sábado, 11 de agosto de 2012

Encontro com Renato Pacheco, parte 3

Brueghel: Parábola de um cego conduzindo outro (detalhe).
 

Terminados os cumprimentos iniciais, ele me convidou a sentar e abriu o livro que trazia na mão, me pareceu que exatamente ao meio. Lembrei-me de duas vezes em que o vira ali, em encontros - aqueles sim - com alguma premeditação. No primeiro, fim de ano como agora, passou-me às mãos uma bela carta de Natal, e no segundo, por ocasião da publicação de Nomes pra viagem, me presenteou com o romance Meia vida, de Naipaul, com impressionante dedicatória em meu nome.

Na época estava eu já às voltas com a pesquisa para a escrita de sua segunda biografia, o que por si só estabelece curiosos laços entre duas pessoas, e o texto acaba por revelar tanto do biografado quanto do biógrafo. Renato Pacheco parecia senti-lo muito fundamente; percebi-o pelo que deixou na página de rosto do livro do escritor de ascendência indiana.

E se na época do contato diário com sua obra, sua alegria incomensurável me parecia muitas vezes respingada de grande amargor, agora a sensação era bem outra: uma aura infinitamente feliz o envolvia, como aquela que envolve os bebês.

Puxou-me a cadeira. Sentei-me. Sentou-se e compôs uma expressão tão fingidamente grave que me pareceu mesmo divertida. Iniciou então a leitura de uma narrativa longa, longa, que parecia mesmo não ter fim. Era a história de um vilarejo isolado do resto do mundo, onde só nasciam e habitavam cegos; um lugar onde todos já haviam perdido inclusive a memória do que significava ver. A esse lugar sem luz e sem cores, eis que chega, certo dia, um personagem que para os moradores era absurdo, que é o homem que enxerga, vendo, dizendo e fazendo coisas sem nenhum sentido, tentando ainda, na primeira oportunidade, se tornar o rei daquelas paragens onde as necessidades mais íntimas eram realizadas em público e onde cada um se isolava no momento de se alimentar, por vergonha dos sons e odores.

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