domingo, 28 de outubro de 2012

POISON, O RESTAURADOR (parte 1)

Tarsila do Amaral: Abaporu.


É chocante em que posições,
com que escandalosa simplicidade
um intelecto emprenha o outro!
Tais posições nem o Kamasutra conhece.


(Wislawa Zsymborska)

No dia em que chegou o homenzinho, com suas fundas olheiras, acorremos todos a recebê-lo no pátio central com a cordialidade com que é de praxe acolhermos os novos colegas na galeria. Esticando a destra, ele se apresentou. Tinha sido contratado, juntamente com outros dois profissionais, para a restauração de algumas das telas. Apesar do estranho e repetido trejeito dos ombros, de início não chamou à atenção para nenhum aspecto de sua personalidade e, afinal, todos sabemos serem muito comuns, neste nosso ofício, personalidades excêntricas, misantropos e mesmo esquizóides.

Numa das primeiras caminhadas que fizemos pelo pátio, tendo sido eu o encarregado de lhes mostrar o acervo, notei que uma gota de tinta escorria de um dos cantos da bolsa de Poison e, instintivamente, ensejei avisar, mas me contive ao notar que, pela viscosidade, parecia tratar-se de tinta grega. Quis acreditar que me precipitava, que via coisas. Depois esqueci o acontecimento, que com o tempo se encaminhou para o mundo das trivialidades. Não haveria razão para que alguém especializado em restaurações levasse na bolsa uma bisnaga com material tão perigoso à sua própria saúde e à dos demais, além de tecnicamente superado e, atualmente, proibido por razões incontestes.

Com o convívio, percebi que naquela mesma bolsa Poison trazia sempre enfiada a mão esquerda, a qual hoje são todos unânimes em afirmar jamais terem visto. Assim como ninguém nunca viu de perto a sua paleta...

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