quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Encontro com Chico Buarque (3/6) ou Romance

Renoir: Guarda-chuvas (detalhe).

Não é bem um rosto, é mais a identidade de um rosto, que difere do rosto verdadeiro quanto mais você conhece a pessoa. (Chico Buarque)


Passaram-se vinte minutos, uma chuva fina começou a cair lá fora, a espera já me angustiava quando ele chegou com os cabelos molhados, se sacudindo feito um adolescente, parecia que entrava em casa. Cumprimentou o garçom e veio direto à nossa mesa. Nessa hora o sem jeito dele com as mãos me levou o resto da adrenalina, eu queria deixar o Chico Buarque à vontade na minha presença. Cúmplice, por solidariedade, reajo sempre assim diante dos mais tímidos que eu, correndo o risco de parecer à vontade demais, especialmente quando bebo. Cruzou a mesa, me deu os dois beijinhos não muito comuns no Rio (perfume gostoso!), sentou-se e foi falando do tempo, tema indispensável para se iniciar um diálogo, mesmo com o Chico Buarque. Por alguns instantes, enquanto ele falava sem saber muito bem como me olhar ainda, receei cair na armadilha mitológica e emudecer, depois fui alcançando a difícil descontração, trazendo de volta a anedota que ele fizera ao telefone, para deixá-lo a par de que eu não era jornalista e que não me interessavam os seus romances com a revista Veja. Ele achou graça no novo trocadilho, estava sem dúvida bem-humorado. Chamou o garçom, me ofereceu uma taça de vinho. Tive medo de que me pedisse alguma sugestão, que esses detalhes sempre me constrangem, mas a marca parecia acertada entre eles desde sempre. Seguimos rápido para algumas futilidades. Ele queria saber quem eu era, o que estudava, por que o interesse pelos seus livros. Fui dando as informações oficiais: evitei dizer Semiologia, disse Federal do Rio... E depois comecei a falar que me interessava especialmente pela função autoral no romance. Ele abriu um olhão surpreso, quis saber mais detalhes e eu expliquei que foi Budapeste que trouxe a idéia à tona para mim e que portanto quem pensou a coisa primeiro foi ele, o ficcionista. Não resisti. Perguntei se ele conhecia a meia-polêmica Barthes-Foucault acerca do autor e ele disse que não, mas de modo algum me convenceu. Tenho certeza de que estava mentindo. Perguntou se se tratava dos enrolos de direitos autorais e eu disse que sim, mas que jamais abordaria a questão do ponto de vista jurídico, por exemplo, que não fazia parte do meu métier, me importava o texto, em especial o seu texto e as personagens nele envolvidas, entre elas ele próprio, enquanto personagem-autor. Também não desenvolvi questões teóricas, que com certeza não lhe interessavam. O olhar dele se ampliava à medida que eu ia falando. Parecia nunca ter conversado com ninguém acerca dos seus escritos, imagine! Lembrei a cara de aprendiz admirado que ele faz quando canta em dueto, seja com o Dorival Caymmi ou com a Paula Toller. Enfim, o homem é um delicado. Pensei que talvez estivesse me achando uma dessas cricríticas chatas, mas à medida que a marca do vinho ficava mais translúcida na minha taça fui percebendo que não. Ele estava de fato interessado no assunto, que acompanhava concentradíssimo, desviando o olhar apenas para sorver mais um gole, de vez em quando. Nunca tive tão bom ouvinte para as questões ainda em gérmen da minha tese e, embora para mim parecesse que eu só dizia coisas óbvias ao autor do texto, ele, volta e meia, se surpreendia em silêncio com algumas colocações - percebi nos seus olhos e no sorriso inteligente que esboçava enquanto eu falava. Fui notando nele a contradição: achou ótimo que eu quisesse discutir as redes mitológicas que desde o início da carreira como compositor se armaram em torno de sua figura e de seu nome. Ele que, muitas vezes, se esforçara por desfazê-las, reforçando-as ainda mais, nesse esforço, tendo tido sempre consciência do paradoxo e, por que não dizer, valendo-se muito bem dele. E ali estávamos nós: o mito, que se construiu no ato de desconstruir-se, e eu, que o reconstruo, na pretensão de desconstruí-lo. Ou o vinho estava muito bom ou ele sorvia as palavras com gosto, porque chegou a propor um brinde, e acho que já chegávamos ao fim de uma garrafa. Acrescentou que a minha tese estava lhe dando um imenso prazer. Tirei o chapéu e coloquei-o na cadeira ao lado, para contrabalançar o calor do vinho.

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