final, com que me excluíssem daquele trabalho, para eles, duro; para mim, macio. Lembro-me principalmente de que vivia uma contradição: se recolhesse muito ferro, não tinha como carregá-lo, por ser extremamente pesado; se recolhesse pouco, ao final do expediente tinha de colocá-lo na sacola de um dos meus irmãos, perdendo assim o renome pelo trabalho realizado. Acho que o problema era basicamente o de juntar e não poder carregar. Talvez me prejudicasse a pouca idade. Ou então a ausência do estímulo de ao menos saber em quê era investido o dinheiro conseguido com a venda, ao findar o dia. Enfim, nunca me disseram a que servia aquele trabalho, para mim de sísifo, para eles de hércules. Não tenho nem mesmo lembrança (se é que um dia soube) do modo como todo aquele ferro em pedaços teria ido parar nos acostamentos e cantões da vila garrido. Será que esta mesma que hoje entope os nossos pulmões e encanamentos com pó de minério saía, na década de setenta, a espalhar os dejetos da pelotização, discretamente, próximo à morada dos pobres? Aquele trabalho permanece na minha memória como algo por muito tempo continuado, diferentemente de quando, por exemplo, tombava um caminhão... As tardes de caras e mãos encardidas entre os meus irmãos habitam o mesmo lugar que aqueles finais de semana em que acompanhava o pai, de madrugada, até a obra onde fazia o seu bico e as noites em que mamãe me dependurava ao colo, enrolada num lençol, e ali me embalava o sono com o barulho da máquina de costura.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

De beija-flores III

Andréia Delmaschio. Foto: Andréia Delmaschio.

Eu jogo com palavras. É a minha vida. (Philip Roth)

As dissidências entre real e imaginário... Mas, como mesmo? Como assim? Só se pode imaginar o real - ou não? Só se pode realizar o imaginado, certo? Ah, é pensamento sem fim, não há que separar ou juntar nada, não se trata de instâncias...

Alex leu o texto ilustrado por foto sua, e, assim que nos encontramos, perguntou sobre aquela passagem que eu omiti. "Qual?", indaguei. E ele: "Você não se lembra mesmo? Ah, queria eu ter esquecido!". E me narrou algo já completamente apagado da memória: "Eu, com pena do pássaro, devolvi-o ao ninho assim que os colibris o lançaram ao chão! Fui eu o responsável pela morte do bicho!".

E assim se revelou, de todo o acontecido, o fato que, aparentemente, forneceria a melhor matéria para a escrita. Aquilo que daria à crônica o bom desfecho foi simplesmente esquecido. Marcou-me tanto a conspiração extra-espécie para salvamento do pássaro que não me lembrei absolutamente da nossa interferência. Ou então a mente arquitetou um mecanismo de menos-culpa, para o prosseguimento suave dos nossos dias de férias.
Imagino quanto esquecimento, quanta deturpação... na verdade a impossibilidade sem tamanho de recuperarmos o dito acontecido. Aliás, não deve ter sido por acaso que a palavra dito começou a penetrar em certos lugares...

E olhe que tirei tanto prazer de relembrar o relatado! Gostei especialmente de replantar no texto o pomar inteiro de mamãe, e, quiçá, frutas que lá nunca existiram...

Agora há pouco, ao relê-lo, senti o cheiro do manjericão vindo direto do canteiro... Senti nas mãos a casca grossa das sementes do girassol... Tive nos dentes a trava azeda do maracujá...

Mas me esqueci de que Alex, entre condoído e confuso, apanhou no chão de terra o pequeno pássaro e devolveu-o, cuidadosamente, ao ninho, entregando-o, em suas mãos, ao apetite peçonhento do destino.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Quarta-feira de cinzas


No fundo do copo de leite os fantasmas noturnos começam a se dissipar. Flap flap um último cisne patina no círculo branco, atravessa o vidro e vai de encontro ao cinzeiro, onde tomba. Seu corpo exala uma fumaça suave. São quatro e vinte e cinco. A luz da rua, bordada pelas folhas do oiti, enche a sala de sombras que só se vão ao amanhecer. Nesta mesma posição, na manhã passada, notei o bolo de barbante engastado no pé do sofá. Hoje despertei com a cigarra do apartamento, mas não vi ninguém do outro lado.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

De beija-flores II

Colibri. Foto: Alex Delmaschio.

Assim que mamãe voltou definitivamente ao campo, os quatro irmãos íamos com muita frequência e empolgação visitá-la. A casa recém-adquirida estava ainda arruinada, pouco acolhedora, e a chácara nada mais era que um quintal pelado, cortado por um córrego de dentro do qual saía o fícus gigante, redundante, que hoje é o marco de entrada para aquele pequeno oásis em que se transformou o seu território, bem no meio do deserto que é o norte do espírito santo.
Nenhuma vegetação havia, além de dois coqueiros corriqueiros, doentes e improdutivos, hoje já derrubados pelas lagartas, e alguns pés de jiló. A primeira atitude de mamãe foi plantar girassóis na beira da estrada e em volta da casa. Umas fotos que fiz na época mostram a força daquela terra, até então dormente, revelada na beleza das flores gigantescas, e a admirável ausência de senso prático de mamãe, iniciando a reforma pelo jardim.
Ao desvanecer o apelo inicial da novidade, com o natural e paulatino rareamento das visitas, pudemos ver melhor o progresso que ocorria ali. Em pouco mais de um ano a casa havia sido reformada, ampliada, e o jardim se estendeu por todo o quintal.

