sábado, 5 de novembro de 2011

Encontro com Chico Buarque (5/6) ou Carioca

Guto Holanda: Rio de Janeiro.




Mas um homem sem compromisso, com uma mala na mão, está comprometido com o destino da mala. (Chico Buarque)


Porém a proposta não veio e eu começava a me sentir meio desamparada no Rio de Janeiro, a idéia de ter que voltar para o hotel precário no Catete, depois de planejar dormir enfim em casa, as roupas limpas se esgotando, no último dia do semestre. Sempre que terminavam as aulas no Rio, mesmo sabendo que retornaria no mesmo dia, se instalava em mim uma nostalgia que eu nunca soube ao certo se era ainda de Vitória ou se já era do próprio Rio, que aquela cidade, com seus deleites e horrores, penetra sutil e demorada, porém inexoravelmente. A bolsa pesada de apostilas, a rodoviária assombrosa, a viagem noturna de ônibus pela frente, a chegada a Vitória pela madrugada, com a noite de sono perdida, o dia seguinte também perdido na cama, recuperando o irrecuperável. Nuvenzinhas negras começaram a baixar e o meu célebre companheiro, com a perspicácia que nem mesmo toda a timidez do mundo conseguiria apagar da sua expressão, pareceu ler cada um dos meus pensamentos. Fiz na hora a pausa clássica que anuncia as decisões peremptórias, tomei um gole d’água e iniciei as despedidas. Ele se ofereceu para me acompanhar até o táxi. Aguardamos alguns minutos pela nota do restaurante, cujo valor sugeri que dividíssemos, mas ele se opôs e disse que da próxima vez eu poderia convidá-lo. Saímos em silêncio. Apenas o garçom: “Boa noite, Chico! Boa noite, senhora!”. Lá fora persistia o calorzinho que as chuvas finas só fazem redobrar. Nenhum dos dois sabia ao certo onde ficava o ponto de táxi. Agradou-me perceber tamanha distração em alguém que conhece bem o lugar. A minha ausência de senso de direção sempre se felicita com essas fraquezas alheias. Logo depois vários amarelinhos passaram, seguidamente, ora lotados, ora em disparada, impossível abordá-los em meio ao fluxo intenso daquela noite que para outros apenas se iniciava. Parecíamos dois estrangeiros, com dificuldades para erguer a mão com atitude ou fazer a cara decidida de quem exige uma corrida. Fomos tão inaptos a parar um táxi quanto resolutos para decidir que daquele mato não sairia coelho, podíamos desistir. Não sem um certo constrangimento, ele disse que me levaria até o hotel, e eu aceitei, depois de algum protesto; acrescentei que não gostaria de atrasá-lo mais etc. Imaginei que o Chico Buarque tivesse um motorista esperando ali perto, mas descobri que ele mesmo é que dirigia o carro azul-marinho parado na rua que fica por detrás do restaurante. Abriu-me a porta. Entrei. De dentro, aproveitei para enquadrá-lo nos vidros do carro enquanto ele o circundava para entrar, e assim ele me parecia incrivelmente mais familiar, acostumada que estou à distância das telas de tevê e das capas de disco. Pareceu-me um pouco preocupado, talvez com o movimento quase imperceptível de três rapazes no fim da rua meio deserta. Seguimos em direção ao Catete e ele ia me apontando algumas praças e monumentos já meus conhecidos, mas dava indicações que fugiam totalmente ao senso comum da ciceronagem, e mesmo da lógica, dizendo coisas como - apontando o Teatro Municipal: naquela esquina ali me recostei um dia para fumar; e sobre a Praça Mauá: nesse ponto vi o homem mais feminino que se pode imaginar; tão feminino que, na verdade, era uma mulher. Era belíssimo vê-lo à vontade, fazendo brincadeiras pueris. E que humor! Emendava, uma na outra, anedotas que a mim pareciam novinhas, partindo das coisas mais simples que dizíamos. Vendo-o ali, o olhar absorto cortado pelas luzes da cidade, os dedos claros contrastando com o couro negro do volante, tive de me render em silêncio a parte da mitologia que cerca a sua figura e percebi que a minha preocupação com isso já se tornava obsessiva. Prometi a mim mesma salvar a tese dela – da obsessão. Perguntei sobre o ludopédio, o jogo que ele criara para a Grow no final da década de sessenta e que, dizem, não foi sucesso de vendas por exigir dos jogadores um raciocínio muito acurado. Disse que era uma brincadeira que inventou para jogar sozinho e que no começo pensava naquilo como uma homenagem póstuma ao filho que nunca teve e a quem gostaria de levar ao Maracanã para ver as finais do Fla-Flu, mas depois um amigo sugeriu que vendesse a patente para ganhar algum dinheiro, e aí a coisa não deu certo. Diferentemente da maioria dos que dirigem no Rio, guiava sempre sem passar dos setenta ou oitenta, mas em compensação não olhava a pista, os semáforos, os retrovisores. É carioca mesmo, pensei.

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