terça-feira, 15 de maio de 2012

O livro de Jô (introdução)


Nuvens sobre Brasília. Foto: Andréia Delmaschio.

Quando Jô nos foi apresentada em Brasília, vinda do interior de Minas em busca de trabalho, o que primeiro me chamou à atenção foi o quão explícitas eram, no seu olhar e na expressão geral, as marcas que o sofrimento deixou. O fato de ela não tentar qualquer tipo de disfarce para isso me fez pensar que do futuro também aquela mulher, praticamente da minha idade, não esperava nada - ou quase nada. Ao longo da vida aprendi a duvidar das minhas próprias interpretações de faces e gestos, mas pude confirmar, no convívio com Jô, que, infelizmente, neste caso não estava errada.

Na verdade o que a motivava a estar em Brasília era a necessidade extrema e urgente de uma cirurgia na perna de sua filha Ellen, então com cinco anos e a menor de oito irmãos, sendo, o mais velho de todos, adotivo. A menina era filha de um segundo casamento de Jô, na época em que nos conhecemos ainda vigente. O filho mais velho, que hoje é pastor evangélico, foi adotado por ela quando ainda era solteira, uma mocinha com apenas sete anos mais que o garoto abandonado pelos pais.

A princípio não foi fácil travar um diálogo com ela, porque Jô acudia sempre como quem espera uma ordem, uma reprimenda, uma reclamação ou coisa que o valha. Contudo meu estado de gestante de gêmeos parecia abrir canal para uma comunicação mais efetiva entre o que seriam, à primeira vista, apenas patroa e empregada. Uma grávida não ameaça ninguém.

A casa em que vivíamos em Brasília - como todas as da vizinhança - tinha o quarto de empregada ao lado de fora, com saída pela garagem, ao modo das senzalas. Mas como toda prisão inteligente permite delírios de liberdade, foi lá mesmo que Jô preferiu ficar, alegando autonomia e tranquilidade para fumar, além de, é claro, televisão e banheiro.

Nessa época dormíamos todos muito cedo, especialmente durante a semana. Erlon chegava do Minc às dezoito, Carol retornava do INEI por volta das dezenove e eu passava os dias em casa, trabalhando oito horas diárias na tese de doutorado sobre os romances do Chico Buarque. Jô, terminada sua tarefa, se recolhia, sempre silente, não sem antes fazer o seu passeio fumegante por entre as mangueiras da chácara, seguida de perto por Alma, a vira-latas que adotamos por iniciativa da Carol.

Assim que anoitecia, Alma sumia para dentro de sua casinha, dando sinal de vida apenas pela manhã, já com o sol alto aquecendo o planalto central.

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