À direita de quem entra ficava a horta e à esquerda o canteiro de plantas medicinais, menina dos olhos de mamãe e minha.

Nos fundos começavam a crescer, de um lado o cafezal, de outro as bananeiras e a batata doce, alternando, futuramente, com o milho e o feijão, depois com a cana e a araruta.

No brejo, próximo do córrego, o primeiro arroz estava pronto para a colheita. E o mais curioso: o ansiado pomar cobria todo o terreno, e incluía não somente as previsíveis jaca, manga, goiaba, laranja, abacate, cajá, graviola, jaboticaba, pitanga, limão, abacaxi, jamelão e acerola, mas também frutas raras ali, como a lichia, o abil amarelo e o roxo, a ameixa, o caqui e a laranjinha kin-kan, e os difíceis figo, pêssego e maçã, esta última tendo se negado sempre a produzir numa região em que jamais se viu uma goiaba verdadeiramente graúda ou uma graviola sem bicho... até que a velha senhora, sozinha, se estabeleceu no local.

Numa das ocasiões em que lá nos reunimos, estávamos todos sentados no chão da varanda que terminamos de caiar, comemorando embriagados de garapa com torresmo, quando percebemos que, revoando em torno da roseira principal do canteiro que antecedia a casa, um pássaro de pequeno porte gritava desesperado.

Alex, sempre diligente com gentes e bichos, ergueu-se rápido nas suas platinas e chegou o mais próximo que pôde, tentando entender a razão do desespero da cambucira - designou-a, que eu, de pássaros, entendo menos do que gostaria. E olhou daqui, olhou daqui... O bicho parecia mesmo pedir ajuda; seus gritos desafiavam o pequeno peito e estendiam-se, cortantes, pelo ar.

Chegamos a solicitar a experiência de mamãe, acreditando que poderia nos iluminar sobre a razão da balbúrdia. Notei então que o problema da experiência é que, com o tempo, ela pode virar um calo, e, se não me engano, mamãe afirmou que aquele pássaro é assim mesmo, faz algazarra por pouca coisa etc. Talvez quisesse nossa ajuda no grande forno de barro onde assava os pães para o lanche da tarde, porque ela também tem seu lado prático, mas os românticos peter pans e hobin hoods que criou não arredamos pé dali enquanto não descobrimos o segredo da cambucira.

Logo percebemos que na roseira estava posto um ninho, obviamente seu, habitado por um filhote ainda sem plumas. A mãe pulava para ali, rápida, beliscava o filhote, como se o quisesse erguer no ar, molinho que era, e voltava a soltá-lo na pequena cama côncava de capim seco. Nós acompanhávamos impotentes a sua movimentação, porque, ao primeiro sinal de aproximação, ela parecia se desesperar ainda mais. Em pouco tempo no entanto começaram a aparecer mais pássaros se agitando em torno do ninho - lembro-me ao menos de uma outra cambucira, como ela, e - curiosamente - de dois ou três beija-flores.

A solidariedade entre espécies diferentes sempre me assombrou...

E todos gritavam e beliscavam o filhote. Para nós era um espetáculo novo - e ininteligível. Tive pena do recém-nascido, e mesmo vontade de protegê-lo de tantos bicos, mas não me senti no direito de interferir naquilo que nem mesmo compreendia o que era. Alex reforçou: "Deixa, que a mãe sabe o que faz!". A saraivada de bicos curtos e longos durou alguns poucos minutos, que no entanto pareciam um século para a nossa espera embotada, sem qualquer entendimento do caso.

Foi então quando, súbito, a gritaria se acelerou, e também os ataques à pequena cambucira, todos lhe metendo o bico ao mesmo tempo. A violência daquilo já nos exasperava, quando num repente o barulho todo cessou e presenciamos uma cobra, pele idêntica ao galho, descendo da planta espinhosa num rastejo lento de animal saciado, os pezinhos do bebê-pássaro despontando ainda da boca.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Pés e cabelos

Van Gogh. Par de botas.
Museu Nacional Vincent Van Gogh, Amsterdã.

