segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O espírito natalino

No comercial aparece uma casa atabalhoada de árvores nevadas, repletas de bolas coloridas e brilhantes. Sobre todos os móveis veem-se guirlandas e coroas douradas. No chão, ao pé de um Papai Noel gigante, estufado, estão presentes e velas. Destoa assombrosamente da praticidade e da discrição que eu tanto prezo. Francisco parece encantado:
- Eu queria que a minha casa ficasse enfeitada assim...
- Sério? Não será perigoso a gente tropeçar em tanto enfeite?
- Não, mãe, eles são todos feitos de plástico!

domingo, 27 de novembro de 2011

Domingo de chuva

- E então, meu bem? Como foi o dia, hoje?
- Choveu. Não choveu. Choveu de novo.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Hiperurbanismo III

- Mamãe, o seu vestido está tôrtoro!

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Hiperurbanismo II

- E então? Hoje é dia de ir aonde?
- Ao círculo, ver o palhaço!

Hiperurbanismo

- Nossa! Que camisa bonita!
- É da Língua da Justiça!

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Ligada

- Mãe, eu estou ligada?
- O quê!?
- Se eu estou ligada, por que é que eu não funciono?
- !?

domingo, 13 de novembro de 2011

O pequeno pândego



Caminhamos pela praia de mãos dadas - Flora, Francisco e eu. Noto que os banhistas nos olham, alguns sorrindo e outros disfarçando um olhar constrangido. Só depois percebo que Francisco, mais próximo do mar, simula perfeitamente um aleijão, um braço pendente e o passo homogeneamente coxo.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Capoeira


Francisco executa golpes firmes e suaves de perna e braço...
- É capoeira, Chico?
- É!
- E qual é o nome desse passo?
- É... Cada um do seu jeito!

Semana

Kate Macdowell: Migrant side.

na segunda ele me ama,
na sexta vai ao bordel
(e uma coisa não tem
nada a ver
com a outra).

domingo, 6 de novembro de 2011

Encontro com Chico Buarque (6/6) ou Estação derradeira

Gustav Klimt: O beijo.


E a rua do hotel era uma longa linha reta que subia do rio até sair do mapa. (Chico Buarque)

