quarta-feira, 29 de abril de 2020

Depressão em dois tempos

Flora me chama para assistir com ela a um clipe em preto e branco de uma jovem cantora irlandesa. A música é depressiva, na letra e no tom, as notas todas decaem no fim das frases musicais.

Sobre um fundo que é apenas um campo nevado, a moça macérrima, de cabelos desalinhados, veste uma camisa enorme que roubou do padrasto e traz uma corda amarrada no pescoço. Olhos cravados no nada, ela mal sustenta sua coreografia monótona, balançando os braços finos de um lado para o outro. Semelha uma boneca de lata que apanhou de marreta e teve as pernas fincadas na neve.

Flora me traduz as gírias da letra, analisa o look da cantora e ri do modo como me impressiona a corda amarrada no pescoço.

Depois discorda de mim, afirmando que a música não é nem um pouco depressiva.

Insisto que nunca ouvi nada mais depressivo em toda a minha vida.

- E ela tem uma corda amarrada no pescoço!

Expandindo um pouco mais as vias abertas para o diálogo, puxo pela memória do que fui, do que ouvi e vivi quando tinha a sua idade. Exploro o arquivo dos mais depressivos que conheço, depressão que, assim como ela, assisti e apreciei apenas como a uma peça de teatro surreal.

Apresento-lhe então o Morrissey do tempo do The Smiths e uma coisa ou outra do Radiohead. Ela assiste a tudo muito atenta, e no final dá o seu veredito:

- Nossa, mãe! Você acha isso aí depressivo, mesmo? Para mim isso aí é praticamente motivacional!

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