Francisco se atrapalha com tênis e sandálias. Seu pé comprido e fino - idêntico ao meu em cada traço, veia, canto de unha - parece se ampliar para os lados junto com a borracha colorida da papete, e então ele se desequilibra, toca nas coisas, tropeça e cai; foi feito para andar descalço. Em compensação, deve poder escalar pedras com leveza e admirável facilidade. Como a mãe. Feito um gavião ou um bode. Eu mesma, embora não tire as sandálias sequer para o banho, de tênis me sinto um alien: tenho medo de tropeçar na porta da sala de aula e cair direto lá dentro. Acontece mesmo de, por vezes, enquanto caminho, um pé esbarrar no outro, embora seu alinhamento seja perfeito. Nunca me acostumei a esses tênis rechonchudos que todos usam, aparentemente usufruindo deles muito conforto. O último que comprei está intacto no armário há exatos dez anos. É possível que a borracha tenha ressecado e, mesmo, que não me sirva mais, porque, ao contrário do que dizem, o corpo muda sempre - antes e depois dos quarenta. Ter passado pelos anos oitenta em plena adolescência, sem calçar um par de tênis, parece estranho, hoje, mesmo para mim, porém mais me assunta saber que cheguei aos dezoito sem ter vestido nunca a onipresente calça jeans, outro incômodo no corpo de meu pequeno filho. A mais antiga lembrança do assunto que trago comigo diz respeito a uma criança pobre, porém, contudo, todavia filha de costureira, o que muda muita coisa no mundo das aparências, ou seja, no mundo. Eu devo ter desejado, sim, me embrulhar em justos jeans, como o fazia a maioria das garotas da minha idade, mas não com muita força, que naquele tempo a imposição não tinha o alcance de hoje. E seria uma dupla afronta rejeitar as saias e vestidos tão lindos e tão baratos feitos pela minha mãe... É certo que às vezes ela exagerava um pouco, e eu ia à escola digamos um pouco bonita demais. Lembro-me de uma vez em que a dona nilda, assinante de revistas de moda e costureira das mais requisitadas na vila velha, resolveu estender deus dotes até os meus longos cabelos, e construiu ali um alto coque tipo b-52, que aos oito anos quase me matou de raiva e vergonha. E medo de que os colegas descobrissem que por baixo da banana brilhosa e loira que os fios lisíssimos compunham havia nada mais nada menos que uma bucha de bombril. Desgraça. Infelicidade. Aquilo me destruiu o dia, porque eu não podia desfazer o penteado. Depois de tentar fugir, cedia, contrariada e entre lágrimas, à estética obstinação materna. Obedecia sem que ela precisasse de mais argumentos. Ao caminhar em direção ao colégio, onde me encontraria com os meus colegas negros e pobres para o capítulo mais ridículo de uma já difícil relação, sentia no ouvido, feito o som de um violino fúnebre, o ranger dos finos fios de aço. Só sei dizer que a bucha foi descoberta, pinçada, puxada, espalhada, lançada pela sala aos pedaços. Naquele dia devo ter odiado minha mãe, como em tantos outros. Mas foi bom, para sentir de uma só vez como é ter cabelo de bombril e ser discriminado em público.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

De beija-flores

Foto: Flávio Crunivel Brandão.

Em brasília eles vinham aos bandos e quando se achegavam aos hibiscos que cercavam o quintal, era sempre em dupla. Mas lá se mostravam pequenos, apenas cinzentos ou levemente amarronzados; vez ou outra penso ter visto um maiorzinho, azul-marinho, rabo de tesoura, mas pode ter sido apenas uma memória que carreguei dos daqui, ora muito verdes, ora muito azuis, e acho que às vezes ambas as cores se misturam num só, espalhando reflexos prateados. Desde quando morava sozinha num apartamento pequeno já gostava de os atrair com o melzinho na janela, pingando de flores de plástico. Agora, com as crianças, eles frequentam a casa sem medo. A primeira coisa que notei foi isso: os beija-flores não temem as crianças. Talvez seu instinto nos perceba, adultos, muito cheios de dedos (ótimo duplo sentido!) e daí fiquem desconfiados: por que devotamos tanto zelo, afinal, ao nos aproximarmos deles? Confesso que o cuidado que tinha, quando acontecia de um deles ficar preso e não conseguir mais achar a saída, era resultado de medo: medo de machucar aquela fragilidade ambulante, de ser mal interpretada nos meus propósitos e mesmo um outro sentimento que existia antes de ter tido filhos: um receio de tocar o vivo, de não saber cuidar, ainda que por um instante. Quando criança, nas visitas à vovó, corria horrores das galinhas, que corriam horrores de mim... Mas as minhas crianças nunca se apavoraram com pássaros ou peixes, ou sapos, ou formigas, ou aranhas, ou galinhas, ou bois... E de manhã, quando acontece de entrarem na área de serviço três ou quatro colibris de uma só vez, é uma festa: eles voando lá em cima, em círculos, e as crianças correndo aqui em baixo, simplesmente espantando-os com uma fralda na mão e um "vai bóia" que eu mesma ensinei, numa manhã em que percebi um filhote já cansado de bicar o vidro. Depois de tanta comemoração que fiz no início, assim que eles descobriram o nosso jardim, florido mês após mês, não poderia simplesmente pegar de um pano na frente dos gêmeos e tocar o coitadinho mundo afora. Então me aproximei de modo discreto, abri a janela inteira à sua frente e disse: "Vai embora, querido. Sua mãe deve estar te procurando". Ontem, em meio ao burburinho sonífero do nebulizador, percebemos que algo acontecia no escritório e lá fomos nós, corajosas desbravadoras do desconhecido - flora e eu. Um filhote de pescoço super-verde e rabo ainda curto batia com o longo bico, brilhante feito grafite, num canto da escrivaninha, entre um calendário que parou em agosto e uma pilha de provas por corrigir. Apanhei-o cuidadosamente, porém sem temores, num gesto rápido o suficiente para que não fugisse, e seguro, para que não temesse, ele. Agachei-me para que a flora o visse de perto e sua expressão era - perdoem-me pela palavra - epifânica. Fez sinal de que queria tocá-lo. Aproximei-me com o filhote na mão. Pesava menos que um lápis. Ela fez levitar o indicador pela testinha brilhante, até à fina ponta do bico, e, como se ouvisse o eco do meu pensamento sobre a leveza do pássaro, notando certamente a sua semelhança com os lápis de cor, olhou-o muito fixamente e soltou um "ápice", que é como chama a lápis e canetas; "ápice", eu repeti. E abrimos a janela para o ápice - sua mãe já devia estar preocupada!

terça-feira, 22 de setembro de 2009

O Grito

Studies for the head of a screaming Pope.
Francis Bacon, 1952.