Chegamos ao Catete. Ele achou graça no fato de, entre tantos, eu ter escolhido justo o hotel chamado Vitória. Lançou mais uma: “Xenofobia?”. Respondi: “Não, economia”. E tive um pouco de vergonha, porque o hotel era muito ruim. Acho que foi a vez dele de se arrepender da piada; parecia não esperar por aquela resposta, a que no entanto não acrescentei nenhum tom melancólico ou ressentido. Pelo contrário, disse-a rindo, e principalmente pelo prazer de fazer rima com a sua pergunta. Mesmo porque, se quisesse, estaria muito melhor instalada. Ele é que é muito sensível às reações de quem o acompanha. E afável, cuidadoso com as palavras, especialmente quando se pisam certos territórios, como esse, das diferenças econômicas. Ou talvez tenha imaginado – por que não? – que uma pesquisadora de sua obra merecesse melhor acolhida na cidade. Ergui a cabeça e olhei de frente o hotel, tentando espantar a sensação ruim de me sentir tão pobre perto do Chico Buarque, coisa que jamais me afligiria longe dele, e cogitei: “Ah, ele não o conhece por dentro, para ele o hotel é essa caixa de concreto com a placa azul na porta escrito Vitória”. E, de fato, por fora não assustava, e dali ainda se usufruía a presença das árvores altíssimas do jardim do Palácio, do outro lado da rua. Por dentro é que eram elas. Ouviam-se discussões e altos gemidos, batidas de porta e canções do Roberto Carlos. Tudo numa só noite. Era a primeira vez que me hospedava ali, e provavelmente a última. Agradeci pela entrevista - não sabia ao certo que termo usar -, pelo jantar e por ter me acompanhado até o hotel. Ele acrescentou que não foi nenhum favor e que eu não imaginava que coisa boa tinha sido para ele me conhecer, independente do que eu viesse a escrever a seu respeito.
– Quando vai ser nossa próxima entrevista?, disse num ímpeto.
– Bom, agora eu retorno a Vitória e devo iniciar a escrita do texto propriamente dito.
– Vitória (um olhar de quem busca lembranças longínquas)... estive lá mais de uma vez!
– Ah é? E quando foi a última?
– No começo de 90. A lembrança do lugar me traz uma certa... melancolia. Talvez fosse mais pela situação pessoal que eu vivia na época.
– Ah, são quinze anos, Chico! Hoje talvez a cidade te surpreendesse. Houve muitas mudanças. E a natureza por lá também foi generosa.
– É, eu sei. Me lembro bem da vista de um castelo que fica no alto de uma pedra.
– O Convento da Penha.
– Isso! Como é bonita aquela junção de pedra e água. É como um Rio de Janeiro em miniatura, não?
– Ah, sim, lembra.
Recostou-se na porta de lá, ficando quase de frente para mim, eu aguardando o momento de descer. Fez um silêncio curtinho e depois, erguendo um pouco a cabeça, como quem quer adiantar uma resposta imaginária: – Quem sabe a nossa próxima entrevista pode ser feita em Vitória!?
– Puxa! Seria uma honra, de verdade, tê-lo em terras capixabas – puxei a formalidade pelo rabo.
– Estou apenas aguardando o convite oficial – completou, esboçando no fim da frase um meio sorriso, que agora me pareceu de falsa timidez, porque desmentido por um olhar muito firme, que o trazia aqui adiante, malandramente.
Eu não sabia bem o que dizer. – Pois o convite está sendo feito neste momento, lancei, olhando discretamente o relógio do painel. Apenas é preciso nos prepararmos lá para recebê-lo como merece – introduzi desajeitada um plural que era, a um só tempo, de medo e modéstia.
– Não é necessário se preocupar com nada, Andréia, de verdade. Me dê apenas seu telefone e acho que no próximo mês vou rever a sua cidade.
Abri a bolsa, arranquei uma folhinha da caderneta e fui pondo o telefone de casa e o celular, com o código 27 adiante (imaginei que o meu perfil mostrasse uma seriedade excessiva, eu não sabia mais em que terreno estava pisando). – Vou anotar também o meu e-mail, sim?
– Por favor!
Entreguei o papelzinho, que ele dobrou ao meio e pôs no bolso da camisa.
– Foi um grande prazer conhecê-la!
– Ah não, essa frase tem de ser minha, Chico Buarque de Hollanda!
– Até breve então!
– Até! E obrigada!
Vieram os dois beijinhos, o perfume agora mais suave. E um terceiro. Meu deus, o Chico Buarque me roubou um selinho.

sábado, 5 de novembro de 2011

Encontro com Chico Buarque (5/6) ou Carioca

Guto Holanda: Rio de Janeiro.




Mas um homem sem compromisso, com uma mala na mão, está comprometido com o destino da mala. (Chico Buarque)


