terça-feira, 29 de março de 2011

Vade retro!

Tenho saudades de quando se podia conversar sobre alguns temas pelo menos com os católicos, ditos então mais "abertos" que os religiosos evangélicos.

Quando comecei silentemente, sem que eu mesma me desse conta, a preferir empregadas que não fossem crentes, as católicas também começaram a ver o "inimigo" em tudo o que é canto e a chamar de bênção mesmo as desgraças que lhes aconteciam. Além de se assustarem com estatuetas africanas e, vez ou outra, com a voz do Dorival Caymmi...  "- Por que a senhora pendura na sala um quadro com uma moça tão feia, com um nariz enorme e essa cara de macumbeira!?". Fui olhar bem: a modelo do tal quadro poderia ter sido ela própria, tamanha a semelhança entre os traços! Arre! Vade retro!

Eu, que em minhas pregações (rs) proponho há tempos a solidariedade, também defendo o direito de escolha. Não dá é pra ser indiferente a pessoas que frequentam cotidianamente a minha casa; nem pra ficar ouvindo (e vendo) com cara de cordeiro a velha fábrica gospel gritando seus chavões antimetafóricos. 

Desde então prefiro as espíritas, com seus contos de fadas ensossos. Eu também faço os meus, embora não creia neles, e pronto: ficamos elas por elas. Essas ao menos reconhecem algum território para além do próprio umbigo.

Quando eu era criança, meus coleguinhas eram, muitos deles, encapetados. E uma bênção não era tudo e qualquer coisa; era algo raro, presente recebido diretamente das mãos de Deus. Hoje, até um pum que soltam é considerado uma bênção. Inimigo era alguém que não gostava de nós, ou de quem não gostávamos, e que nos prejudicava. Esses termos, entre tantos outros, podiam ser usados sem a ditadura da significação. Agora, se reclamamos que um menino é encapetado, chamamos o próprio Inimigo, e com maiúscula. "Não diga isso, irmã. Esse menino é uma bênção!".

Experimente porém dever dinheiro a um desses irmãos e logo ficará claro o que é que realmente importa para eles. No adesivo que ele colou no carro está escrito em letras gigantes: "Tire o olho grande que eu ganhei de Deus". Orgulho, ganância e ostentação já não são pecado - uma pena! E o mau olhado, que era coisa de católico, herdada dos orixás, faz parte agora do seu vocabulário invocatório.

Pronto! Basta o uso do termo africano, aqui, para me condenar ao fogo do Inferno. A menos que eu comece a dar dez por cento do meu salário para um templo monumental ali na reta da Penha, com estética de motel e dimensões de hipermercado, e tome um banho de descarrego para me livrar dos encostos resultantes dos despachos (todos termos que até há pouco só eram usados na umbanda e no candomblé, odiados ambos pelos evangélicos), beba a água do rio Nilo que os pastores trazem direto do Morro da Fonte Grande, participe da bênção dos duzentos, compre uma fronha abençoada e entre no templo com uma meia de cinco reais que vendem na porta.

3 comentários:

  1. Pior é que, mesmo subnutridos, muitos religiosos se alimentam das feias metáforas lançadas por padres e pastores. Já que não existe religião sem metáforas, podíamos inventar umas mais bonitas, em que todos pudessem livremente participar, isto é, contar seu arremedo de história. Afinal, os primeiros profetas são na realidade contadores de histórias.

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  2. Nunca tinha pensado sobre esse assunto desse modo.
    Me abriu horizontes.

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  3. É muito bom saber que você está lendo os meus textos, Plínio. E é ainda melhor saber que este lhe foi útil, de algum modo. Você, que também escreve, entende bem a importância que tem, para quem publica, uma resposta como esta sua. Grande abraço!

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