Grito é o cão faminto que vive no apartamento da senhora X. Alimentado da ração de dias iguais e noites tais, espera que a mulher retorne do pátio aonde desce diariamente, sozinha, armada de regador e rastelo, nessas horas em que as crianças, ainda de pijama e recolhidas aos seus apartamentos, fazem o dever de casa, florzinhas de veludo e feltro a escorrer pelas pernas roliças, os dedinhos dos pés entrando e saindo das brochuras de capas coloridas. Aqui e ali recolhem na pele algumas gotas de cola, que enrolam e guardam para amaciar depois nos dentes delicados. Ao longe ecoa o grito.

De manhã até o meio-dia a senhora X permanece no pátio. E rega, e rastela, e se regala com o seu trabalho, porque o orgulho do condomínio é seu jardim de tão viçosas amarílis que parecem mesmo nutridas de alguma misteriosa seiva descoberta pela discreta senhora. Plantas que florescem o ano inteiro, desrespeitando o vento sul. Nos dias de sol suas boquinhas vêm mais abertas colher mosquitos estourados do céu azul. São dias longos e claros cujas tardes as crianças preferem para vir sentar no jasmim, no jardim, e falar obscenidades umas às outras. Algumas dizem ter visto o grito no quinto andar, mas são crianças imaginativas! e desconhecem as normas do condomínio, que proíbem animais nos apartamentos.

De manhã as mulheres brotam esgotadas, o sol soassando os coletores de lixo. Amiúde o feijão é catado nas cozinhas. O grito desce do nono andar e é mais rude e rouco a cada dia. Algumas vezes, aproxima-se do segundo pavimento arranhando as paredes, arregalando os dentes enormes, e mais as crianças que os adolescentes o escutam, mais os adolescentes que os ocupados. No prédio, é claro, não há bebês.

Hoje, no dia de mais setembro deste sol, parece tudo muito amarelo acima e abaixo das amarílis, e os besouros mais lúcidos se emosquitam engolfados em declive pela goela das grandes flores. As crianças se apalpam quase a se desintegrar, mas o grito estronda, ronca, ruge, e os pequenos se espantam com o tremor que provoca e com a meleca escura que ele espalha na sua tez macia.
Há momentos de completo silêncio, quando tudo pára, mesmo o vento, e não se ouve o Grito...

É que então ele se alimenta.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

O semeador

Van Gogh. O semeador.
Museu Nacional Vincent Van Gogh, Amsterdã.

O inconsciente é multimídia. (Jacques Derrida)

Uma criança montada num javali corre pela estrada em velocidade inacreditável. Recém-despertada no lombo do bicho, agarra-se com pavor às suas orelhas, no afã de salvar a própria vida e sabendo que, correndo assim, a queda seria fatal. Uma baba grossa escorre dos grandes dentes pontiagudos por sobre a pelagem grossa e ressecada do animal, que contorce a cabeça em busca dos dedos que lhe dilaceram a cartilagem. Certamente despertaram juntos. Em close vê-se a nuca da criança se eriçar. Nos seus olhos horrorizados incide uma luz que é quase de dia. Alguém diria que lhe procura a alma.

Perto dali, num balé nipônico, um corpo claudicante, indiferente ao que acontece ao redor, ascende da madrugada lamacenta, retirando do corpo, como se de um bornal, o gérmen negro que lança em todas as direções. A paisagem agora é feita de pontos pretos de tamanhos variados. O semeador é uma mancha negra cobrindo as outras, e sua presença, ao invés de encobri-las, multiplica-as.
Ao fundo vê-se uma árvore, ou o ramo de uma árvore, ou o galho de um ramo da árvore, ou a nervura de uma folha, ou.

Um outro corpo, ágil, salta da árvore para o ramo, e do ramo para o galho, e do galho para a folha, e.

No sentido oposto o sol se desloca, mais infinito que o pensamento sobre a árvore.

O semeador avança agora contra o sol, borrando a paisagem, sem o astro, insustentável.

Nos olhos da criança reflete-se o dedo de Vincent, riscando com artifício os cornos delicados de pessegueira. A força do gesto esboça a fragilidade do ramo, enquanto as orelhas de pau vão aos poucos sendo podadas da cabeça de Vincent, como se só lhe restasse disseminar-se, tão semelhante a si mesmo que quase cai para fora da tela dos olhos, desbotado, a pele seca, uma ruga recente na face côvea onde agora caminha o semeador.

O diretor se aproxima: “Corta!”

