domingo, 22 de maio de 2016

Normal (parte 1)


“Mães zelosas, pais corujas, vejam como as águas de repente ficam sujas...” (Gilberto Gil)
As palavras estão à nossa disposição. Ao que parece, podemos nos servir delas ao bel prazer. Algumas vezes chegamos a crer que realizamos plenamente esse direito, como um macaco realiza o seu desejo diante de um cacho de bananas. Algumas palavras atraem feito ímãs, outras nos saltam de dentro como se tivessem nos causado uma indigestão. Acontece que, como as bananas, as palavras têm casca. Parece um exagero dizer que, em prol da vida, é preciso remover a casca das palavras.
Durante esta semana chamou-me à atenção o uso da palavra “normal”, que ouvi três vezes, pronunciada por pessoas diferentes, em diferentes ocasiões.
A primeira foi numa loja. Um homem bastante jovem se aproximou e pediu uma dica sobre que roupa deveria comprar para a filha pequena. Enquanto eu fazia os cálculos divinatórios sobre a numeração, cujo tamanho, no Brasil, sempre esteve em defasagem com relação à idade das crianças reais, o rapaz, talvez para quebrar o silêncio insuportável de vinte segundos, me veio com esta: “Antes era mais fácil comprar, porque menina gostava de princesa, e menino de super-herói, que é o normal!”
Nessas ocasiões vem à tona aquela vontade de argumentar, de dizer que, ainda que fosse ele mesmo quem quisesse variar ou fugir à norma, em todas aquelas centenas de araras à nossa disposição, por mais que lhe parecesse que sim, ele jamais conseguiria fugir à normalidade, porque cada gravura daquelas, cada cor, cada botão, cada sutil diferença nos desenhos das golas, cada detalhe já tinha sido pensado e desenhado sobre uma prancheta, planejado por meses a fio para nos colocar a todos dentro de uma norma, ainda que a intenção fosse justamente nos dar a ideia contrária, a de que somos livres para escolher e de que as possibilidades ao nosso alcance são infinitas.
Claro que enquanto eu olhava as roupinhas à minha frente e pensava sobre isso o homem já tinha mudado de ideia. Quando me voltei para ele, vi que caminhava em direção às prateleiras de acessórios. Mas a última palavra dele ficou comigo: normal. Era o que ele desejava para sua pequena filha: que fosse uma criança normal, com uma vida normal, vestindo roupas normais.
A mim parece triste um tempo em que o desejo se reduza a tão pouco.
Esse foi o primeiro caso.

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