sábado, 1 de maio de 2010

Morrer

Bão Balalão, Senhor Capitão, tirai este peso do meu coração.
Não é de tristeza, não é de aflição, é só esperança, Senhor Capitão!
A leve esperança, a aérea esperança... Aérea, pois não!
Peso mais pesado não existe não.
Ah, livrai-me dele, Senhor Capitão!
(Manuel Bandeira).



Ninguém sabe ao certo quando é que alguém começa a morrer. O professor Arnoni dizia, do Mário de Andrade, que sua morte teve início no final de uma anedota genial do Oswald, dita certa noite, num bar, e cuja principal personagem era o próprio Mário, ali presente... O amigo sarcástico teria dito que "Mário de Andrade, de costas, era igual a Oscar Wilde", revelando de uma só vez a feiúra e a homossexualidade, além de desenterrar no nosso Mário sabe-se lá que mais, pela comparação - para os delicados recônditos de Mário, nefasta - entre os dois escritores. A partir desse momento, afirma-se, o gênio paulista definhou até a morte. Não sei. Pode ser que o próprio Oswald já estivesse morrendo, naquele momento... A gente mal nasce - diz o poeta - começa a morrer.

Eu não penso aqui nos pródromos românticos, financeiros ou de saúde - em geral ninguém os chega a conhecer, também, por completo - que acabam por precipitar-nos em acidentes fatais, por vezes ininteligíveis. Penso sim é nos pródromos subterrâneos desses pródromos: aquele pesadelo bruto que persegue por dias, tão real que só podia mesmo ter sido sonhado: por que ele não se descola de vez da nossa rotina, deixando o fluxo livre para os acontecimentos reais, se em geral nem mesmo percebemos que ele ainda está ali... E a palavra mal posta, pendendo da boca amiga feito uma fruta podre? Será ela a nossa bala perdida? E a impossibilidade de dar e receber amor? A indiferença paterna...

Tempos atrás chegou aos meus ouvidos, curiosamente por acaso e através de desconhecidos, a história de um meu parente não muito distante, filho de produtores de tangerina em Venda Nova do Imigrante, que, jovem belo, muitíssimo querido pelos amigos e feliz com a namorada, apanhou o violão, seguiu para o paiol, tocou uma última canção brasileira e desfechou um tiro na cabeça. Ponto.

Ontem, indo a pé pela Praia do Canto, notei que as chuvinhas de abril começam a apagar o rastro de sangue que durante semanas acompanhei por uma dezena de quarteirões, no primeiro dia de um vivo vermelho à Frida Kahlo, no terceiro apenas marrom e logo depois quase ocre, da cor do esquecimento.

Quem terá vertido tanta matéria pulsante nas pedras indiferentes daquela calçada centenária? Não importa, talvez. Mas houve momentos em que claramente se recostou a uma árvore, porque o fluxo, saísse de que parte saísse, deve ter lhe enchido as mãos, escasseando um pouco logo depois, quando o passo começa então a ir mais trôpego, com paradas inesperadas, sempre próximo das esquinas - percebe-se por cada novo grande borrão, lançado ainda quente ao vento vindo da orla próxima e agora coagulado em grande mancha na pedra fria.

Penso que os refregos tenham coincidido com o olhar já quase sem esperança na direção de um carro que se aproximava, pensando que pudesse ser um ônibus - ou mesmo uma ambulância. Por outro lado, pode ser que  fizessem mesmo parte ativa de uma fuga, o sangrante em pleno jogo, de dia ou de noite, contra a polícia, os amigos, os inimigos, o amante.

Quem sabe uma mulher tenha simplesmente menstruado em meio ao caminho para o trabalho! É difícil imaginar contudo que andasse por tanto tempo sem buscar abrigo e auxílio... A não ser que fosse uma daquelas babás noturnas que descem dos prédios muito cedo, de madrugadinha, com suas fundas olheiras, vindas de Cariacica ou Serra sede, e que se revezam com uma outra que acaba de chegar de lá também, andando rápido, ombros tesos, com medo de assaltos...

Mas não. Havia nas bordas da pintura sanguínea de cada cerâmica daquelas como que o fantasma de um sacolejar angustiado - e seguramente solitário - de mãos que tentam segurar a alma vermelha e quente entre os dedos, empurrando-a de volta para o peito, ou a cabeça, ou a boca, ou as pernas, ou o sexo, ou os intestinos...

Um comentário:

  1. TERMO

    Termo (anagrama de morte, temor, metro etc.), na Roma antiga associava-se a esta lenda: Júpiter, desejando arranjar lugar no monte Capitolino, para ali possuir o seu termo, não o conseguiu por não poder desalojar dali o deus Termo (COULANGES, 1971, p. 77). Isso sugere o direito perpétuo à propriedade do solo, direito esse inscrito nas ruínas necropolitanas.

    Tai uma anagrafia (saussureana?) inserta, que não diz exatamente o que diria. Mas órbitas e elos paralelos, como música e mágica, tempo e pó ou "[...] as chuvinhas de abril [...] a apagar o rastro de sangue [...]" nas calçadas dos caminhos que se bifurcam tanbém dizem apenas o instante nervoso de um fotograma conceitual. Vale? Vale o prazer do texto.

    Prazer em lê-la, Andréia! Saúde e sucesso!!!

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