domingo, 6 de novembro de 2011

Encontro com Chico Buarque (6/6) ou Estação derradeira

Gustav Klimt: O beijo.


E a rua do hotel era uma longa linha reta que subia do rio até sair do mapa. (Chico Buarque)

Chegamos ao Catete. Ele achou graça no fato de, entre tantos, eu ter escolhido justo o hotel chamado Vitória. Lançou mais uma: “Xenofobia?”. Respondi: “Não, economia”. E tive um pouco de vergonha, porque o hotel era muito ruim. Acho que foi a vez dele de se arrepender da piada; parecia não esperar por aquela resposta, a que no entanto não acrescentei nenhum tom melancólico ou ressentido. Pelo contrário, disse-a rindo, e principalmente pelo prazer de fazer rima com a sua pergunta. Mesmo porque, se quisesse, estaria muito melhor instalada. Ele é que é muito sensível às reações de quem o acompanha. E afável, cuidadoso com as palavras, especialmente quando se pisam certos territórios, como esse, das diferenças econômicas. Ou talvez tenha imaginado – por que não? – que uma pesquisadora de sua obra merecesse melhor acolhida na cidade. Ergui a cabeça e olhei de frente o hotel, tentando espantar a sensação ruim de me sentir tão pobre perto do Chico Buarque, coisa que jamais me afligiria longe dele, e cogitei: “Ah, ele não o conhece por dentro, para ele o hotel é essa caixa de concreto com a placa azul na porta escrito Vitória”. E, de fato, por fora não assustava, e dali ainda se usufruía a presença das árvores altíssimas do jardim do Palácio, do outro lado da rua. Por dentro é que eram elas. Ouviam-se discussões e altos gemidos, batidas de porta e canções do Roberto Carlos. Tudo numa só noite. Era a primeira vez que me hospedava ali, e provavelmente a última. Agradeci pela entrevista - não sabia ao certo que termo usar -, pelo jantar e por ter me acompanhado até o hotel. Ele acrescentou que não foi nenhum favor e que eu não imaginava que coisa boa tinha sido para ele me conhecer, independente do que eu viesse a escrever a seu respeito.
– Quando vai ser nossa próxima entrevista?, disse num ímpeto.
– Bom, agora eu retorno a Vitória e devo iniciar a escrita do texto propriamente dito.
– Vitória (um olhar de quem busca lembranças longínquas)... estive lá mais de uma vez!
– Ah é? E quando foi a última?
– No começo de 90. A lembrança do lugar me traz uma certa... melancolia. Talvez fosse mais pela situação pessoal que eu vivia na época.
– Ah, são quinze anos, Chico! Hoje talvez a cidade te surpreendesse. Houve muitas mudanças. E a natureza por lá também foi generosa.
– É, eu sei. Me lembro bem da vista de um castelo que fica no alto de uma pedra.
– O Convento da Penha.
– Isso! Como é bonita aquela junção de pedra e água. É como um Rio de Janeiro em miniatura, não?
– Ah, sim, lembra.
Recostou-se na porta de lá, ficando quase de frente para mim, eu aguardando o momento de descer. Fez um silêncio curtinho e depois, erguendo um pouco a cabeça, como quem quer adiantar uma resposta imaginária: – Quem sabe a nossa próxima entrevista pode ser feita em Vitória!?
– Puxa! Seria uma honra, de verdade, tê-lo em terras capixabas – puxei a formalidade pelo rabo.
– Estou apenas aguardando o convite oficial – completou, esboçando no fim da frase um meio sorriso, que agora me pareceu de falsa timidez, porque desmentido por um olhar muito firme, que o trazia aqui adiante, malandramente.
Eu não sabia bem o que dizer. – Pois o convite está sendo feito neste momento, lancei, olhando discretamente o relógio do painel. Apenas é preciso nos prepararmos lá para recebê-lo como merece – introduzi desajeitada um plural que era, a um só tempo, de medo e modéstia.
– Não é necessário se preocupar com nada, Andréia, de verdade. Me dê apenas seu telefone e acho que no próximo mês vou rever a sua cidade.
Abri a bolsa, arranquei uma folhinha da caderneta e fui pondo o telefone de casa e o celular, com o código 27 adiante (imaginei que o meu perfil mostrasse uma seriedade excessiva, eu não sabia mais em que terreno estava pisando). – Vou anotar também o meu e-mail, sim?
– Por favor!
Entreguei o papelzinho, que ele dobrou ao meio e pôs no bolso da camisa.
– Foi um grande prazer conhecê-la!
– Ah não, essa frase tem de ser minha, Chico Buarque de Hollanda!
– Até breve então!
– Até! E obrigada!
Vieram os dois beijinhos, o perfume agora mais suave. E um terceiro. Meu deus, o Chico Buarque me roubou um selinho.

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