Porém a proposta não veio e eu começava a me sentir meio desamparada no Rio de Janeiro, a idéia de ter que voltar para o hotel precário no Catete, depois de planejar dormir enfim em casa, as roupas limpas se esgotando, no último dia do semestre. Sempre que terminavam as aulas no Rio, mesmo sabendo que retornaria no mesmo dia, se instalava em mim uma nostalgia que eu nunca soube ao certo se era ainda de Vitória ou se já era do próprio Rio, que aquela cidade, com seus deleites e horrores, penetra sutil e demorada, porém inexoravelmente. A bolsa pesada de apostilas, a rodoviária assombrosa, a viagem noturna de ônibus pela frente, a chegada a Vitória pela madrugada, com a noite de sono perdida, o dia seguinte também perdido na cama, recuperando o irrecuperável. Nuvenzinhas negras começaram a baixar e o meu célebre companheiro, com a perspicácia que nem mesmo toda a timidez do mundo conseguiria apagar da sua expressão, pareceu ler cada um dos meus pensamentos. Fiz na hora a pausa clássica que anuncia as decisões peremptórias, tomei um gole d’água e iniciei as despedidas. Ele se ofereceu para me acompanhar até o táxi. Aguardamos alguns minutos pela nota do restaurante, cujo valor sugeri que dividíssemos, mas ele se opôs e disse que da próxima vez eu poderia convidá-lo. Saímos em silêncio. Apenas o garçom: “Boa noite, Chico! Boa noite, senhora!”. Lá fora persistia o calorzinho que as chuvas finas só fazem redobrar. Nenhum dos dois sabia ao certo onde ficava o ponto de táxi. Agradou-me perceber tamanha distração em alguém que conhece bem o lugar. A minha ausência de senso de direção sempre se felicita com essas fraquezas alheias. Logo depois vários amarelinhos passaram, seguidamente, ora lotados, ora em disparada, impossível abordá-los em meio ao fluxo intenso daquela noite que para outros apenas se iniciava. Parecíamos dois estrangeiros, com dificuldades para erguer a mão com atitude ou fazer a cara decidida de quem exige uma corrida. Fomos tão inaptos a parar um táxi quanto resolutos para decidir que daquele mato não sairia coelho, podíamos desistir. Não sem um certo constrangimento, ele disse que me levaria até o hotel, e eu aceitei, depois de algum protesto; acrescentei que não gostaria de atrasá-lo mais etc. Imaginei que o Chico Buarque tivesse um motorista esperando ali perto, mas descobri que ele mesmo é que dirigia o carro azul-marinho parado na rua que fica por detrás do restaurante. Abriu-me a porta. Entrei. De dentro, aproveitei para enquadrá-lo nos vidros do carro enquanto ele o circundava para entrar, e assim ele me parecia incrivelmente mais familiar, acostumada que estou à distância das telas de tevê e das capas de disco. Pareceu-me um pouco preocupado, talvez com o movimento quase imperceptível de três rapazes no fim da rua meio deserta. Seguimos em direção ao Catete e ele ia me apontando algumas praças e monumentos já meus conhecidos, mas dava indicações que fugiam totalmente ao senso comum da ciceronagem, e mesmo da lógica, dizendo coisas como - apontando o Teatro Municipal: naquela esquina ali me recostei um dia para fumar; e sobre a Praça Mauá: nesse ponto vi o homem mais feminino que se pode imaginar; tão feminino que, na verdade, era uma mulher. Era belíssimo vê-lo à vontade, fazendo brincadeiras pueris. E que humor! Emendava, uma na outra, anedotas que a mim pareciam novinhas, partindo das coisas mais simples que dizíamos. Vendo-o ali, o olhar absorto cortado pelas luzes da cidade, os dedos claros contrastando com o couro negro do volante, tive de me render em silêncio a parte da mitologia que cerca a sua figura e percebi que a minha preocupação com isso já se tornava obsessiva. Prometi a mim mesma salvar a tese dela – da obsessão. Perguntei sobre o ludopédio, o jogo que ele criara para a Grow no final da década de sessenta e que, dizem, não foi sucesso de vendas por exigir dos jogadores um raciocínio muito acurado. Disse que era uma brincadeira que inventou para jogar sozinho e que no começo pensava naquilo como uma homenagem póstuma ao filho que nunca teve e a quem gostaria de levar ao Maracanã para ver as finais do Fla-Flu, mas depois um amigo sugeriu que vendesse a patente para ganhar algum dinheiro, e aí a coisa não deu certo. Diferentemente da maioria dos que dirigem no Rio, guiava sempre sem passar dos setenta ou oitenta, mas em compensação não olhava a pista, os semáforos, os retrovisores. É carioca mesmo, pensei.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Encontro com Chico Buarque (4/6) ou Trocando em miúdos

Picasso: Bebedoras de absinto.


Pode ser que então não chovesse; a chuva imprimiu-se mais tarde na memória. (Chico Buarque)