Zumbis

Pierre Flourens, fisiologista francês, sobre o uso do clorofórmio e das demais formas de anestesia: "... em consequência da paralisia geral da inervação, as dores são sentidas ainda mais vivamente do que no estado normal. O logro do público resulta da incapacidade do paciente de lembrar-se, após a operação, do que se passou. É concebível que as excitações dolorosas, que, em razão de sua natureza específica, podem ultrapassar todas as sensações conhecidas dessa espécie, provoquem um dano psíquico permanente nos doentes ou mesmo levem, durante a anestesia, a uma morte indescritivelmente dolorosa, cujas peculiaridades permanecerão eternamente ocultas aos parentes e ao mundo".

Aquilo que ouvi enquanto me "operavam" (operar, no aurélio: executar; obrar) me assombrou para sempre. Não fui submetida a muitas intervenções cirúrgicas, mas deu para notar que o medo pálido que senti enquanto a maca era empurrada em direção ao desconhecido é uma bobagem, se comparado ao horror que experimentei depois, ao escutar da boca dos operadores, enquanto cortavam e costuravam, considerações sarcásticas sobre o que retiravam do que era, ali, o corpo de um estranho. Durante a ação, notavelmente repetida centenas de vezes, pululam os relatos de antigas façanhas e as anedotas sem graça, repetidas no tédio de um trabalho cansativo (muito mais sujo e quase tão pesado quanto o das estivas), iniciam-se as recomendações de restaurantes e marcas de vinho, mas isso ainda não é nada se comparado ao modo totalmente desafetado como se referem a casos tenebrosos, recém-passados ou ainda por vir. São frases que caem na mente anestesiada como sentenças, porque afinal estamos nas mãos de deuses que, naquele instante, nos recriam; somos fantoches inertes em meio a aparelhos cortantes, de frios, e a máquinas ininteligíveis e distantes de nossas mãos, invariavelmente atadas à maca. Quando nos anestesiam, transformam-se curiosamente em zumbis.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Metade deus ou Os eleitos ou Quando Ele pisca o olho


"Olhe: se deus levou a todos para junto de si e somente você escapou do desastre, é porque Ele deve ter um desígnio muito especial para você. Não é justo você se rebelar, porque na verdade você foi abençoada pela mão do Misericordioso. Pense comigo: por que será que Ele a deixou com o braço direito intacto? Não será que foi para acalentar aqueles que ainda necessitam? Deus sabe o que faz, e pode estar certa de que os seus filhinhos agora estão em lugar muito melhor do que este em que vivemos. Deus é o pai de toda a justiça, e só Ele sabe o que faz. Nós jamais alcançaremos o pedestal da sua sapiência. Lembre-se do que aconteceu comigo: quando a casa foi invadida e toda revirada pelos assassinos raivosos, eu havia acabado de sair. Se não foi deus quem me protegeu, então? Hein, quem foi? No vizinho, minutos depois, eles fizeram aquele estrago, e a mãe dele, coitada, velhinha já, ficou irreconhecível, de tanta violência que usaram contra ela. Deus-me-livre-e-guarde, que até pensar essas coisas que você disse contra Ele já é pecado mortal. E a quem é que vocês recorrem, então, na hora do aperto?"

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Belchior no fim do mundo

Belchior. Auto-retrato.

O quarto é o mesmo em que fica o chico quando diz que está trancafiado num apartamento lá em paris para escrever um romance, eu disse. Fica aí, rapaz! Tenho certeza que ninguém na redondeza o reconhece. Tira esse bigode; ou melhor, deixa o bigode... Eu garanto: é mais fácil se lembrarem do rei mago que de você. Eu não lhe disse? Outro dia mesmo uma aluna da licenciatura me perguntou o-que-qui-era lisregina. Eu corrigi: o certo é lisergina - pode olhar no dicionário. Eu insisto: não precisa ir pro fim do mundo, que ele já era e, afinal de contas, lá pode ser a mesma chatice. Espalha suas telas por aí, fica pintando, espaço não falta. Aqui pelo menos você pode ir até a academia, puxar uns ferros - falei pra sacanear - e estou certa de que passará incólume. Ele riu muito, quase estouramos de rir, mas ao final achou a cidade quente e poeirenta. Sugeri a casa da mamãe, já que era pra rolar um isolamento, mas ele implicou com o lance de a velha chocar ovos de pato no microondas. Desencanei: desaparece daqui, então...

