quinta-feira, 15 de outubro de 2009

De beija-flores II

Colibri. Foto: Alex Delmaschio.

Assim que mamãe voltou definitivamente ao campo, os quatro irmãos íamos com muita frequência e empolgação visitá-la. A casa recém-adquirida estava ainda arruinada, pouco acolhedora, e a chácara nada mais era que um quintal pelado, cortado por um córrego de dentro do qual saía o fícus gigante, redundante, que hoje é o marco de entrada para aquele pequeno oásis em que se transformou o seu território, bem no meio do deserto que é o norte do espírito santo.
Nenhuma vegetação havia, além de dois coqueiros corriqueiros, doentes e improdutivos, hoje já derrubados pelas lagartas, e alguns pés de jiló. A primeira atitude de mamãe foi plantar girassóis na beira da estrada e em volta da casa. Umas fotos que fiz na época mostram a força daquela terra, até então dormente, revelada na beleza das flores gigantescas, e a admirável ausência de senso prático de mamãe, iniciando a reforma pelo jardim.
Ao desvanecer o apelo inicial da novidade, com o natural e paulatino rareamento das visitas, pudemos ver melhor o progresso que ocorria ali. Em pouco mais de um ano a casa havia sido reformada, ampliada, e o jardim se estendeu por todo o quintal.

À direita de quem entra ficava a horta e à esquerda o canteiro de plantas medicinais, menina dos olhos de mamãe e minha.

Nos fundos começavam a crescer, de um lado o cafezal, de outro as bananeiras e a batata doce, alternando, futuramente, com o milho e o feijão, depois com a cana e a araruta.

No brejo, próximo do córrego, o primeiro arroz estava pronto para a colheita. E o mais curioso: o ansiado pomar cobria todo o terreno, e incluía não somente as previsíveis jaca, manga, goiaba, laranja, abacate, cajá, graviola, jaboticaba, pitanga, limão, abacaxi, jamelão e acerola, mas também frutas raras ali, como a lichia, o abil amarelo e o roxo, a ameixa, o caqui e a laranjinha kin-kan, e os difíceis figo, pêssego e maçã, esta última tendo se negado sempre a produzir numa região em que jamais se viu uma goiaba verdadeiramente graúda ou uma graviola sem bicho... até que a velha senhora, sozinha, se estabeleceu no local.

Numa das ocasiões em que lá nos reunimos, estávamos todos sentados no chão da varanda que terminamos de caiar, comemorando embriagados de garapa com torresmo, quando percebemos que, revoando em torno da roseira principal do canteiro que antecedia a casa, um pássaro de pequeno porte gritava desesperado.

Alex, sempre diligente com gentes e bichos, ergueu-se rápido nas suas platinas e chegou o mais próximo que pôde, tentando entender a razão do desespero da cambucira - designou-a, que eu, de pássaros, entendo menos do que gostaria. E olhou daqui, olhou daqui... O bicho parecia mesmo pedir ajuda; seus gritos desafiavam o pequeno peito e estendiam-se, cortantes, pelo ar.

Chegamos a solicitar a experiência de mamãe, acreditando que poderia nos iluminar sobre a razão da balbúrdia. Notei então que o problema da experiência é que, com o tempo, ela pode virar um calo, e, se não me engano, mamãe afirmou que aquele pássaro é assim mesmo, faz algazarra por pouca coisa etc. Talvez quisesse nossa ajuda no grande forno de barro onde assava os pães para o lanche da tarde, porque ela também tem seu lado prático, mas os românticos peter pans e hobin hoods que criou não arredamos pé dali enquanto não descobrimos o segredo da cambucira.

Logo percebemos que na roseira estava posto um ninho, obviamente seu, habitado por um filhote ainda sem plumas. A mãe pulava para ali, rápida, beliscava o filhote, como se o quisesse erguer no ar, molinho que era, e voltava a soltá-lo na pequena cama côncava de capim seco. Nós acompanhávamos impotentes a sua movimentação, porque, ao primeiro sinal de aproximação, ela parecia se desesperar ainda mais. Em pouco tempo no entanto começaram a aparecer mais pássaros se agitando em torno do ninho - lembro-me ao menos de uma outra cambucira, como ela, e - curiosamente - de dois ou três beija-flores.

A solidariedade entre espécies diferentes sempre me assombrou...

E todos gritavam e beliscavam o filhote. Para nós era um espetáculo novo - e ininteligível. Tive pena do recém-nascido, e mesmo vontade de protegê-lo de tantos bicos, mas não me senti no direito de interferir naquilo que nem mesmo compreendia o que era. Alex reforçou: "Deixa, que a mãe sabe o que faz!". A saraivada de bicos curtos e longos durou alguns poucos minutos, que no entanto pareciam um século para a nossa espera embotada, sem qualquer entendimento do caso.

Foi então quando, súbito, a gritaria se acelerou, e também os ataques à pequena cambucira, todos lhe metendo o bico ao mesmo tempo. A violência daquilo já nos exasperava, quando num repente o barulho todo cessou e presenciamos uma cobra, pele idêntica ao galho, descendo da planta espinhosa num rastejo lento de animal saciado, os pezinhos do bebê-pássaro despontando ainda da boca.

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