sexta-feira, 30 de julho de 2010

Nos nós (parte 6)

Já no meio da segunda manhã a dor voava, ave de rapina. Saía do alto-forno e caía no centro da geleira. Conhecia outra loucura, implorar por morfina de três em três horas. Não, a morte não era fina. Distinguia cada pino implantado no joelho, via o sangue coagulando em torno da placa de platina e a veia dilatada reiniciando o trabalho com o fluxo sangüíneo azulado e grosso. Nas primeiras horas depois da incisão, a perna intumescia rapidamente, e por fim os dedos, brancos, arroxearam em pontas frias e dormentes. A perna, pesada, imóvel, obrigava à paralisação de todo o corpo, cuja parte esquerda me era completamente estranha. O que fora eu não estava mais ali.

Enquanto perdurava o efeito alucinógeno da morfina, tudo era suportável: a dor, a sede interminável, o tédio, o medo da morte, da vida, da morte, era tudo tingido com os tons lilases do anestésico e nessas horas as marcas dos meus pés se espalhavam pelas paredes, formando um rastro até a janela, de onde me jogava direto sobre os automóveis que se dirigiam à beira-mar naquele dia claro. Domingo. Segunda. Terça. A mãe costurando para os ricos, bordando margaridas e beija-flores nas calças boca-de-sino, dia e noite ouvindo fofocas, tecendo redes, recebendo revistas com fotonovelas em preto e branco. Espetadas no alto da parede pelo irmão mais velho, cigarras e borboletas. Uma beleza que doía ver distribuída em filas que cresciam, os alfinetes furtados do salão de costura. No fundo do quintal, cigarras invisíveis, uma goiabeira, os siris subindo mangue acima. Sururus cozinhavam nas latas, os urubus rondavam a casa enquanto o pai não chegasse com a novidade de todos os dias, uma maçã insossa embrulhada em papel de seda. Na cozinha as panelas abandonadas, o chão sempre sujo dos pés enlameados. Na escola o medo do mundo, da morte, dos nomes dos planetas todos. Alguns meses têm trinta e um dias, os rios cortam a terra, no fim das frases um ponto, deus se escreve com maiúscula, lavar as mãos no recreio, as meninas brincam de roda, quem não fizer o dever não volta para casa. Os mais pobres olhavam com inveja para os menos pobres. Odiavam-se todos, desamor de toda espécie. Fila para entrar, fila para sair, fila para o carimbo no caderno, fila para devolver a tabuada, fila para cantar o hino, fila para receber a merenda. Os meninos puxavam cabelos, pisavam nos calcanhares, cuspiam na cara, jogavam carrapichos para grudarem nas meias, empurravam, derrubavam, escoiceavam. Os louros sofriam mais. No fundo da escola, por detrás da caixa dágua, faziam um menorzinho comer biscoito com merda, enquanto sua irmã chorava. A professora não saía para o recreio. No gabinete, recolhia listas de coletivos, fazia ajoelharem e copiarem cem vezes o verbo que erraram. Domingo. Passava. Segunda. Passava. Terça.

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