quinta-feira, 24 de maio de 2012

Terceira história do livro de Jô

Criança morta. Cândido Portinari.

Algum tempo depois daquela década vivida na miséria, a família parecia ter alcançado uma relativa e quase que natural estabilidade, porque as situações muito difíceis, por si sós e quase que naturalmente, tiram o seu frágil equilíbrio de pequenos picos de menor dificuldade. E há mesmo males que vêm para o bem: o marido, tendo então o corpo corroído pelo álcool, já não se opunha a que Jô trabalhasse fora, como empregada doméstica, nas casas de fazenda próximas dali. O menino mais velho - e único filho homem -, tendo sido sempre menosprezado pelo pai por ser negro e adotivo, achava algum refúgio da ira paterna fazendo pequenos bicos no armazém local.

E era nesse ritmo que todos seguiam, sem reclamar da rotina. As crianças cresciam muito irmanadas entre si e também especialmente vinculadas à mãe. A experiência comum do sofrimento espalha raízes perenes, inarredáveis. Todos frequentavam a escola, o mais velho com especial dedicação e, até onde os conhecimentos da mãe premitiam avaliar, com um domínio muito grande da oralidade e um especial apego à Bíblia (provavelmente o único livro que tinha, na época, à mão).

Por essa época converteram-se todos, à exceção do pai, a uma pequena seita de origem local, em cujo templo, armado no início num casebre alugado no fim da rua poeirenta, por entre os hinos e a coleta do dízimo, escutavam a pregação lenitiva do pastor, cujo tema passava sempre por uma mensagem de otimismo, além, é claro, de admoestações acerca do pecado, da ação do Inimigo e da necessidade crucial de "devolução" do dízimo, que dízimo não se doa à igreja, se "devolve".

Foi então que, numa terça-feira de muita chuva, Jô resolveu que era impossível se deslocar com as oito crianças até o templo, mesmo porque a menina de seis anos começava apenas a se recuperar de uma pneumonia, assim diagnosticada pelo prático do local, que, depois do evento dos antibióticos, havia se convertido numa espécie de estranho familiar, alguém que sabe do drama familiar, do qual participa sem participar, através de bulas, receituários, indicações de doses e dietas.

E, além do mais, era dia de sopa, com carne e macarrão, um luxo que Jô concedia quase que semanalmente à prole, e que todos aguardavam ansiosos desde o dia anterior, alguns chegando mesmo a sonhar, à noite, com o calor fumegante, os pedaços macios da mandioca (sempre ela) e o farelo da carne moída que, no fundo dos pratos, se transformava em algo comparável a pedrinhas de ouro rolando numa bateia.

Naquele dia Jô chegara mais cedo do trabalho, trazendo consigo a cebola e a salsa que a patroa mesma lhe dissera que colhesse no quintal. Passou pela quitanda e comprou ainda um naco de moranga, tomate e vagens.

Quando entrou em casa, a menina mais velha já terminava de picar a mandioca. Todos tinham no rosto um ar de júbilo, prenúncio inequívoco de felicidade. O irmão mais velho estava na rede, emborcado, como sempre, sobre o Antigo Testamento. Sentando-se ao lado da filha, Jô iniciou imediatamente o descasque dos legumes e foram todos, quase que simultaneamente, entoando o cântico que concordavam em ser o mais bonito dos que eram entoados diariamente no pequeno templo.

Súbito, o rapazinho, da rede, deu um grito de espanto: - Mainha, Dassanta caiu! O nome era herança dos tempos de catolicismo.

Dassanta era, de todos, aquela que tinha a saúde mais frágil: não passava um mês sem que fosse acometida de enxaqueca, sinusite ou resfriado. Espirrava e tossia quase todo o tempo. Andava sempre com um lencinho à mão, o que já semelhava um fetiche. Embora nunca tenha sido diagnosticada, tudo indica que sofria de um quadro bastante complexo de alergia. Era dona porém de uma beleza esplendorosa. Seus cabelos e olhos claros como que iluminavam os ambientes a que chegava, e não havia quem não fosse demovido pela força daquela presença.

Beirava então os nove anos e, do nada, enquanto limpava com a vassoura o teto da casa, dobrou-se sobre si mesma, tombando perto de uma caixa de madeira em torno da qual brincavam as irmãs menores.

Acorreram todos. Jô tentava reanimá-la com álcool e pequenos tapas na face pálida, enquanto a irmã mais velha saiu em disparada, a ver se encontrava o farmacêutico, na verdade um prático. Não havia pulso nem respiro. Jô apelava, aos gritos, para todos os santos que lhe restaram na lembrança de quando era católica.

Rapidamente vieram o prático e todos os adultos mais esclarecidos da redondeza, a ver se se podia fazer algo pela saúde da bela menina. Ao primeiro exame do prático, porém, a expresão geral que se disseminou, antes mesmo que precisasse fazer qualquer comentário, era de estarrecimento e completa desesperança. Não havia em Dassanta um fio sequer de vida.

As crianças todas, incontinenti, se agarraram à mãe, que, ao invés de gritar ou desmaiar, paralizou todos os movimentos, feito estátua. Alguns temiam que parasse inclusive de respirar. E assim permaneceu enquanto as vizinhas acorriam, chorando e rezando, algumas mais íntimas já limpando os pezinhos empoeirados da menina, penteando-a, buscando nos velhos caixotes o seu vestidinho de festa com o intuito de deixá-la à altura da sua beleza no último evento de que, sobre a terra, participaria.

Passadas algumas horas e com o velório já bastante adiantado, Jô, como num estalar de dedos, saiu de sua letargia, e alguns julgaram então que tivesse enlouquecido, porque tinha o porte altivo como nunca e trazia no rosto um grande sorriso, firme e desafiador, absurdo para a situação.

Aproximou-se da câmara improvisada no canto da sala, onde jazia a menina, entre velas e flores, pôs a mão por sob a nuca da garota, como se a quisesse acordar de um sono muito profundo, desses que se dormem nas noites frias, depois de muito cansaço, e apenas falou alto e carinhosamente, olhando a criança nos olhos cerrados como se a visse pela primeira vez: - Acorda, minha filha. É mainha que está pedindo. Levanta!

No mesmo instante, como se nada tivesse se passado, a menina abriu os olhos, ergueu a mão direita, apoiando-se no pescoço da mãe e sentou-se sobre a alta mesa, visivelmente assustada com as flores e as velas que lhe tinham posto ao redor.

As crianças menores pulavam de alegria. As pessoas em torno se benziam todas, esconjurando. A Jô que conheci em Brasília, muitos anos depois, era essa mesma que um dia ressuscitou uma filha.










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