quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Triste circo


Há um episódio dos enjoados Backyardigans chamado "Os melhores palhaços do mundo", em que três palhaços - Austin, Pablo e Uníqua - tentam, com suas palhaçadas, convencer um diretor de circo  - Taironi - a contratá-los, ouvindo sempre em resposta à sua proposição o termo palhaços como xingamento. O outro diz odiar palhaços e afirma que o seu circo jamais os terá nos seus espetáculos.

Eu, que em silente contrariedade assisto, toda vez que minha presença é solicitada, a algumas horas semanais dos bichinhos dançarinos, por vezes fechando os olhos para lhes sorver o que há de melhor, que são as paródias de clássicos de variados gêneros musicais, forçosamente, desta vez faço eco ao Taironi e confesso que também detesto palhaços. E, mais que isso: decididamente, eu detesto o circo. E os que me conhecem sabem o quanto me pesa assumir assim, rasgadamente, um preconceito. Portanto, vamos às esperadas explicações:

Detesto palhaço, malabarista, mágico e, principalmente, abomino ver animais enjaulados. "Então vai continuar solteira", retrucou um amigo querido, referindo alguma anedota infame sobre o adorável casamento.

Um outro, entusiasta de palhaços, acrescenta, reforçando a recomendação para que eu leve as crianças até a lona instalada perto de sua casa: "Pois fique tranquila que não há mais animais!".

Claro! Demorou, mas agora proibiram a exploração da dor animal: só ao humano é permitido exibir a sua miséria pelo valor de cinco reais a cabeça. Curiosamente, os de até cinco anos não pagam.

Quando criança, frequentei os circos mais pobres entre os circos pobres. Era tudo tão miserável que não dava pena; dava medo!

Depois, já adulta, achei que devia tentar superar o preconceito da infância e conduzir as minhas sobrinhas a um bom circo para apreciar o tipo de espetáculo que tanta gente ama. E lá fomos nós assistir a um show de erros e, ao final, ao diretor, conhecidíssimo ator da rede globo, desfeiteando seus funcionários deprimidos em frente a todos, crianças e adultos - e com o microfone aberto.

O circo sempre me pareceu muito, muito triste. O lugar mesmo de toda a tristeza - provavelmente ressaltada pelo contraste com a tentativa de parecer alegre para... alegrar!

Na sequência me lembro de uma telenovela exibida no horário das seis, quando eu era ainda bem menina, em cujas cenas creio jamais de ter visto um palhaço (é bem possível que não tenha assistido a um capítulo sequer), mas de cuja canção de abertura nunca me esqueci, de tanto que me tocou com sua beleza nostálgica, nas vozes que, soube depois, eram do delicioso Quarteto em Cy, cujos acordes sempre embalaram, para mim, momentos importantes.

A letra dizia assim: "Vai, vai, vai começar a brincadeira/ tem charanga tocando a noite inteira/ vem, vem, vem ver um circo de verdade/ tem, tem, tem picadeiro e qualidade". E a parte que eu achava mais bonita: "Faço versos pra um palhaço/ que na vida já foi tudo/ foi soldado, seresteiro, carpinteiro, vagabundo/ Sem juiz e sem juízo/ fez feliz a todo mundo/ Mas no fundo não sabia/ que em seu rosto coloria/ todo o encanto do sorriso/ que seu povo não sorria". Nessa época eu não sabia sequer que vivia sob uma ditadura. E nem imaginava o que fosse uma metáfora. Mas a poesia da letra e a melodia me tocavam a alma.

Depois veio um palhaço representado por Jerry Lewis e também um outro filme (pode ser que seja tudo uma coisa só, porque a memória é confusa multimídia) em que um palhaço fazia de tudo para que uma menina na platéia sorrisse.

Ela era bonita, vinha acompanhada de um adulto e usava cadeira de rodas. Nenhuma das peripécias do palhaço, que já se dirigia inequivocamente a ela, era capaz de arrancar-lhe um sorriso - jamais. Até que um dia (creio que ela frequentava cotidianamente o circo), tendo desistido já da ingrata tarefa, o palhaço, sinceramente, chora, triste com o próprio desempenho e ao mesmo tempo penalizado com a tristeza incontornável da garota. E aí então ela cai na gargalhada, gostosamente.

Há menos de uma década tive um inesquecível contato digamos... de terceiro grau... com palhaços, rs. (E esse narrarei à parte, porque tiraria a leveza que pretendo para este texto).

Mas a minha última experiência com o circo, há algumas semanas, se não mudou em nada as minhas predileções, ao menos me fez entender com simpatia aquilo que, quando criança, me dava medo, e cujos resultados nos próprios espetáculos, mais tarde, qualifiquei como sendo de péssimo gosto:

Em geral trabalhando em família (ou em famílias) e deslocando-se de uma cidade para outra e de um Estado para outro atrás de público e de algum eventual patrocínio, cada integrante das trupes dos circos mais modestos, ao contrário do que tudo no espetáculo quer nos fazer crer, não descobre em si um dom que, estando em ambiente propício, desenvolve. Muito pelo contrário: é provável mesmo que muitos já nasçam com suas "aptidões" predeterminadas pela necessidade. Precisamos de uma dançarina... A filha do homem-sapo assume a função. Um dos palhaços está doente... O antigo domador é transferido àquele cargo, automaticamente.

