quarta-feira, 31 de outubro de 2012

POISON, O RESTAURADOR (parte 4)

Candido Portinari: O mulato.
 

A escola em que Poison estudou não lhe ensinara a parcimônia nos contrastes, nem a visão de conjunto – erros fatais para o universo pictórico. E o mais importante: arrojado por títulos direto ao mundo da pintura feita e acabada, o nosso homem sofria de grave lacuna na sua formação: ignorava que as personagens, entre si, tinham olhares umas para as outras – além de uma memória que permitia estabelecer relações entre o antes e o depois, transformação de efeitos excessivamente visíveis nos seus toscos retoques. E mais: que ele mesmo, o restaurador, era, ainda que momentaneamente, uma personagem entre as demais.

De um dia para o outro, os amantes que, há mais de oitenta anos, traziam os dedos enlaçados, apresentavam uma grossa camada de tinta (a terrível tinta grega), da cor do fundo da tela, justo no ponto em que antes se tocavam as mãos, agora artificial e grosseiramente separadas.

No que deve ter sido o resultado de um surto mais agudo, em uma de suas ganas de transformar, Poison tentou ainda podar o bigode do nosso antigo jardineiro, anulando a marca mínima da rudeza, que garantia àquele trabalhador, de natureza no fundo suave, confiabilidade para um trabalho que era a um tempo delicado e terreal.

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