quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Frankenstein (parte 3)


A campainha tocou. Vinte anos atrás. Era uma cigarra discreta, porém não o suficiente para um consultório de psicanálise, e pareceu-me mesmo absurda a sua instalação ali. Soou-me como um recurso didático ou de auto-defesa, não sei. Mas não quis tocar no assunto. O profissional era todo ouvidos. Eu nem era toda palavras, mas ele realmente ouvia como ninguém. Ouvia com os olhos, a boca, a ponta dos pés. Ouvia de modo tão poroso que eu ficava imaginando como é que fazia para se livrar de tantos discursos que passavam por ali num dia. Mais tarde descobri o óbvio. Mas o importante é que, se aquela crise dos vinte anos não tivesse ocorrido, hoje eu dificilmente entenderia os meus amigos mais angustiados e ansiosos - talvez fosse esse o meu quadro então. Do estado dos paranóicos, fóbicos e deprimidos no entanto ainda não tenho compreensão, porque me parece difícil uma verdadeira troca de experiências com eles. É preciso estar bastante preparado para poder ofertar algo a uma pessoa que permanece o tempo todo vigilante a cada palavra sua, a cada mínimo gesto, que se sente perseguido e foge feito um animal espantado ao menor sinal de conflito. Como criar interlocução com alguém que, de repente, tem medo de sair de casa, do quarto, do banheiro? Não basta oferecer-lhe - o sol! É necessário ter desenvolvido uma grande delicadeza para acreditar que se perca o desejo por absolutamente tudo sem saber ao certo por que razão. Imaginemos uma outra situação: alguém que não dormisse, pensando sobre o aquecimento global, a fome, a guerra, o terremoto no Haiti... Embora sejam situações que deveriam realmente nos tirar o sono, assim como as demais desgraças espalhadas pelo globo, pessoalmente não conheço ninguém que, sem notória desfaçatez, relate sofrer por isso a ponto de não querer mais se alimentar, por exemplo. Há às vezes uns ensaios nesse sentido, mas uma máscara blasé de intelectualidade arrogante - e limitada pela arrogância - logo desmorona. De todo modo, a quem olha de fora parece implausível que o outro seja feito de uma matéria tão fina que, por exemplo, tenha as mãos trêmulas e suadas diante de qualquer argumento mais insistente ou veemente, numa conversa informal. Eu nunca pretendi ignorar a fragilidade que pode advir de um trato sem solução de cada um dos pequenos obstáculos que a vida impõe, mas também não posso deixar de aconselhar para esses casos de real sofrimento - quando a opinião me é direta ou indiretamente solicitada - a resolução de problemas de ordem prática. Os argutos pensantes, ciosos da importância de seu cérebro, não precisam se preocupar, porque durante o ato mesmo de apertar ou afrouxar os parafusos do armário é que muitas vezes se solucionam complexas questões de ordem afetiva; sujar a mão em cocô de neném costuma deixar as falanges mais aptas a uma aula de escultura... O tradicional cabo de enxada, mais a trouxa de roupa pra lavar, recomendáveis aqui a todos os gêneros, indistintamente, não os livrarão de pais violentos, de uma infância mal vivida, da pobreza, da feiúra, da obesidade, da acne, do abandono, da solidão, da falta de afeto, da incapacidade de expressão, da vontade de possuir, do medo de deixar, dos inimigos, dos patrões, do ciúme, da exploração, do câncer, da aids, da baixa auto-estima nem da alta baixa-estima, rs... mas aquele traquejo ali... colocar as mãos assim desse modo e não de outro, sentir a superfície suave ou rústica da matéria, ter de baixar um pouco a cabeça em direção a um dos ombros e depois torcer a coluna para alcançar enfim a água (caso se escolha a trouxa de roupa) ou o mato (caso se escolha o cabo de enxada)... Hum, acredite-me: não há nada melhor que contorcer o corpo para polir o pensamento e robustecer a vontade. (Um minuto, que estão chamando ao telefone.)

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