segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Frankenstein (parte 4)


Célia Ribeiro: "Corpos líricos sob o viaduto Caramuru".

Chamaram ao telefone. E se fosse dez anos atrás, poderia ter sido eu mesma me segredando na secretária eletrônica, como de costume, sobre o mestre evanescente. Dele, cada gesto ou palavra pediam para ser apalpados, filmados, decorados... Ele bem o sabia, cônscio da efemeridade dos papéis. Eu, que sempre fui avessa a hierarquias, afeiçoei-me, embora secretamente, sem batismo ou propalação, a ter um mestre assim, para além dos ditos e ouvidos, cônsul das condições paradoxais que se formam em torno de todas as relações. Dele aprendi o nome de batismo, polindo à água a pedra do meu nome. Soube-lhe o nascimento e a paixão do conhecimento. E foi ele quem propôs, um dia, que, num rito de exorcismo, cada um doasse parte de seu nome - aquela que mais lhe incomodasse - e que assim formássemos um monstro utilitário, uma espécie de vodu onomástico, o bode expiatório de todas as nossas vergonhas, recebidas como herança ou marca inesquecível do gosto paterno ou materno. À roda, digo, à mesa dos enjeitados, foram saltando, batizados com cerveja (uma pena, de tão belos!, joões e marias), os tradicionais severinos e sebastianas, os sonoros, inacreditavelmente recalcados, flávio e isabel, os históricos silva e sousa, todos os que traziam cristo no radical, desbravadores de terras e mares, como padilha e maltinti, o poético ribeiro, os compreensíveis pio e vil, e, sob meus veementes protestos, o adorável raimundo - um afã desde as noites em que adolesci sobre as páginas de aluísio de azevedo -, mais a minha penha e o seu batista... Tombaram ali carvalhos, salgueiros e oiticicas. E, viciados todos em estéticas e esteticismos, esmeramo-nos em organizar o nome estratosférico do nosso frankenstein, a fim de dar-lhe alguma decência. Concluído o serviço, concordaram quase todos que, retirados de nós e lançados à figura imaginária pela qual, na hora da saideira, nutríamos já alguma simpatia, o nome, resultante de tantos esquartejamentos embora, soava incrivelmente agradável aos ouvidos, bonito, raro e nobre. Mistérios do deslocamento. O garçom se aproximou e apresentou enfim a nossa conta. Assustamo-nos. Seu nome era Frank Stein.

5 comentários:

  1. Vistos de fora até os fantasmas se humanizam...

    Tenho intuido que alguns filmes como 'beleza americana' de sam mendes ou 'coisas simples da vida' de edward yang, para citar o q está na memória ativa, indicam uma tendência de apaziguamento de um cotidiano menosprezado, e de exorcismo de possibilidades apontadas e negadas no passado.
    A partir de um distanciamento, o cotidiano apalpado com delicadeza ressurge em uma dimensão especial ao mm tempo particular e coletiva.

    Seu texto lincou-me ao que tanto me agradou nesses filmes, sobretudo o do yang.
    Saudades do mestre! e brinde à nossa (o trio) amizade!
    Belo texto!

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  2. Rambo...

    Percebo, em sistematizações e poucos pesares, a inexistência de um passado firme e, ao mesmo tempo, iniquamente perfeito ao qual o personagem, em sua busca incessante e desesperada do encontro do seu eu-interior, sofre o privamento de sua felicidade e particular privação do seu passado.

    A partir de um momento de percepção da periculosidade envolvida no ato despachado em uma faixa de madeira, por vezes conhecida como a "mensageira do destino", vê-se que o cotidiano delineado por momentos férteis e, não obstante, capazes de transformar a mais simples sanidade em loucura, ao mesmo tempo insensata e sã.

    É lançada!!! Percebe-se que, ao contrário do que parecia ser a verdade secreta, os povos, vindos do Asia Menor, não se compreenderam unica e exclusivamente ao ato momentêneo da observação. Percebe-se que, a partir de um momento de distanciamento do ato de guerra, esses povos sofrem sentem, mortalmente, a "mensageira do destino", trespassando sob suas superficies pensantes e, inevitavelmente, suportadoras de seus fios capilares.

    RESUMINDO: Rambo lança flexas nos Vietnamitas. =D

    Seu texto lincou-me à natureza poética e, quem diria, multicultural do espaço finito na atmosfera infinita do vento e do tempo/espaço.

    Saudades suas professora,
    Abraço.

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