quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Cemitério familiar

Gustav Klimt: Danae.


Recebíamos os mortos em nossa própria casa, trazidos pelos seus parentes próximos. Uns vinham empalhados e devidamente encolhidos, como o boneco de papelão de uns poucos centímetros, de um índio americano, que pendurei provisoriamente na fechadura, enquanto recebia uma remessa já bastante condensada, recém-chegada de uma chacina na casa de detenção. Toda a família trabalhava igualmente no recebimento e na organização dos cadáveres. Orgulhávamo-nos de podermos trabalhar juntos e em nossa própria casa, que transformamos num cemitério ultramoderno. Alguns mortos chegavam em urnas minúsculas e outros já em DVDs, que distribuíamos por ordem alfabética nas prateleiras. Os DVDs eram minha forma preferida para armazenamento: ocupavam pouco espaço e não pesavam quase nada.

Eu havia acabado de receber as vítimas do atentado e arrumava-as nas estantes quando fui surpreendida com o modo antiquado como me trouxeram um novo defunto, dificultando a locomoção: numa caixa grande, feita de ripas de madeira, dessas em que se transportam legumes: pensei em como seria incômodo lidar com aquilo, mas sabia que era norma não rejeitarmos nenhum cadáver.

Aproximei-me, então, calculando como faria, e vi que se tratava de uma mulher jovem, esquartejada, com alguns membros separados do corpo. Olhei bem e notei que tinha a minha estatura. Também o tom da pele se assemelhava ao meu - só que estava mais branca, considerei, porque tinha perdido muito sangue. Quando virei o rosto para vê-lo melhor, percebi assustada que era eu mesma, com um batom vermelho que nunca usei. As formas exalavam sensualidade.


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