Existe, num circo médio, um determinado número de papéis sem os quais não é possível que exista o espetáculo. O rol, além de mágicos, palhaços, malabaristas, trapezistas e equilibristas, inclui dançarinas, ajudantes de palco, contra-regras, faxineiras, maquiadores, vendedores, bilheteiros e mestre-de-cerimônia, entre outros.

Mas, voltando ao triste  circo de Jardim Camburi... Provavelmente não escolhi uma boa noite para apresentá-lo às crianças: estavam ambas muito cansadas: excepcionalmente não tinham dormido durante o dia.

Fomos recebidos no pátio por um rapaz alto e moreno, muito bonito em seu fraque e com uma cartola tão inacreditavelmente lustosa que o espetáculo, para mim, começou (e terminou) ali.

Em seguida passamos pelo incontornável vendedor de amendoins, que recolhe as moedas com uma mão, enquanto com a outra enrola os doces em pequenos cones de papel colorido. Dono de um sotaque argentino já agonizante e mantido a duras penas, apesar de décadas de esburacadas estradas brasileiras, é ele mesmo quem adentra o palco, o espetáculo já pela metade, virado em mágico, o "incrível Michael Lee, direto dos cassinos de Las Vegas"...

para Jardim Camburi.

Ele entra acompanhado de uma senhora de meia idade com impactante maquiagem, vestida de bonita no seu maiô roxo.

Das coisas que mais me comovem, no circo, uma delas é o antissorriso que essas auxiliares exibem: falso, difícil, recrudescido pela repetição cotidiana e sem sentido de um espetáculo tão incrivelmente sem graça que elas nem mesmo lhe prestam atenção, apenas realizando os gestos mecânicos que cada ocasião já longamente decorada lhes solicita. E "dançam" como um bailarino monótono que seguisse apenas a marcação interna do ritmo, completamente insensível aos detalhes da canção e mesmo à presença paradoxalmente incômoda do público.

Num dado momento, Francisco, todo o tempo profundamente envolvido com o espetáculo, se incomodou com a surda coadjuvância da mulher e me perguntou quem era ela, se ela também era mágica ou se era uma bruxa. Para não mentir, respondi que a mim parecia uma bruxa, mas que ele não devia temer as bruxas que dançam sempre num só lugar, sem se mover.

Eu mesma reconheço minha inaptidão para acompanhar com um mínimo de interesse cenas de sumiço e reaparição de objetos e pequenos animais. Não gostaria nunca que o pobre mágico, por meio de um lance qualquer de infeliz prestidigitação, visse meu rosto indiferente em meio a tantos aplausos e belos sorrisos de crianças. De certo modo, sou o contraponto exato - e lógico - do espetáculo que me apresentam, a terrível audiência refratária. E afirmo com confiança que limpei de mim, o quanto pude, o meu preconceito, antes de me sentar com os pequenos nas primeiras cadeiras, bem em frente ao centro do picadeiro.

... Mas é que não há jeito de que não me comova a rapidez desesperada com que o belo recepcionista se travestiu de ciclista para se exibir já na primeira parte do espetáculo... E, para rir, para que exista o humor, é preciso que não se esteja comovido. Não somos capazes de gargalhar da queda do palhaço de bunda no chão se sabemos que ele sente dor de verdade. É condição básica para a existência desse tipo de riso a suspensão momentânea da solidariedade...

O que em criança me fazia querer chorar, ainda me provoca comoção, só que agora descobri que é, ao menos para mim, justamente esta a beleza do circo: aquilo que não se pode esconder, o que nenhuma maquiagem, falso sorriso ou travestimento disfarçará: a tristeza inerente ao humano, as rugas, as celulites, a dor, o sotaque, o olhar, a dança forçada, a própria necessidade de um constante pôr e tirar de máscaras...

Tendo apenas saído do picadeiro sob fortes aplausos, a "espetacular mulher de borracha" tem de lavar o rosto num segundo para, em seguida, assumir o papel de mera coadjuvante no fundo do palco para o espetáculo do engolidor de fogo.

Os palhaços fazem a iluminação para os "maravilhosos trapezistas".

O "espetacular homem voador", cujo sorriso andrógino me forneceu a melhor parte, a verdadeira magia do espetáculo, nos intervalos limpa o palco com as mãos.

2 comentários:

  1. se a esse texto vc pretendeu dar alguma leveza, imagina quando vc narrar esse contato, diria, de terceiro grau com palhaços... só te peço para codificar os nomes, please...kkkkkkk

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