segunda-feira, 29 de outubro de 2012

POISON, O RESTAURADOR (parte 2)

El Greco: Pietà.

Aos poucos porém, sem que precisássemos fixar os olhos para perceber, notou-se que a paisagem harmônica que antes da chegada dos restauradores era formada pelo conjunto das obras, dispostas pelo diretor de modo que se estabelecesse um sutil diálogo temático entre elas, vinha sendo modificada, e não demorou até que se descobrisse que era Poison, o restaurador-chefe, quem imprimia nas telas aquelas linhas que, da noite para o dia, mudavam de maneira abrupta traços há muito familiares a todos nós, que, por ofício, frequentávamos há anos – alguns há décadas e outros desde a sua fundação – os corredores da galeria.

Todos já tinham notado que Poison trabalhava preferencialmente no escuro da noite, quando o silêncio, ao que tudo indicava, lhe permitia maior concentração. Certa manhã porém eu mesmo o vi ridiculamente dependurado a uma Pietà. Principiava a arrancar-lhe dos braços, sem piedade, o filho amado e dolente. Nesse dia notei que usava, por sob a camisa, uma peça íntima feminina, semelhante ao antigo corpete.

Acontece que, paradoxalmente, era tanta a sua rapidez para o trabalho que a agilidade mesma viria a condená-lo. De maneira impressionante, num espaço de dias, o nosso Michelangelo (ou seria o nosso Da Vinci?) retocou a todos, absolutamente todos os rostos e corpos dos quadros ali expostos. Fui eu quem primeiro suspeitou de que havia algo estranho com o seu trabalho, ou, ao menos, nas suas atitudes. Todavia, como se tratava de profissional devidamente habilitado para a restauração pictórica, não seria eu a constrangê-lo com uma observação indiscreta sobre o seu desempenho.

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