sexta-feira, 11 de setembro de 2009

O semeador

Van Gogh. O semeador.
Museu Nacional Vincent Van Gogh, Amsterdã.

O inconsciente é multimídia. (Jacques Derrida)

Uma criança montada num javali corre pela estrada em velocidade inacreditável. Recém-despertada no lombo do bicho, agarra-se com pavor às suas orelhas, no afã de salvar a própria vida e sabendo que, correndo assim, a queda seria fatal. Uma baba grossa escorre dos grandes dentes pontiagudos por sobre a pelagem grossa e ressecada do animal, que contorce a cabeça em busca dos dedos que lhe dilaceram a cartilagem. Certamente despertaram juntos. Em close vê-se a nuca da criança se eriçar. Nos seus olhos horrorizados incide uma luz que é quase de dia. Alguém diria que lhe procura a alma.

Perto dali, num balé nipônico, um corpo claudicante, indiferente ao que acontece ao redor, ascende da madrugada lamacenta, retirando do corpo, como se de um bornal, o gérmen negro que lança em todas as direções. A paisagem agora é feita de pontos pretos de tamanhos variados. O semeador é uma mancha negra cobrindo as outras, e sua presença, ao invés de encobri-las, multiplica-as.
Ao fundo vê-se uma árvore, ou o ramo de uma árvore, ou o galho de um ramo da árvore, ou a nervura de uma folha, ou.

Um outro corpo, ágil, salta da árvore para o ramo, e do ramo para o galho, e do galho para a folha, e.

No sentido oposto o sol se desloca, mais infinito que o pensamento sobre a árvore.

O semeador avança agora contra o sol, borrando a paisagem, sem o astro, insustentável.

Nos olhos da criança reflete-se o dedo de Vincent, riscando com artifício os cornos delicados de pessegueira. A força do gesto esboça a fragilidade do ramo, enquanto as orelhas de pau vão aos poucos sendo podadas da cabeça de Vincent, como se só lhe restasse disseminar-se, tão semelhante a si mesmo que quase cai para fora da tela dos olhos, desbotado, a pele seca, uma ruga recente na face côvea onde agora caminha o semeador.

O diretor se aproxima: “Corta!”

2 comentários:

  1. por quais universos sombrios, paralelos, atravessam os passos de uma criança. elas descobrem, mas parece que já sabiam. brincam e riem, porém sérias. todos os nossos gestos um dia foram brinquedo, assim cavalgamos séculos e eternidades num instante. a criança é pequena e cabe dentro de um corpo adulto, nele mora, porque um dia já o foi, e, assim, como se a gente sempre soubesse... a memória é um abismo, esfumaçado por rancores e tristezas, mas além, além disso, há algo que é profundamente antigo, no fundo do poço, o pote de ouro, atrás do arco-íris.

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