A chuva tinha cessado. O jantar veio rápido, mas apenas beliscamos, eu pela excitação do encontro e porque a conversa seguia animada, ofuscando os atrativos gastronômicos. Aceitei um cigarro, mais para poder vê-lo estendendo o isqueiro na minha direção, esse clichê cinematográfico que em meio à dureza cotidiana ainda me encanta ver os homens executarem. Foi aí que comecei a imaginar como e para quem falaria depois sobre o meu encontro com Chico Buarque. Deviam ser já umas dez horas e ele não aparentava cansaço. Acordei com meus botões que ao menor sinal de declínio da conversa eu daria a partida, para não o deixar exausto logo na primeira entrevista, que acabara por não ser bem isso. Num certo momento dissemos que parecíamos antigos colegas de ginásio que se reencontravam depois de muito tempo, tamanha a facilidade com que fluíam os assuntos, já no primeiro encontro. A expressão “primeiro encontro” era dele, então pensei que não o havia desagradado, e que poderia inclusive vir a acontecer um segundo, por que não? Afinal, ali estavam uma pesquisadora e o seu objeto de estudo. Se não cuidasse, lá ia eu de novo caindo na arapuca do mito. Falamos principalmente sobre música e um pouco da literatura brasileira atual, em especial de Noll e Nassar, este último nossa paixão comum. Os assuntos iam de Guimarães Rosa à novela das oito, e quase chegaram ao futebol. Minha completa ignorância nesse campo parecia a ele tão previsível que passou a bola rapidamente. E cantamos versos de Noel, Cartola, Chico César e dele próprio. Nesses ele quase que silenciava, fazendo uma segunda voz suavezinha, percebi que para observar a interpretação de alguém tão leigo e no entanto completamente à vontade em frente ao compositor, que de cantar eu não tenho o mínimo pejo. Ele no entanto enrubesceu quando citei o texto elogioso do compositor paraibano, seu xará, que diz que “ser homem no país de Chico Buarque é difícil”. Baixou a cabeça um pouquinho, sem graça. A lembrança de sua contrariedade permanece como uma nódoa, a única parte desse nosso encontro que eu talvez quisesse apagar, o diacho da minha cristandade culpada misturada aos ímpetos provocativas da ariana. Diante do seu rubor achei que tinha ido longe demais, resolvi não desenvolver o assunto, mas afirmei que o texto de Chico César é belíssimo, e de uma admiração tão incondicional que beira a ironia. Ao me perceber desviando o caminho do elogio para a crítica, ergueu a cabeça subitamente, me encarando de novo com o bom humor do início. E me segredou uma situação comovente sobre a gravação de “Cecília”, em As cidades, mas isso eu não posso contar aqui. Percebi que o Chico Buarque aceita muito bem as críticas; os elogios é que realmente o incomodam. Tudo é ego, pensei. E ego espetando ego. Tudo vaidade. Eu citando o Chico César, o Chico Buarque temendo o seu elogio, aceitando-o – ou fingindo aceitá-lo – somente quando disfarçado em crítica. Pensei que se não fosse a nossa primeira conversa, eu com certeza traria o assunto à tona. Sem nenhuma intenção de deitar o homem num divã do qual não saberia como retirá-lo depois, mas somente pelo prazer da polêmica. O bate-papo ia bem, ríamos muito, mas resolvi que por enquanto já estava de bom tamanho. Fui dando à conversa aquele tom de despedida sem muita convicção, situação em que basta o outro dizer um “fica mais um pouco” e a gente volta a se sentar, permanecendo até a madrugada do dia seguinte.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Encontro com Chico Buarque (3/6) ou Romance

Renoir: Guarda-chuvas (detalhe).

Não é bem um rosto, é mais a identidade de um rosto, que difere do rosto verdadeiro quanto mais você conhece a pessoa. (Chico Buarque)


