quinta-feira, 10 de março de 2011

Da memória

  
Frida Kahlo: Moisés, nacimiento del héroe.


Eu conheço várias pessoas que repetem sempre a mesma história, a mesma anedota, e especialmente aquele caso da sua infância, adolescência ou juventude que lhes parece picante ou enobrecedor.

Confesso que quando comecei a percebê-lo, era uma atitude que me causava profundo incômodo e impaciência. E por anos convivi com alguém que me oferecia sempre a mesma pérola gasta e a quem, por consideração, no início, e depois por curiosidade científica, fui deixando que assim fizesse, enquanto  eu, de cá, observava e concluía...

Ao longo de alguns anos eu o ouvi contar uma dúzia de vezes (não é uma hipérbole, acreditem-me) a mesma piada. E arrependi-me profundamente de, num dia qualquer de tédio, tê-lo alertado de que já a tinha contado antes. Deveria ter evitado a interferência, deixando que prosseguisse para ver até que número chegaria a repetição, já então bastante enfadonha para mim. Por vezes eu duvidava de que não se lembrasse de já ter me contado aquela história, afinal, podia ser que fizesse para me chatear, mas, diante da sua surpresa quando eu o assaltava oferecendo-lhe em resumo o conhecido fim da história, concluí que se tratava mesmo de uma estranha armadilha que aquela memória lhe armava.

Eu achava que aquilo fosse o resultado óbvio de uma falha mnemônica, um sinal natural de envelhecimento. Apenas quando percebi que o tal vício da repetição começava a se dar também comigo é que pude notar: não se trata de um processo meramente endógeno. Obviamente nada no cérebro humano funciona pura ou separadamente do contexto, da cultura, da história pessoal e das outras histórias.

Com o tempo pude ver que o mais provável não é que o envelhecimento e uma suposta falência da memória nos faça esquecer o que dissemos tempos atrás e, assim, repeti-lo infinitamente. Mesmo porque as pessoas em quem comecei a notar o fenômeno não davam sinais de decrepitude em nenhuma outra área de expressão. No entanto todas elas tinham um traço em comum: eram colegas da minha geração, e que atualmente dedicavam o seu tempo quase que integralmente à vida familiar e/ou ao trabalho. Todas elas tinham uma profissão e/ou um cotidiano que demandava pouca inventividade, todas se declaravam infelizes no trabalho e/ou entediadas no casamento. Acontecia também com aquelas que, em geral adaptadas à própria rotina, realizavam tarefas notadamente repetitivas e com resultados previsíveis, pouco desafiadoras.

Passei a última década inteira prestando atenção a esse fato e notei que escapam a ele pessoas da mesma idade que os demais, mas que têm como hobbie a escrita criativa, a música, a pintura e o artesanato, e aqueles que lidam diretamente com gente, especialmente os que lecionam.

O conhecido a que se referi no início, por exemplo, narrou-me com detalhes, não menos de três vezes em um ano, e com pouquíssima variação vocabular, um evento romântico da sua juventude no qual tinha sido preterido em favor de um felino de estimação.

Uma conhecida chegou a me apresentar duas vezes, em minha própria casa, o seu marido.

O que me surpreende, e que só posso formular a partir do meu próprio trabalho de memória, é que, ao iniciar o diálogo ou a narrativa, nenhum deles de repente de surpreenda auditivamente, ao menos, ouvindo (no caso, de si mesmo) uma frase que ouviu, exatamente igual, há tão pouco tempo... Como quando reconhecemos numa canção o verso retirado de um poema.

A conclusão a que chego, portanto, é a de que não se trata de uma causa fisiológica ou algo do gênero. Precisando verdadeiramente falar, não podendo abrir mão dessa condição de emitente, a pessoa que voluntária ou involuntariamente deixou de acrescentar a sua vivência experiências um pouco mais longínquas do seu estrito cotidiano (ainda que elas sejam conseguidas por meio da literatura ou do cinema, por exemplo) sentirá a necessidade de, nos encontros interpessoais, algo contar. Daí que, como num jogo de truco, o sistema mnemônico gire sua roleta e busque o mais interessante que haja à mão para que possa ser dito. Logicamente, se não se renovou a nutrição de experiências (viagens, paixões, amizades etc), a salvação será buscadsa no último feixe de fala que conseguiu atrair a atenção dos ouvintes, que comoveu, surpreendeu ou, algum dia, fez alguém sorrir...

É triste. É óbvio. E pode ser que seja, talvez, o que ocorre com grande parte dos ex-escritores criativos em crise de escrita.

De modo geral, pode ser um alerta em prol de um cotidiano menos entorpecente.

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