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Utilidade pública

Preciso urgentemente de um ortopedista. Conhecem algum em vitória? Qualquer um, à exceção dos muito machistas ou homofóbicos, em geral de sobrenome italiano, que já experimentei todos os da lista, porque transformam o diálogo da consulta (quando o há, no dia em que estão a fim) num martírio: dispenso, por favor, os que marcam uma consulta a cada cinco minutos, os que assinam blocos de cheques diante do paciente e principalmente os sábios, de ventre budista (como será que a coluna os sustenta?), tão experientes que de lá mesmo do seu trono dourado, sem se levantar, pedem que se ponha a mão sobre o lugar que dói. Simples assim, e receitam o corticóide que nos inchará por meses. Talvez seja um lance de cura pela imposição das mãos que experimentam... no caso, por meio das nossas próprias mãos... Mas quando pergunto se, mesmo portando hérnias de disco, posso praticar yoga, ninguém sabe do que se trata (estou me referindo a yoga, claro). Assim como não devem conhecer, obviamente, a canela-de-macaco. Pensando bem, recomendem-me com urgência, por favor, um macumbeiro. Pode ser de qualquer vertente, não tenho tantos preconceitos quanto faço parecer logo acima. Fazer o quê? Cada um tem a formação que lhe foi possível! Trancado num quarto decorando as apostilas de química do cursinho caríssimo pago obviamente pelo pai empresário ou, ahahah, ortopedista, as tardes inteiras comendo meque-não-sei-quê-lá e tomando energético para ser aprovado no vestibular por cujo funil enfim escorregou, na época em que o organismo ainda metabolizava aquele mequeleca todo; trancando-se depois, por anos, numa fria sala de aula, num gabinete e, com sorte, num laboratório de anatomia... ah... caído agora, quilos e décadas depois, num consultório apertado sobre uma avenida idem, não daria mesmo para aprender e/ou ensinar nada sobre as pessoas e seus ossos – vivos. Por favor, recomendem-me, com urgência, um macumbeiro – dos bons.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Londrina

Fragonard. Os amantes, 1780.

Ao passarem pelo portão ele roçou de leve, na sua, os pêlos da perna. Pareceu proposital, mas pairava muito álcool na bolha de insegurança que em breve arrebentaria no ar. Só então ela percebeu que ele usava aquelas bermudas ridículas que simulam calças, mas não chegam sequer às canelas. Ele pediu a chave. Ela ainda procurava na bolsa quando ele enfiou a mão e foi tirando o molho num gesto apressado, surpreendente. Entraram: ela risonha: "Homens baixos nunca me meteram medo!", e ele sério, com cara de medo. No elevador teve início uma viagem: o espelho onipresente, as bocas crescendo desmesuradas naquele cubo de arpejos curtos, o primeiro encontro depois de meses de auto-erotismo diante da webcam. Chegaram ao quinto andar. Entraram como que empurrados, fugindo do frio londrino. Na certa havia mais alguém na casa, uma república no centro da cidade. Do único banheiro vinha um som de ducha. A porta do quarto tinha ficado aberta. A cama desarrumada se abria em copas quentes. Num instante ele a lançou sobre o colchão com a força de uma máquina desejante e não deu tempo para que voltasse a si: sentiu quando os cabelos dele, ainda molhados de sereno ou suor, resvalaram sobre a sua nuca despida e um cheiro bom de homem lhe veio da boca viril, próxima, e que no entanto fugia, ameaçava entregar-se e fugia. Resolveu reagir, virando o corpo para sentir-lhe o flanco, mas ele a imobilizou completamente naquela posição meio diagonal em que qualquer proximidade era impossível. Ela impôs novo golpe de força e por fim conseguiu mover-lhe um dos braços, chegando-se inteira ao seu tronco, mas ele já reagia, mordendo suas costas num afago cruel. Em um segundo ela uniu novas forças e, numa virada inesperada, subiu-lhe por cima, deixando-o em cruz e iniciando o que seria um abraço muito quente, quando ele lhe desceu pernas abaixo, gemendo e passando a língua muito úmida pelos seus tornozelos. Ela queria alcançar-lhe as nádegas, em meio àquela dança brutal no lusco-fusco do quarto iluminado apenas pelos faróis da rua, mas ele já fugia, e, lentamente, de modo determinado, imobilizava-a de bruços, dando sequência ao que iniciara pelas pernas. O efeito do álcool tinha de todo se esvaído e a querela já parecia durar horas. Ambos arfavam, procurando do outro as partes mais íntimas, que o poderoso senhor possuidor se esmerava sempre, mais e mais, em negacear, a si e ao outro, ampliando o desejo aos limites da angústia. Era de se esperar que a qualquer momento aquilo explodisse: de dentro, de fora, para qualquer dos lados... Mas a loucura tem suas imprevisibilidades, e seja o que tenha sido aquilo, permaneceu encarnado nas paredes do quarto de estudante, dentro das páginas de verlaine, escondido nas gretas do assoalho. Na manhã seguinte: banho morno, universidade, palestras, aeroporto...

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Eu me sonhei...

É curioso o modo como as pessoas referem a matéria sonhada. Jô, minha fiel escudeira, usava, para narrá-la, um delicioso "diz-que", resolvendo desse modo a questão da irrealidade: "Diz-que eu estava numa praia bonita toda vida. Foi quando ele chegou e me entregou o tal embrulho..." Provindos de mamãe, os relatos oníricos sempre me intrigavam com a introdução totalmente inusitada: "Eu me sonhei que a água do poço vinha até a porta de casa...", transformada, depois de décadas de uso, em uma fórmula para mim ainda mais misteriosa: "Eu fiz um sonho em que era criança novamente, e nele minha mãe aparecia bem jovem...". Quando comecei a concluir sobre o "me sonhei", a partir das considerações de freud de que os personagens dos nossos sonhos somos sempre nós mesmos, ela me chega com a atividade insuspeitada do "eu fiz um sonho". Como assim, perguntei uma vez. E ela, renitente na sua simplicidade arguta: "Quem foi que fez, então, se só havia eu mesma na cama?"

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Aula de Yoga III

Monumento "Tortura Nunca Mais". Recife, Pernambuco.
Foto: Cassandra Lima. Flickr, 2006.

