sexta-feira, 28 de outubro de 2016

A fenda sexista no coração da infância



Algumas vezes eu chego à escola mais cedo, para apanhar as crianças, e posso ver a turma subindo de volta para a sala de aula, retornando da educação física ou da biblioteca.


Entedia vê-las seguir separadas em duas filas indianas que, na altura do terceiro ano escolar, depois de quase meia vida de treinamento, já formam espontaneamente, ao se deslocarem de um ambiente para outro, como imagino que seja a rotina num colégio militar.


Para além de entediar, revolta ver que as meninas seguem em uma fila, e os meninos em outra. Olhando-os assim separados, eu me pergunto se existe alguma justificativa razoável para afastar meninos de meninas desde a mais tenra idade.


Será que, se perguntar à professora, à pedagoga, à coordenadora ou ao diretor da escola qual a razão da separação, algum deles saberá responder com um argumento para além do da mera organização do deslocamento pelo espaço? E, se assim for, já não está suficientemente provado que a segregação, ao invés de prevenir, antes reforça o desejo de perverter? Não seria organização suficiente se as crianças andassem em filas, mas sem a separação por gênero? Saberão esses gestores dizer por que promovem essa fenda sexista no coração da infância? Suponho que não haja uma resposta clara e convincente.


Creio mesmo que fazem isso com a maior naturalidade. E um problema que se naturalizou e arraigou como hábito é o pior dos problemas. É algo cuja solução terá de passar primeiro por uma tomada de consciência da sua existência, por ser óbvio para quem olha de fora, porém invisível como o ar para aquele que o respira. Com essa mesma naturalidade perversa se cometem, em sociedade, tantos outros atos cuja razão se desconhece, cujos objetivos simplesmente não existem. Por que é então que se faz algo que não tem um porquê? Não se sabe, se faz porque sempre se fez. Porque sempre, antes, foi assim.


E é justo daí que surge a necessidade - diria mesmo a urgência - de se tocar nesse ponto, do sexismo nas escolas de ensino fundamental. Se não cuidarmos disso nesse momento da socialização, de nada adiantará discursarmos, posteriormente, contra o machismo, o preconceito contra a mulher, contra a cultura do estupro e o feminicídio, problemas graves e gritantes em sociedades como a brasileira de 2016. Se o problema não é notado e se não se toca no assunto justo nos espaços onde se tem a possibilidade, tanto quanto a responsabilidade de tocar nele, que é o ambiente educacional, então não haverá saída. Afinal se trata, de fato, de um ambiente educacional? Ou de um mero lugar de reprodução de ideologias e comportamentos? No caso, ideologias inconscientemente interiorizadas e comportamentos extremamente discriminatórios.


Creio que, para as crianças que ali estão, seria talvez menos nefasto separá-las por peso ou altura. Propor uma fila de distraídos e outra de hiperativos. A comparação absurda que estabeleço pretende alertar para essa outra separação, também absurda, das filas de gêneros, que de algum modo acompanhará e guiará o comportamento dessas pessoas por todos os outros ambientes, vida afora.


É preciso insistir num ponto: a discriminação que dispensa explicações é a pior que pode haver, é a mais sutil e penetrante, e, ao mesmo tempo, a mais difícil de contestar.


Por que as escolas não separam, por exemplo, por etnia (embora nessa escola, uma escola particular brasileira, quase não haja negros; praticamente só haveria uma fila, ou seja, a separação foi feita antes)? Por que a minha pergunta é tão chocante hoje, se sabemos que em outros tempos e lugares (nos EUA de 50 anos atrás, por exemplo) a segregação era a regra? Por que a mera colocação da questão soa hoje criminosa? Porque os gestores educacionais são todos plenamente conscientes dos direitos humanos e contrários a todo tipo de discriminação? Não. Tanto é que a segregação prévia, de base econômica, resultante do nosso histórico de país escravagista, parece não incomodar em demasia. A resposta certa é: a pergunta assustaria hoje porque, apesar de o Brasil ser um país excludente e que repete cotidianamente, mais de 500 anos depois, a história da colônia escravocrata, ao menos no campo discursivo, há décadas já se acusa a necessidade de não discriminar o negro e mesmo de enquadrar o racismo como crime. Ou seja, somente da luta cotidiana e do clamor da nossa revolta diante do que parece o mais óbvio e natural é que pode advir uma sociedade verdadeiramente igualitária.



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