sexta-feira, 8 de julho de 2016

Chaves no céu




Assim que morreu o ator mexicano Roberto Bolaños, recebi pelo Whatsapp essa ilustração comovente e graciosa em que o Chaves, alado e coroado feito anjo, com seu suspensório mal ajambrado e levando ao ombro a trouxinha de roupas na ponta de uma vara, chega aos céus no seu passo inseguro.

Um certo punctum, como aquele pelo qual Roland Barthes declara ser atraído em certos registros fotográficos, imediatamente me sequestra. O bracinho torto, findando na mão curiosamente afastada para longe do corpo, imita o ângulo típico das crianças muito magras.

Num semigesto que à primeira vista parece antinatural, a mão pende para o lado inverso daquele em que costuma descansar, opondo-se portanto ao repouso e ao recolhimento do eu, que por sua vez se liga à quietude, às necessidades satisfeitas e à vida contemplativa.

O gesto revela a inquietude do insatisfeito, do que necessita e solicita, mas, de maneira curiosa, também sinaliza o ato de voltar-se para o outro, de percebê-lo e, por fim, revelá-lo, no instante mesmo em que se revela.

Esse outro, já do lado, envolto pelas nuvens do desconhecido, é o senhor Madruga, a cujo gesto chamativo, como num balé involuntário, o contra-gesto do Chaves parece, sutil, ritmada e inescapavelmente, tentar resistir, num apego talvez a esta  miséria de cá, que, apesar da indignidade, ao menos já é sua conhecida.

Mesmo para quem não crê no céu como estágio futuro, e sabe ainda estar distante o tempo em que a possibilidade de habitar outras partes do universo nos livrará da nossa atual condição humana de habitantes da Terra, conforme a previsão de Hannah Arendt, mesmo e principalmente para nós, que desejamos a redenção para os pobres, tanto quanto para aqueles que foram abandonados pelos pais e/ou pelo Estado, para nós mesmos a imagem é reveladora, já que, ao fundo, espera pelo Chaves o Senhor Madruga, o que, de maneira ambivalente, se por um lado dá a ideia de companhia e proteção àquela criança desamparada, também ameaça com a clara continuidade da situação de incompreensão e violência representada no seriado pelo próprio Madruga, esse outro exemplar da escória humana, quase tão miserável quanto o menino que dorme no barril, contudo portador de duas qualidades que este não tem: a casa (alugada, é verdade, e sempre em débito) e o poder de adulto (embora desempregado, mal alfabetizado e por isso mesmo menos respeitado que o Senhor Barriga e o Professor Girafales, aquele dono do cortiço e este último um propagador de conteúdos que, a um tempo em que os propaga, da maneira mais tradicional e tediosa possível, o que torna seu conhecimento pouco significativo e mesmo motivo de zombaria, reproduz também, dentro da sala de aula, todos os degraus hierárquicos que de maneira mais, ou menos sutil, informam, lá fora, as relações entre aquelas crianças e aqueles adultos).

Ao fundo das nuvens sobre as quais se encontram as personagens, surge uma luz verdadeiramente terrível, e que se torna tanto mais terrível porque é atraente e promissora. Porém o fato de ser o Senhor Madruga, mais uma vez, o “guardião” do Chaves, enche a cena de um atavismo que beira o cinismo desesperado – ou o desespero cínico. O braço do Senhor Madruga acena, literalmente, com a ameaça de continuidade, com a supressão da única saída que a saída para/pela morte ainda prometia proporcionar.

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