A professora de Yoga (que não é professora, bem dito - meu eterno bode expiatório) desfiava frases do hermógenes. Poderia ter lido um poema (diz o bith: poesia é auto-ajuda). Eu já implicava com a simplicidade excessiva, aparentemente sem fundo, quando me lembrei do relato de um presidiário, que vi num documentário. Ele declarava, em poucas palavras, como a prática da Yoga, por intermédio do hermógenes, tinha mudado a sua vida. E seu olhar confirmava o que ele dizia. Há tempos aprendi a ouvir as palavras de olhos postos nos olhos, o discurso ficando quase num segundo plano. No dia em que se disseminar o domínio (que algures já deve existir) do olhar para dissimulação das intenções, teremos de reescrever todos os códigos de ética e moral... Para quem está recluso, a importância da recriação de um universo no próprio corpo é inegável. Do mesmo modo, saber o alcance do calcanhar. E parece que hoje estamos quase todos reclusos; alguns renegam os limites mesmo do corpo (adalberto foi quem me lançou, certa feita: passo uma semana sem sair de casa; sou ou não sou um prisioneiro?).

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

O andarilho na Ilha do Boi


O andarilho foi saindo lentamente da ilha em direção à cancela da entrada: mochila às costas, cabisbaixo, os cabelos levando de lembrança uns gravetos de hibisco...

Fiquei pensando sobre o que o teria atraído ao pequeno paraíso hermético da ilha de Vitória. Uma ilha dentro de outra não é mesmo algo fácil de se imaginar.

Mas ela é linda. A natureza no final da Praia da Direita parece estranhamente intocada. Numa capital, uma prainha quase sempre deserta, com peixes e algas, e grandes pedras que se pode percorrer... É verdade que, a depender do vento, o minério de ferro escurece as areias, mas os peixinhos lá estão, adaptáveis, e ostras em abundância.

O andarilho deve ter se informado previamente sobre a beleza da ilha, num site talvez, acessado de uma lan house próxima à rodoviária obscura em que desembarcou...

Acompanhei durante alguns segundos, pelo retrovisor, esse representante de uma espécie que eu já imaginava extinta. Há quanto tempo não via um mochileiro! Magro, a pele escurecida, os cabelos longos e mal cuidados pareciam serpentes sedentas, as roupas vinham desbotadas de tanto sol...

Mas a cabeça ia mais baixa que o normal. Aquela curvatura exagerada do pescoço me incomodou. A opressão das casas gigantescas, escondendo sob toneladas de cimento e vidro o que deve ter sido um dia um belo monte coberto de restinga seria razão para que se inclinasse tanto alguém que já carrega nas costas tantas paisagens?

De repente começaram a medrar, de vários pontos, as motos com homens no uniforme vermelho e cinza da empresa de vigilância. E vieram fechando o cerco em torno do rapaz como se tocassem uma rês perdida, tendo por aboio o barulho irritante dos motores, algo que tinha de incomodar mais os moradores que a presença esquálida do rapaz, pensei.

E ele veio saindo devagar, aparentemente ileso. Embora a cena já não me parecesse inédita, desta vez me chocou o erro de cálculo: que ameaça poderia representar às fortalezas de cerca elétrica o rapaz levando às costas uma mochila maior que ele? Depois entendi que a ingenuidade era minha. Ele enfeiava a ilha, era isso! Ele é aquilo em que, por um lance qualquer do acaso, um de nós pode rapidamente se transformar. É o espelho embaçado em que ninguém quer se mirar.

A cabeça baixa era como uma placa de aviso ambulante: É proibido - inclusive - olhar.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Flor e borboleta

Flor. Foto: Andréia Delmaschio.

As crianças confundem flor e borboleta - e não leram Clarice Lispector. Com uma caixa de giz de cera enchem as paredes de pétalas que voam, azuis e amarelas. A alegria descobriu primeiro a aura imaculada do corredor, invadindo depois todo o apartamento - pátinas, pisos, portas de armários. Imediatamente dispenso os papéis de parede. Dispenso o projeto de decoração. Dispenso o projetista, o jantar, o fim de semana. Dispenso a faxineira, com sua flanela ensaboada, sento no chão e declino em voz alta, um por um, os seus arabescos.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Aula de Yoga II

Flor no cerrado. Foto: Andréia Delmaschio.

A mesma professora de Yoga que um dia peguei lixando as unhas durante o relaxamento (aderbal verbo me corrige: não é aula; também não é professora) hoje me comoveu com um gesto simples, mas que, para mim, naquele momento, avultou merecedor do prêmio nobel: percebendo que eu sentia frio, tirou não sei de onde algo que também não vi o que era, porque mantinha os olhos fechados, e me cobriu os pés gelados. Delícia do carinho espontâneo e gratuito! Ela me deu: o calor! Desta vez estraguei o relaxamento pensando em por que aquele gesto me comovia assim. Assustei-me verdadeiramente ao perceber que há anos não era alvo dos cuidados de alguém; prometi doar parte do calor que conseguir juntar e pensar melhor sobre o gesto corriqueiro de lixar as unhas...