Passaram-se vinte minutos, uma chuva fina começou a cair lá fora, a espera já me angustiava quando ele chegou com os cabelos molhados, se sacudindo feito um adolescente, parecia que entrava em casa. Cumprimentou o garçom e veio direto à nossa mesa. Nessa hora o sem jeito dele com as mãos me levou o resto da adrenalina, eu queria deixar o Chico Buarque à vontade na minha presença. Cúmplice, por solidariedade, reajo sempre assim diante dos mais tímidos que eu, correndo o risco de parecer à vontade demais, especialmente quando bebo. Cruzou a mesa, me deu os dois beijinhos não muito comuns no Rio (perfume gostoso!), sentou-se e foi falando do tempo, tema indispensável para se iniciar um diálogo, mesmo com o Chico Buarque. Por alguns instantes, enquanto ele falava sem saber muito bem como me olhar ainda, receei cair na armadilha mitológica e emudecer, depois fui alcançando a difícil descontração, trazendo de volta a anedota que ele fizera ao telefone, para deixá-lo a par de que eu não era jornalista e que não me interessavam os seus romances com a revista Veja. Ele achou graça no novo trocadilho, estava sem dúvida bem-humorado. Chamou o garçom, me ofereceu uma taça de vinho. Tive medo de que me pedisse alguma sugestão, que esses detalhes sempre me constrangem, mas a marca parecia acertada entre eles desde sempre. Seguimos rápido para algumas futilidades. Ele queria saber quem eu era, o que estudava, por que o interesse pelos seus livros. Fui dando as informações oficiais: evitei dizer Semiologia, disse Federal do Rio... E depois comecei a falar que me interessava especialmente pela função autoral no romance. Ele abriu um olhão surpreso, quis saber mais detalhes e eu expliquei que foi Budapeste que trouxe a idéia à tona para mim e que portanto quem pensou a coisa primeiro foi ele, o ficcionista. Não resisti. Perguntei se ele conhecia a meia-polêmica Barthes-Foucault acerca do autor e ele disse que não, mas de modo algum me convenceu. Tenho certeza de que estava mentindo. Perguntou se se tratava dos enrolos de direitos autorais e eu disse que sim, mas que jamais abordaria a questão do ponto de vista jurídico, por exemplo, que não fazia parte do meu métier, me importava o texto, em especial o seu texto e as personagens nele envolvidas, entre elas ele próprio, enquanto personagem-autor. Também não desenvolvi questões teóricas, que com certeza não lhe interessavam. O olhar dele se ampliava à medida que eu ia falando. Parecia nunca ter conversado com ninguém acerca dos seus escritos, imagine! Lembrei a cara de aprendiz admirado que ele faz quando canta em dueto, seja com o Dorival Caymmi ou com a Paula Toller. Enfim, o homem é um delicado. Pensei que talvez estivesse me achando uma dessas cricríticas chatas, mas à medida que a marca do vinho ficava mais translúcida na minha taça fui percebendo que não. Ele estava de fato interessado no assunto, que acompanhava concentradíssimo, desviando o olhar apenas para sorver mais um gole, de vez em quando. Nunca tive tão bom ouvinte para as questões ainda em gérmen da minha tese e, embora para mim parecesse que eu só dizia coisas óbvias ao autor do texto, ele, volta e meia, se surpreendia em silêncio com algumas colocações - percebi nos seus olhos e no sorriso inteligente que esboçava enquanto eu falava. Fui notando nele a contradição: achou ótimo que eu quisesse discutir as redes mitológicas que desde o início da carreira como compositor se armaram em torno de sua figura e de seu nome. Ele que, muitas vezes, se esforçara por desfazê-las, reforçando-as ainda mais, nesse esforço, tendo tido sempre consciência do paradoxo e, por que não dizer, valendo-se muito bem dele. E ali estávamos nós: o mito, que se construiu no ato de desconstruir-se, e eu, que o reconstruo, na pretensão de desconstruí-lo. Ou o vinho estava muito bom ou ele sorvia as palavras com gosto, porque chegou a propor um brinde, e acho que já chegávamos ao fim de uma garrafa. Acrescentou que a minha tese estava lhe dando um imenso prazer. Tirei o chapéu e coloquei-o na cadeira ao lado, para contrabalançar o calor do vinho.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Encontro com Chico Buarque (2/6) ou Fantasia

Salvador Dalí: Galatea de esferas.


Um artista famoso não correria de caneta na mão atrás de sua admiradora. (Chico Buarque)

O restaurante, por fora, me pareceu despojado. De repente me senti incrivelmente à vontade atravessando a rua para encontrar Chico Buarque de Hollanda. Ia tentando apagar da mente as piadas infames que lembrei no táxi, aquelas que no final dizem sempre que toda mulher é apaixonada por Chico Buarque. Pensei que com certeza ele não ia achar isso de mim, já que dei um tom seriíssimo à nossa conversa pelo telefone e porque, afinal, lá estava eu, sem glamour, vestida simplesmente e portando o olhar de gente honesta que deus me deu. Na dúvida, fui com a bolsa maior, onde coube bem o caderninho de anotações, para o caso de o papo se estender, ou de ele resolver me passar alguma informação mais precisa sobre algo. Eu não queria chatear o homem, mas também não podia simplesmente deixar que ele conduzisse o diálogo, já que a interessada no assunto era eu. Por alguns instantes, enquanto aguardava que o semáforo se abrisse, confesso que quase perdi de vista a tese, e se alguém me perguntasse mesmo sobre o que era eu já não seria capaz de responder assim, de estalo. Deu um branco ali, mas passou rápido. Semáforo aberto, lá fui eu, pé por pé, pé por si, diria o personagem de São Marcos. O garçom aguardava na porta, como era de praxe naquele horário em que ainda não havia movimento. Pediu que me identificasse para saber se tinha reserva e aí então eu fui ousada como nunca antes. Disse que a reserva estava no nome do senhor Chico Buarque. E disse isso com uma simplicidade tão forjada que tive medo de ele não acreditar, mas de repente me lembrei de que estava no Rio. No Rio, tudo pode. E não é que havia a tal reserva? A mesa, pequena e redonda, ficava quase num canto escuro e um pouco abaixo do nível das demais, posição que me pareceu no mínimo curiosa. Lembrei a famigerada e controversa timidez do compositor e de ter lido em algum lugar que aquele era seu restaurante predileto. Supus que a mesa já fosse meio cativa e que ele estaria à vontade ali. Faltavam dez minutos para o horário do encontro. Preferia não ter chegado antes do cavalheiro. Devia ter entrado na loja de sucos que fica em frente, ter dado um tempo por lá. Poderia vê-lo chegando, saltando do carro (com chofer?), ver como ele se movimenta na rua, se está magro, bem vestido, ou com cara de quem antecipa um compromisso chato... Enfim, lá estava eu. O melhor agora era relaxar e colocar os pensamentos em ordem. Quando ele chegasse eu não poderia simplesmente cumprimentá-lo e ficar olhando, tentando descobrir se à noite os olhos ainda mantêm o tom ardósia. Eu havia de ter perguntas, claro. E na verdade tinha muitas. O problema todo seria contextualizá-las. E se ele ficasse decepcionado em não encontrar uma fã típica, ou mesmo um mulherão interessado nas sobremesas? Cortei a viagem logo, logo, que já estava mentalmente quase esnobando o Chico Buarque, e mandei brasa: deixei acesas ali, claras na mente, umas cinco ou seis questões indispensáveis para a minha pesquisa, e sabia que essas poderiam se desdobrar em algumas dezenas, a depender da paciência do interlocutor.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Encontro com Chico Buarque (1/6) ou Ludo real

