sábado, 5 de fevereiro de 2011

Das coisas duradouras III

Às vezes porém exagero e reluto debilmente em dar durabilidade ao que já nasceu finito. Só que, no caso de que me lembro agora, a infinitude resultou de uma empreitada involuntária.

Aos quinze anos, arriscando-me pela culinária mais rústica, que até hoje me atrai, eu quis reinventar o chocolate. Colhi no quintal uma cesta de cacau e, sem seguir receita (como ainda faço; daí a idéia de reinvenção), torrei, descasquei, moí e dei procedimento à fabricação do chocolate mais selvagem de que já se teve notícia: amargo no ponto certo e com um sabor inédito: sabor de semente de cacau, aquele que, acredito, tinha de ser o gosto do chocolate comercializado. A experiência resultou numa massa homogênea que, ao ser diluída no leite condensado (há leites condensados sem açúcar), revelava seu sabor deliciosamente forte, ao mesmo tempo quente e suave.

Acontece que me excedi na quantidade, e os cinco quilos de chocolate sólido, pronto para diluição, duraram quinze longos anos. Sim, isso mesmo: quinze anos numa gaveta do freezer. Lembro bem porque, quando completei vinte e dois, saí de casa para lecionar no interior, e minha mãe, com medo de perder a preciosa matéria-prima, congelou-a em meio a peixes e aves.

Sempre que retornava a casa, nos feriados, eu tentava derreter um pouco da massa para fazer bombons, mas o tempo necessário ao descongelamento era sempre maior que minha estadia na capital, e lá se ia o enorme tijolo negro (agora sem cheiro e esbranquiçado por fora) de volta para o gelo.

Mesmo numa vez em que avisei a mamãe de minha chegada, pedindo que retirasse o chocolate previamente do congelador, de nada adiantou, porque, mesmo descongelado, ele parecia ter se transformado em concreto, semelhava uma barra de duro metal. Era impossível abordá-lo com faca elétrica ou o que fosse. E também não cabia no forno de microondas.

O desejo de meus irmãos pela antiga iguaria já ia longe e ela virara uma espécie de lenda no seio da família.

Nos almoços de domingo, durante as sobremesas de sorvete ou gelatina, alguém sempre se lembrava - com nostalgia ou sarcasmo - daquele tempo, "há cinco anos" (mais adiante há dez, doze anos, faziam questão de frisar a data), quando tínhamos os deliciosos bombons amargos, recheados com uvas, morangos, amoras e pêssegos...

O irônico irmão mais velho apelidou a iguaria de capanema; deve ter lhe soado como uma palavra esquisita o suficiente para nomear a sobremesa estranhamente inabordável. Chegou mesmo a escrever o nome na etiqueta da sacola que a envolvia, em letras garrafais, e numa das sessões de descongelamento do freezer aproveitou para etiquetá-lo novamente, com o dizer: "Respeite o sagrado. Não toque o supremo e perpétuo manjar dos deuses!"

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