segunda-feira, 13 de julho de 2009

A pena

A cadeira foi deixada num canto da calçada, ali perto do terminal de carapina, metade no sol, metade na sombra... eu vi quando passei de carro para o trabalho. Na vizinhança ninguém mais a percebe, porque todos já se acostumaram à presença do seu aço frio e arranhado, de segunda mão, conseguida graças a um locutor de rádio a.m. E no segundo que durou o impacto do quebra-molas, vi inteiro o rapaz que a habita: foi vestido com sua melhor roupa: uma camisa branca, de mangas e gola duras, hiperlavada e passada, uma calça de tergal azul-marinho e um par de sapatos pretos, brilhantes. Ele espera. Há mais de vinte anos, espera. É a sua saída mensal para a consulta - um evento. E vai de transcol, acompanhado pela mãe idosa, caridosa, a vida toda dedicada ao único filho homem. A pele do rosto é muito branca, macerada pelo frescor da varanda da casinha simples, onde recebe na boca, dia após dia, o almoço e o jantar. As mãos são lívidas de tanto não tocar; ele não consegue articulá-las, viram-se sobre si mesmas, enrijecidas, e a cabeça pende completamente por sobre o feixe clair, simulando um narciso triste, obrigatório, a olhar eternamente para o próprio umbigo, sem opção. Com o pai nunca estabeleceu nenhum tipo de relação, porque não lhe foi dada a felicidade de poder falar, e dizer que tem frio, calor, que lhe dói a garganta, que está ouvindo, sim, os pássaros lá fora, que o som da televisão à noite é inoportuna, que a comida está muito quente, que a água gelada faz doer ainda mais a garganta, que o incomoda já há oito anos, que não gosta de ser exposto às visitas, que precisa de ar puro, que o banho de mar, aos três anos de idade, foi algo que nunca mais esqueceu, e que, se pudesse pedir, pedia outro, e mais outro, e outro ainda... Tenho pena? Devo ter pena. Os mais sensíveis não podem nem mesmo ouvir essa palavra. Não aprovam que se tenha pena. Ninguém gosta de ser alvo da pena. De nada ajuda que eu tenha pena.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Bêbado e bailarina

Que matéria frágil eu moldo com minhas mãos, para além do sono mentiroso dos ansiolíticos: noites de flor, dias de febre... que insana disciplina - amar. Amar o que veio, com meu sangue inscrito nos cabelos, as águas se cristalizando para formar a um só tempo dois pares de mãos de anjos, quatro pernas se entrechocando: um bêbado e uma bailarina, meus súditos e senhores na dança sombria das delicadezas.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Maria Tomba Homem

Tarsila do Amaral: A negra.


Fim de uma tarde de mil novecentos e lá vai infância, na vila velha. Eu voltava da escola pelas ruas de ataíde, em direção à ilha das flores, o sol na nuca feito um farol alto. De certo modo, até hoje procuro aquela ilha. Ou talvez eu esteja parada na porta do armazém, no momento em que a sombra se agigantou à minha frente, petrificando-me o corpo ao fincar na terra, entre os meus dedos, uma vara longa e delgada. Era Maria Tomba Homem. Seu nome pronunciado em voz alta fazia tremer inteira a lista de chamada. Desde então folhea-se repetidamente, diante dos meus olhos, a série de gigantes coloridos que já habitava os meus sonhos diurnos.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Nota de rodapé

O escriba, em Berlim. Foto: Andréia Delmaschio.

Fui aprender as novas regras de ortografia no livro novo do Chico Buarque. É assim que se aprende, e foi sempre assim. Um dia me tranquei com o Sabino no corcel velho do meu pai e desvendei os mistérios do discurso indireto livre, embora sem sabê-lo. À noite, esperava que todos dormissem para apanhar escondido, na gaveta do irmão mais velho, os seus romances obrigatórios de secundarista debutante. Até que me deparei, num susto, com o Machado. Não me impressionava tanto que se escrevesse daquele modo, mas sim que se pensasse tudo aquilo. Foi ali que descobri, juntas, a filosofia e as notas de rodapé.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Cearenses passeais

CANDIDO PORTINARI. Retirantes, 1944.

Meu filho acordou com a gargalhada. Há tempos eu não ria em sonho. Pareceu-me que há um século eu não sonhava... Corri para apanhá-lo com a imagem dos retirantes na cabeça e uma certa culpa pelo riso descabido, despertando o angelo (quase que foi esse o seu nome) em meio a uma paisagem tétrica e a gente tão esquálida que quase me escorria pelos dedos. Cearenses passeais, li na capa, por sobre a tela do Portinari. Ri e corri para abafar-lhe o choro, sem ter tido tempo para abrir o livro e desvendar que espécie de ironia haveria ali. Seria um absurdo talvez de corajosa incorreção política? Ou uma teoria positivista justificando a existência daqueles seres que aparentavam mesmo ser de um outro planeta? Ou então se tratava de um desígnio divino a ser dito com voz tonitruante.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Aula de Yoga

Estava em pleno relaxamento quando ouvi a professora de Yoga lixando as unhas. Com o canto do olho fiquei mirando o pozinho a dançar feito um cardume de estrelas no vento luminoso filtrado pelas persianas. Um carro perdeu o freio e entrou direto, arrombando o portão. Não tem problema, desde cedo o dia já dava mostras de que seria difícil...