Cícero Dias: Mulher sentada com espelho.

Sendo provável que nos sonhos as vozes venham dubladas. (Chico Buarque)


Encontrei o Chico Buarque no Rio. A princípio achei que fosse impossível. Telefonei para o número fornecido pelo curador do site e o próprio Chico atendeu. Reconheci a voz com dificuldade e medo de chamar algum assessor de “Chico Buarque!?”, de parecer ingênua. Eu já estava indo para a rodoviária, pegar o ônibus de volta para Vitória, telefonei de dentro do táxi. Conversamos alguns minutos e eu expliquei que fazia tese sobre os seus romances. Ele brincou, dizendo que a revista Veja também escrevia sobre os seus romances, jogou logo um balde de gelo, mas me mantive firme. Rimos um pouco e ele disse que o Wagner já tinha lhe falado sobre mim. Eu não podia perder aquela oportunidade. Então propus, com muito jeito, que conversássemos, futuramente, porque, já que eu estudava a questão autoral, e que no meu trabalho ele próprio era uma personagem, seria interessante que constasse dos meus relatos também uma entrevista, caso ele não se opusesse. Ele topou, disse que tinha livre o fim da tarde e eu senti um torpor nas pernas, não pensei que um assentimento viesse tão rápido. Deixei que ditasse o endereço do restaurante e fui anotando na própria passagem que trazia na mão, com uma letra trêmula que deu medo de depois não entender direito, que eu não conheço tão bem o Rio. Desliguei o telefone e respirei fundo. O motorista perguntou se eu ia me encontrar com o Chico Buarque e eu nem respondi direito. Estava meio atordoada, achando que ele tivesse me passado um trote. Só me faltava esta: um trote do Chico Buarque. Não fui à rodoviária tentar adiar a passagem, voltei direto ao hotel para tomar um banho e recuperar a serenidade, combinando já com o chofer a mudança de planos. Eu tinha três horas para ficar apresentável, seria apanhada às quatro. A recepcionista com quem, poucas horas antes, quitei as diárias, riu divertida e com naturalidade, como se já me esperasse, quando me aproximei dizendo que ficaria com o quarto mais um dia. Parecia acontecer a todo momento. Subi com a bolsa, pensando em que roupa vestiria, o que diria ao Chico Buarque. Confesso que quase desisti, o medo me empurrando para trás e uma alegria nervosa para diante. Tomei um banho morno, vesti a saia azul de florzinhas, blusa e sapatilha brancas, e ousei pôr o chapéu azul que só tenho coragem de usar no Rio. Naquele momento, ser incógnita na cidade me encheu de alegria e a minha profunda timidez foi se afastando aos poucos. Me achei mesmo bonita quando passei pelo espelho do corredor do hotel. Fui sem perfume, sem batom, a boca vermelha, afogueada ainda da surpresa.